30/09/22

A bicicleta como meio de transporte


Segundo um estudo do Eurobarometer de 2014 baseado nas declarações de 27.000 pessoas*, a percentagem média de pessoas que usam a bicicleta como principal meio de transporte na Europa, num dia normal, é de 8%. Os países que mais se afastam da média da UE** são, no topo da tabela de utilizadores da bicicleta, os Países Baixos (36%), a Dinamarca (23%), a Hungria (22%), a Suécia (17%) e a Finlândia (14%) e, nos últimos lugares, Malta (0%), Chipre e Portugal (1%), a Irlanda, a Grécia e o Luxemburgo (2%).

É interessante notar que, se, no total europeu***, a taxa de utilização diária da bicicleta é a mesma para homens e mulheres, já se notam diferenças quando temos em conta a idade: os jovens entre os 15 e os 24 são os maiores utilizadores (11%) e, curiosamente, as pessoas com 55 anos ou mais usam um pouco mais a bicicleta que os outros (8% contra 7% entre os 25 e aos 54). Se considerarmos antes o nível de educação, é quem ainda está a estudar que mais utiliza a bicicleta (13%) e quem tem uma educação mais longa usa-a um pouco mais que quem tem menos anos de educação (8% de pessoas que acabaram de estudar depois dos 20, contra 7% de pessoas que acabaram a escola mais cedo). Depois dos estudantes, as categorias socioprofissionais que mais usam a bicicleta são desempregados (9%) e reformados (8%).

Tendo em conta estes últimos dados, poderá parecer óbvio que há razões económicas para a escolha da bicicleta como meio de transporte e, de facto, há 24% de ciclistas que dizem que a sua escolha é determinada pelo preço. Mas há outras razões que contam mais: como os utilizadores de outros meios de transporte, os ciclistas dizem usar a bicicleta por uma questão de conveniência/facilidade e de velocidade (o que significa, com certeza, que a bicicleta não é usada para longas deslocações). 22% dos ciclistas invocam também considerações de ordem ambiental para a sua escolha, uma percentagem muito maior que a dos utilizadores de outros meios de transporte com a mesma preocupação (4%).

Evidentemente, um estudo destes, baseado em entrevistas, não esboça sequer uma tentativa de explicação das grandes diferenças das taxas de utilização das bicicletas nos vários países da EU. A que se deverão?


Das quatro bicicletas cá de casa, só duas são usadas quotidianamente como meio de transporte

Invoca-se muitas vezes as condições do terreno para explicar o maior ou o menor uso da bicicleta. É indubitável que a poupança de esforço é um fator importante na escolha de opções de transporte (entra obviamente no conceito de «conveniência» do relatório da EU) e terrenos muito acidentados levam muito provavelmente a outras opções menos exigentes do ponto de vista físico. A dificuldade está, pelo menos para mim, em comparar as elevações a que estão sujeitos os ciclistas dos diferentes países. Se compararmos elevação média dos países da EU com o número de ciclistas quotidianos, não há dúvida de que os dois países onde mais se usa a bicicleta são os países com menor elevação média (os Países Baixos e a Dinamarca, com 30 m e 36 metros, respetivamente), mas acaba-se aí a correlação entre os dois valores. Também é, obviamente, uma correspondência demasiado simplista. Para se avaliar devidamente a influência do terreno na escolha da opção de transporte, teria de se ver a distribuição das pessoas no país e ter em conta não a elevação média, mas ver se são acidentadas as zonas onde as pessoas vivem e trabalham. Isto é um trabalho demasiado difícil para mim – por falta de tempo e de informação.

Também é fácil infirmar a correlação entre PNB per capita e percentagem de ciclistas, mas, mais uma vez, é capaz de ser relação que nem sequer se deva tentar estabelecer, porque, por si só, não nos dá uma ideia da percentagem de pessoas que, num país, optam pela bicicleta como meio de transporte por razões essencialmente económicas.

É bem capaz de haver uma forte componente cultural na utilização da bicicleta como meio de transporte. Usar mais ou menos a bicicleta não terá também a ver com a normalidade com que todos encaram a utilização do velocípede — ou até com o maior ou menor prestígio e associações de estatuto ligados ao seu uso? Talvez não, talvez seja eu a delirar. Ou talvez sim. Passo a descrever alguns aspectos da minha experiência pessoal na Dinamarca, que não é evidência de coisa nenhuma, claro, mas que talvez sejam interessantes para muitos dos meus leitores que não conhecem o país e que podem também servir de exemplo, precisamente, das tais diferenças culturais que talvez possam estar na base da maior utilização da bicicleta aqui.

Da segunda vez que vim à Dinamarca, no outono de 94, lembro-me de que, ao atravessar uma rua no centro da cidade, a amiga com quem eu ia apontou para um senhor que ia a passar de bicicleta e me disse que era um ministro. Não me lembro que ministro era, mas é provável que fosse o ministro das finanças ou o ministro da investigação, que são dois dos políticos conhecidos que, nos vários cargos oficiais que tiveram, costum(av)am ir para o trabalho de bicicleta. 

Quando comecei a trabalhar no centro de línguas do Ministério dos Negócios Estrangeiros em Copenhaga, em princípios de 2002, dei-me conta de que os funcionários do ministério, das mais baixas às mais altas funções, iam para o trabalho de bicicleta e, quando por ali se via um carro, tinha muitas vezes matrícula CD − um diplomata de outro país que lá tinha ido a alguma reunião. E o Google maps (foto de julho deste ano) sugere-me que as coisas não devem ter mudado muito.

Não me parece que em Portugal – e em vários outros países – isto seja possível. É claro que não quero com isto defender que é o uso da bicicleta pelas elites que explica a grande diferença na quantidade de utilizadores diários entre, por exemplo, a Dinamarca e Portugal (se bem que as elites possam sempre ser importantes como modelos de conduta…). Como disse atrás, trata-se aqui de um exemplo da (culturalmente determinada) diferença de atitude relativamente ao uso da bicicleta. Ciclistas de fato e gravata ou de fato de saia e casaco são uma coisa normal na Dinamarca, como o são ciclistas com todas as outras indumentárias possíveis.

E de todas as idades. Todos os dias de manhã, quando vou para o trabalho (de bicicleta), vejo vários pais e as mães que pedalam ao lado dos seus filhos pequenos até ao infantário ou à escola primária, onde os deixam para depois seguirem – de bicicleta, mas a maior velocidade – para o seu trabalho na vila. Também isto não creio que seja comum em Portugal e em vários outros países europeus. Mas é de pequenino que se torce o pepino, não é verdade?, como diz o conhecido refrão. Quer dizer, é assim que se interioriza que a bicicleta é um meio de transporte natural e valorizado, e se aprende a utilizá-la.

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* Não consegui encontrar estudos abrangentes mais recentes, mas a situação não se deve ter alterado muito

** Nesta altura, ainda com o Reino Unido, claro.

***O documento não apresenta todos os dados discriminados por país, infelizmente.

09/09/22

Dois mares

Paul Nash: Totes Meer, 1940–1. Tate Gallery, Londres 
Quando vi pela primeira vez a pintura Totes Meer («Mar Morto») de Paul Nash, vi nela uma relação com Das Eismeer («O Mar de Gelo») de Caspar David Friedrich. E uma rápida pesquisa no Google revelou-me que, claro, muitas pessoas veem a mesma relação. Se essa relação é intencional ou não, se Nash de facto se inspirou em Friedrich ou se o «cita», isso é que não se sabe. O nome em alemão da obra de Nash poderia indicar isso, mas também se pode dever apenas ao facto de a obra representar destroços de aviões alemães... 

Caspar David Friedrich: Das Eismeer, 1823–4. Kunsthalle Hamburg