26/05/20

Herança cultural [Crónicas de Svendborg #36]


Foto: Stockphoto Needpix
Um dos cartões de visita de Svendborg é, creio eu, o grande edifício Wiggers Gård na praça central, Torvet. Muitos visitantes pensarão tratar-se de um edifício antigo, por causa do estilo de construção, com estrutura de enxaimel, mas, na realidade, data apenas de 1939 e foi contruído onde havia antes uma loja e fábricas que tinham sido construídas em meados do séc. XIX.

Foto: Kåre Thor OlsenWikimedia Commons, daqui.












Antiga de facto é a Casa de Anne Hvide, ali mesmo ao pé, que data de 1560. É o edifício de habitação mais antigo de Svendborg e é dos mais antigos que vi aqui na Dinamarca, se não mesmo o mais antigo.


Tirando a Casa de Anne Hvide e uma casa de meados do século XVI, que foi reparada há três anos, os outros edifícios de habitação mais antigos datam, aqui na zona, do século XVII.











Foto: Lars Schmidt.
Wikimedia Commons, daqui
A nossa aldeia, Troense, a quatro quilómetros de Svendborg, é quase uma aldeia museu. Dos 100 edifícios reconhecidos como Património Cultural no Município de Svendborg, 31 são casas da nossa aldeia: casas de habitação – e habitadas, de facto – de um ou dois pisos, na sua grande maioria de estrutura de enxaimel e telhado de colmo. A maior parte delas ficam na Grønnegade, a «Rua Verde». As casas classificadas como Património Cultural estão identificadas com uma placa de metal, colocada ao lado da porta. Este diaporama que encontrei no YouTube, infelizmente a preto e branco, mostra várias casas dessa rua.



 A casa amarela à direita na foto de cima tem uma placa com a data 1675. Se for verdade, é a casa mais antiga da aldeia, mas foi renovada sem cuidado nenhum e não faz parte da lista dos edifícios classificados como Património Cultural.

O mais antigo dos edifícios classificados é o da fotografia de baixo, que é anterior a 1750. Curiosamente, não tem telhado de colmo.

A casa com um campanário, mais abaixo, é também um dos edifícios classificados da aldeia. Construído em 1790, foi escola primária até meados do séc. XX e depois museu, e agora é uma casa particular.






Foto de Artur Franco


25/05/20

Lentilhas

Livro da Génese, XXV 29-34:
Hendrick ter Brugghen: Esaú vende o direito de primogenitura, ca. 1627
Thyssen-Bornemisza Museum, Madrid
Um dia, quando Jacob preparava uma sopa de lentilhas, chegou Esaú do campo. Vinha muito cansado.
E disse a Jacob: «Dá-me dessa sopa vermelha, porque me sinto derreado de cansaço.» Por esta razão é que lhe foi posto o nome de Edom – ou seja, o vermelho. 
Respondeu-lhe Jacob: «Vende-me ainda hoje o teu direito de primogenitura.»
Continuou Esaú: «Sinto-me morrer: de que me servirá o meu direito de primogenitura?»
«Pois jura-mo», disse-lhe Jacob. «Hoje mesmo.»
E Esaú jurou e vendeu a Jacob o seu direito de primogenitura.
E este deu-lhe pão e sopa de lentilhas. Esaú comeu, e bebeu, e depois foi-se embora, dando-se-lhe bem pouco ter vendido o seu direito de primogenitura.
Que bem entendo Esaú! Eu teria feito a mesma coisa. Mais: mesmo que não estivesse cheiínho de fome. O direito de primogenitura não me serve de nada e gosto muito lentilhas. Vocês não?

As lentilhas são dos primeiros produtos agrícolas: foram domesticadas há cerca de 9.000 anos, ou talvez antes Não sei se em Portugal alguma vez foram populares, mas, pelo menos no Portugal que eu conheço e no meu tempo de vida, comem-se muito pouco. Creio que comi lentilhas pela primeira vez em Espanha, onde são tradicionais as lentilhas guisadas com morcela e/ou com chouriço. Em França, as lentilhas com carne de porco de salmoura são também um prato muito tradicional. Aqui em casa, comem-se muito, a malta gosta.

As lentilhas guisadas à minha maneira levam sempre cenoura e talo de aipo, ambos às rodelas, que refogo em azeite, juntamente com cebola e alho. Junto depois as lentilhas lavadas, molho com um bocadinho de vinho branco e, em desaparecendo o cheiro a vinho, junto tomate picado. Quando começa a secar, ponho líquido (um caldo, de preferência, mas, se não houver, água também serve, paciência...) e deixo cozinhar até estarem as lentilhas cozidas, juntando mais líquido quando necessário. O tempo de cozedura varia muito, conforme a qualidade das lentilhas.

Sopa de lentilhas vermelhas. Foto de nchenga, daqui (Creative Commons)
Tempero sempre as lentilhas com muitos cominhos e muita semente de coentro em pó. Dizem que se deve pôr o sal só no fim, porque senão as lentilhas demoram mais tempo a cozer, não sei se é verdade ou se é mais um mito culinário... O que não é mito é que há que lavar sempre as lentilhas bem lavadinhas e ter cuidado com as pedrinhas que nelas possam vir misturadas.

Acho que as lentilhas ficam muito bem com borrego, não sei se são da mesma opinião. Aqui têm uma sugestão para aproveitar bocados menos nobres do borrego (costelas, pescoço, coisas assim): cozinhem-nos com uns quantos legumes que tenham à mão, para lhes dar mais sabor, numa panela de pressão ou num tacho coberto de ir ao forno, até a carne se separar bem dos ossos; depois, tirem a carne toda, o mais possível sem gordura, juntem-na às lentilhas guisadas e deixem apurar um bocadinho.

Já agora: a mesma coisa – ou parecida, seja – mas com mais água, dá uma rica sopa magrebina. Bom proveito!


10/05/20

Lisboa em dois poemas suecos

Erik Axel Karlfeldt (1864–1931) era um poeta sueco, que ganhou postumamente o Prémio Nobel em 1931. Muitos poemas de Karlfeldt foram musicados e um dos poemas que deu uma canção conhecida é “Em Lisboa dançam” (“I Lissabon där dansa de”)*, que foi musicado por Bo Sundblad no início dos anos 30.



Esta versão é interpretada pelo autor. Desconheço a data de gravação e de edição. Outras versões conhecidas da canção são, por exemplo, a de Margareta Kjellberg (1938), a de Sven-Olof Sandberg (1943) e a de Olle Adolphsson (1963).

Por favor, não considerem o que se segue uma tradução do poema de Erik Axel Karlfeldt. O poema é muito difícil de traduzir e é numa língua que não domino, pelo que não sou capaz de fazer uma tradução propriamente dita. O que se segue é só uma versão simplificada e muito livre (e, a espaços, feia), para ficarem com uma ideia de que se trata.
Em Lisboa, dançam
no palácio vermelho do rei,
– coroado, condecorado –
com vivas e salvas de tiros.
Soa o mar como trombone
e violino distantes
e as faces são coradas
da cor do vinho do Porto. 
E cantam os rouxinóis
em escuros bosques de moscada
para os príncipes e as princesas
no sono dorido da noite.
E esvoaçam cupidos
de asas de cristal
entre condes e barões,
que passam o dia a suspirar:
Tu, vento oeste de Salvador,
que sopras forte e suave,
desperta a cerva deitada nos lírios,
que é já tempo de folgar.
Sou um cervo na murta orvalhada,
A minha coroa é de ouro
e trago em cada haste uma rosa
que diz de mim o desejo.
Nas falésias da praia de Munga
que atroada se ouve.
Dançam os pares de mãos dadas
na alegre casa de Pillman.
E cada homem que pula
de regozijo na sala
é um imponente toureiro
e Príncipe de Portugal.
Passa uma nuvem, pesada e baça,
que sopra uma granizada,
mas a rapariga encosta a pele primaveril
aos braços esguios de Pillman.
Do alto do poste curvo, em acento outonal,
canta um galo cata-vento,
mas a rapariga sorri nos braços de Pillman
como maio no vale de Munga.
Baloiça um ramo vermelho de fruta,
contra a parede e a vidraça,
p’lo carreiro, ouve-se cantar
a voz grave do nascente.
Vento de outono, enche os foles amplos
e sopra como quem toca a trombeta!
Sou um alce casamenteiro de alta coroa
entre tramazeiras na charneca de Munga.
Abre-se o colchão pardo da nuvem
com o ribombar de um trovão
e a barca da lua, em traje dourado,
avança em roxo ondular.
Naveguemos com ela, desta
murcha casa outonal
até cidades cobertas de lírios
e castelos no silvo das murtas.
Como veem, não é de Lisboa que o poema fala. Como eu o percebo, o poema diz o cio de bichos e gente como fazendo parte do ciclo da natureza, e contrasta primavera e outono, e o frio norte e um sul idealizado – e usa apenas Lisboa como imagem ideal de gáudio e opulência. É uma imagem sem dúvida surpreendente aos meus olhos – e, arriscaria eu, aos olhos de muitos portugueses. Seria esta a imagem da capital portuguesa que prevalecia há cem anos na Suécia, ou é antes uma criação de Karlfeldt que não assenta em nenhuma ideia feita sobre um pretenso fausto português?

***
Passados 60 anos, é muito diferente a imagem de Lisboa que transparece no poema “Lissabon” de outro poeta sueco que também ganhou o Nobel, Tomas Tranströmer**. Evidentemente, um poema de Tranströmer sobre Lisboa não podia deixar de interessar os literatos portugueses. Vasco Graça Moura traduziu o poema para a coletânea 21 Poetas Suecos (Vega, 1980) (ver aqui), e encontro também uma tradução de Luís Costa no blogue Aventar. O poema de Tranströmer é muito mais fácil de traduzir que o de Karlfeldt. É um poema quase todo de frases narrativas curtas e diretas, sem grandes imagens literárias, e ambas estas traduções dão dele uma boa ideia***. Atrevo-me, ainda assim, a apresentar também a minha tradução:
No bairro de Alfama, cantavam os elétricos nas calçadas íngremes.
Havia duas prisões. Uma era para ladrões
e os ladrões acenavam através das grades.
Gritavam que queriam ser fotografados.
«Mas aqui», disse o condutor, rindo baixinho, inseguro,
«aqui estão políticos». Vi a fachada, a fachada, a fachada
e vi, lá em cima, um homem a uma janela,
com binóculos, a olhar para o mar.
Havia roupa estendida a secar no azul. Os muros estavam quentes.
As moscas liam cartas microscópicas.
Seis anos mais tarde, perguntei a uma senhora de Lisboa:
«Isto é verdade ou fui eu que sonhei?»

______________________

* In Flora och Pomona, 1906. Texto original em sueco aqui.
** In Klanger och spår, 1966. Texto original em sueco aqui (e traduções em alemão, inglês e português).
*** Um pequeno comentário a alguns pormenores destas traduções:
Na primeira linha da segunda estrofe, está, no original, «som en kluven människa». Graça Moura traduz por «como se cortado ao meio» e Luís Costa por «como um afectado».  É certo que kluven significa «rachado; cortado ao meio» (um toro de lenha, por exemplo), mas en kluven människa é uma expressão fixa e não uma criação individual de Tranströmer e significa «uma pessoa dividida» (entre duas ou mais lealdades, gostos, crenças, etc.).
Graça Moura traduz kikare por «óculo». É verdade que kikare também pode ser um óculo, mas é muito provavelmente de vulgares binóculos que se trata.
É curioso que Vasco Graça Moura acrescente «branca» à roupa estendida a secar. Não é que não fique bem o branco da roupa à cidade branca, mas não há branco no original.
Quanto à «dama» de Luís Costa, acrescenta ao dam sueco uma dimensão que ele não tem: dam é só a palavra comum para «senhora», sem mais.