14/08/17

Bornholm: dois pequenos apontamentos [Crónicas de Svendborg #26]

1. 
Há muitas regras de comportamento iguais, ou quase, em todas as sociedades humanas de todos os tempos e de todos os lugares; há outras que variam, às vezes muito, de sítio para sítio e de uma para outra época; e, de vez em quando, há costumes que nos surpreendem, porque, por preconceito, não esperamos encontrá-los numa determinada sociedade. Descobri há pouco tempo, em painéis com informação histórica que há num bonito percurso para caminhadas entre Hasle e Vang, em Bornholm, que os barcos que encalhavam nas costas rochosas eram uma importante fonte de receita para as comunidades pesqueiras da zona, que rapidamente os aliviavam de toda a carga, mal a tripulação os abandonava – e que, muitas vezes, essas mesmas populações «ajudavam o destino» (é a expressão usada no painel), atraindo os navios com falsas luzes para os fazer encalhar. É mais que roubo, note-se, é pôr em grande risco vidas humanas, pois que nem sempre as tripulações dos navios saiam ilesas dos encalhes.

Vários amigos meus dinamarqueses garantiram-me alguns que esta pirataria de costa estava longe de ser uso apenas daquela zona; que a mesma prática criminosa era comum, e «socialmente aceite», noutras partes do país – e nomeadamente na costa oeste da Jutlândia, por exemplo. Não sei qual é a parte de história e a parte de lenda nestas histórias que se contam, mas não me surpreende nada que, se se fazia em Bornholm, se fizesse o mesmo noutros lugares. E não só na Dinamarca, claro está. Quem sabe se não seria prática comum noutros lugares do mundo...
2.
A ocupação nazi da Dinamarca terminou a 5 de maio de 1945, quando as forças alemãs se renderam às forças aliadas comandadas pelo general Montgomery, que tinham chegado a Lüneburg, na Alemanha. Em Bornholm, porém, não foram as tropas de Montgomery que exigiram a rendição alemã, mas sim as tropas soviético. E os alemães não quiseram render-se-lhes – aos aliados ocidentais, rendiam-se; ao Exército Vermelho, não! Os russos avisaram então que Rønne e Nexø, as duas maiores cidades da ilha, tinham de ser evacuadas, porque iam ser bombardeadas. E foram, no dia 7 e no dia 8.

A minha sogra é de Bornhom e tinha dez anos nessa altura. Foi mandada, com a irmã de 13 e o irmão de dois, para a quinta dos avós. Tiveram de fazer a pé, o irmão num carrinho de bebé, os cerca de 9 km que separam Rønne da quinta. Ainda não tinham chegado ao seu destino quando começou o bombardeamento. Ficaram a ver de longe as explosões e a cidade a arder, sem saber da sorte dos pais, que tinham ficado na cidade.

 

A minha sogra diz sempre que a ocupação russa, que durou cerca de um ano, foi pior que a ocupação alemã, mas não se deve lembrar de grande coisa. Muito provavelmente, está mais a repetir o que se dizia que a dar conta daquilo que realmente viveu. Fui ver no Museu da Defesa, em Rønne, uma exposição sobre a ocupação soviética de Bornholm. Explica-se que houve, claro está, um ou outro problema com os soldados russos, como seria de esperar que houvesse com qualquer força militar de ocupação, mas parece que os soldados viveram, em geral, muitos isolados da população. Agora, eram gente muito estranha para a população da ilha, com uma cultura bem mais diferente da sua que a dos ocupantes alemães; e, sobretudo, as pessoas tinham medo que os comunistas ocupassem a ilha para sempre.

O tio Sam… ba, uma família de canções

Provavelmente, não é mesmo uma família, e nem sequer um motivo ou tema recorrente, são apenas umas quantas canções que dialogam umas com as outras, não sei, mas não deixa de ser curioso.

A primeira que conheço é “Brasil Pandeiro”, que Assis Valente escreveu em 1940 para Carmen Miranda e que esta recusou, acabando por ser gravada no ano seguinte pelos Anjos do Inferno.



Famosa foi também a versão dos Novos Baianos em 1972, que eu prefiro:



Diz a canção:
Chegou a hora dessa gente bronzeada mostrar seu valor
Eu fui à Penha, fui pedir a padroeira para me ajudar
Salve o Morro do Vintém, pendura a saia, eu quero ver
Eu quero ver o Tio Sam tocar pandeiro para o mundo sambar
O Tio Sam está querendo conhecer a nossa batucada
Anda dizendo que o molho da baiana melhorou seu prato
Vai entrar no cuscuz, acarajé e abará
Na Casa Branca já dançou a batucada de ioiô iaiá
Brasil, esquentai vossos pandeiros
Iluminai os terreiros
Que nós queremos sambar
Em 1959, Odete Amaral gravou “Chiclete com banana”, de Gordurinha e Almira Castilho, que foi um grande êxito por Jackson do Pandeiro no ano seguinte e voltou a ser gravada por Gilberto Gil.







A letra de Chiclete com banana é diferente da letra de Brasil pandeiro: se nesta se trata da divulgação samba nos EUA (através do sucesso de Carmem Miranda naquele país), naquela exige-se para o samba estatuto de igualdade relativamente às músicas importadas: só quando o samba influenciar a música americana é que hei de deixar que a música americana influencia o samba. Mas têm as duas as mesmas imagens de «fusão» e em ambas aparece a figura do Tio Sam.
Só ponho bebop no meu samba
Quando o tio Sam pegar no tamborim
Quando ele pegar no pandeiro e no zabumba
Quando ele entender que o samba não é rumba
Aí eu vou misturar Miami com Copacabana
Chicletes eu misturo com banana
E o meu samba vai ficar assim
Quero ver a grande confusão
É o samba-rock, meu irmão
Mas em compensação
Quero ver o boogie-woogie de pandeiro e violão
Quero ver o tio Sam de frigideira
Numa batucada brasileira
«Quero ver o boogie-woogie de pandeiro e violão» remete-nos para uma música menos conhecida que se encaixa também neste topos. De uma forma menos sofisticada, talvez, encontram-se as mesmas ideias e a mesma figura do tio americano no tema “Boogie Woogie na Favela”, de Dênis Brean (Augusto Duarte Ribeiro), gravado por Cyro Monteiro em 1945:


Chegou o samba minha gente
Lá da terra do tio Sam com novidade
E ele trouxe uma cadência bem maluca
Vai mexer toda a cidade
O boogie-woogie boogie-woogie, boogie-woogie
A nova dança que balança
Mas não cansa
 A nova dança que faz parte
Da política da boa vizinhança
Chegou o samba minha gente...
E lá na favela toda batucada
Já tem boogie-woogie
Até as cabrochas já dançam
Já falam do tal boogie-woogie
E o nosso samba foi por isso que aderiu
No Amazonas, Rio Grande São Paulo e Rio
O boogie-woogie Boogie-woogie, boogie-woogie
A nova dança que surgiu!
É difícil definir o que cabe nesta linhagem, que, com rigor, implica não apenas a fusão de géneros brasileiros e norte-americanos, mas referências expressas a fusão de elementos culturais dos dois países; mas não há dúvida nenhuma de que “América do Norte”, de Seu Jorge (2007), é cantiga-irmã das que referi atrás. Nem falta a menção explícita do Tio Sam. E outras há de haver, seguramente, que não conheço.


Se segura que é balanço que chegou p'ra balançar
América do Norte vai sambar também
América do Norte vai sambar again
 Americana linda com esses olho azul
Vem balançar comigo América do Sul
Pode remexer e balançar a trança
Não esquente a cabeça pois a noite é uma criança
Vem dançar o samba-rock lá do Grajaú
Americana vamo' nesse samba-blue
Me diga eu te amo e eu I love you
É um vento quente, uma onda boa
Sinto falta da garôa, das crianças, da patroa
Hot dog is very nice, but I like angú

13/08/17

Jejum e Genebra – um texto um bocadinho nerd

[Isto dos blogues generalistas é um bocado complicado e já pensei em dividir este blogue em dois ou três. Muitas vezes, autocensuro-me temas, principalmente relacionados com língua, porque os acho demasiado especializados e desconfio dos meus dotes de vulgarizador... Mas nem sempre sou coerente nessa autocensura e às vezes publico coisas que acho que não interessam a ninguém — ou interessam só a muito, muito pouca gente. Este texto, por exemplo, que decidi publicar só porque lhe acho graça, fala de coisas tão nerd que espero mesmo que interessem só a meia dúzia de pessoas – senão, é sinal de que o mundo está perdido, valha-nos Santa Edwiges da Silésia!…]

Em francês standard, as palavras  jeune, «jovem», e jeûne, «jejum», têm pronúncias diferentes*. Quando vivi em Genebra, porém, dei-me conta de que, no sotaque local, as duas palavras se pronunciam da mesma maneira. É uma pronúncia, explicaram-me, típica da Suíça e do Leste da França; mas parece que há outros francófonos que anulam a distinção nestas duas palavras.

Uma pequena curiosidade, que descobri agora: Victor Hugo ou também falava assim (mas não creio que isso se explique por ele ser de Besançon, porque não viveu lá muito tempo) ou considerava que jeune e jeûne eram rimas visuais:
Hélas ! l'ombre d'Allah n'a pas rompu le jeûne ;
La sultane est gardée, et son fils est trop jeune ;
« La douleur du pacha », in Les Orientales, 1829

Aos meus leitores que não estejam familiarizados com esta diferença entre jeune e jeûne, dou de TPC repetir em frente ao espelho
« Jamais je ne vois les jeunes genevois pratiquer le jeûne genevois »
até a coisa fluir com naturalidade.

Deixem-me explicar, já agora, que a frase é mais do que um trava-línguas forçado, já que existe mesmo o feriado do Jejum Genebrino, que a Wikipédia em português explica da seguinte maneira:
O Jeûne Genevois, que se poderá traduzir literalmente por «Jejum Genebrino», é um dia feriado no cantão de Genebra, Suíça, na quinta-feira seguinte ao primeiro domingo de Setembro. Os outros cantões suíços festejam o Jeûne Fédéral no terceiro domingo desse mês.
 A página em francês tem mais informação sobre o assunto. A tradição é antiga, mas, depois de várias peripécias de institucionalização e supressão, o dia é agora feriado desde 1966.

Não deixa de ser divertido que a assembleia de representantes dos diversos cantões que instituiu o feriado do Jejum Federal se chamasse… a Dieta Federal.

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* Vão ao Larousse ouvir a diferença, se a não conhecem, ou ao Forvo: o -eu- de jeune pronuncia-se como em peur [œ] e o -eû- de jeûne como em peu [ø].