10/05/20

Lisboa em dois poemas suecos

Erik Axel Karlfeldt (1864–1931) era um poeta sueco, que ganhou postumamente o Prémio Nobel em 1931. Muitos poemas de Karlfeldt foram musicados e um dos poemas que deu uma canção conhecida é “Em Lisboa dançam” (“I Lissabon där dansa de”)*, que foi musicado por Bo Sundblad no início dos anos 30.



Esta versão é interpretada pelo autor. Desconheço a data de gravação e de edição. Outras versões conhecidas da canção são, por exemplo, a de Margareta Kjellberg (1938), a de Sven-Olof Sandberg (1943) e a de Olle Adolphsson (1963).

Por favor, não considerem o que se segue uma tradução do poema de Erik Axel Karlfeldt. O poema é muito difícil de traduzir e é numa língua que não domino, pelo que não sou capaz de fazer uma tradução propriamente dita. O que se segue é só uma versão simplificada e muito livre (e, a espaços, feia), para ficarem com uma ideia de que se trata.
Em Lisboa, dançam
no palácio vermelho do rei,
– coroado, condecorado –
com vivas e salvas de tiros.
Soa o mar como trombone
e violino distantes
e as faces são coradas
da cor do vinho do Porto. 
E cantam os rouxinóis
em escuros bosques de moscada
para os príncipes e as princesas
no sono dorido da noite.
E esvoaçam cupidos
de asas de cristal
entre condes e barões,
que passam o dia a suspirar:
Tu, vento oeste de Salvador,
que sopras forte e suave,
desperta a cerva deitada nos lírios,
que é já tempo de folgar.
Sou um cervo na murta orvalhada,
A minha coroa é de ouro
e trago em cada haste uma rosa
que diz de mim o desejo.
Nas falésias da praia de Munga
que atroada se ouve.
Dançam os pares de mãos dadas
na alegre casa de Pillman.
E cada homem que pula
de regozijo na sala
é um imponente toureiro
e Príncipe de Portugal.
Passa uma nuvem, pesada e baça,
que sopra uma granizada,
mas a rapariga encosta a pele primaveril
aos braços esguios de Pillman.
Do alto do poste curvo, em acento outonal,
canta um galo cata-vento,
mas a rapariga sorri nos braços de Pillman
como maio no vale de Munga.
Baloiça um ramo vermelho de fruta,
contra a parede e a vidraça,
p’lo carreiro, ouve-se cantar
a voz grave do nascente.
Vento de outono, enche os foles amplos
e sopra como quem toca a trombeta!
Sou um alce casamenteiro de alta coroa
entre tramazeiras na charneca de Munga.
Abre-se o colchão pardo da nuvem
com o ribombar de um trovão
e a barca da lua, em traje dourado,
avança em roxo ondular.
Naveguemos com ela, desta
murcha casa outonal
até cidades cobertas de lírios
e castelos no silvo das murtas.
Como veem, não é de Lisboa que o poema fala. Como eu o percebo, o poema diz o cio de bichos e gente como fazendo parte do ciclo da natureza, e contrasta primavera e outono, e o frio norte e um sul idealizado – e usa apenas Lisboa como imagem ideal de gáudio e opulência. É uma imagem sem dúvida surpreendente aos meus olhos – e, arriscaria eu, aos olhos de muitos portugueses. Seria esta a imagem da capital portuguesa que prevalecia há cem anos na Suécia, ou é antes uma criação de Karlfeldt que não assenta em nenhuma ideia feita sobre um pretenso fausto português?

***
Passados 60 anos, é muito diferente a imagem de Lisboa que transparece no poema “Lissabon” de outro poeta sueco que também ganhou o Nobel, Tomas Tranströmer**. Evidentemente, um poema de Tranströmer sobre Lisboa não podia deixar de interessar os literatos portugueses. Vasco Graça Moura traduziu o poema para a coletânea 21 Poetas Suecos (Vega, 1980) (ver aqui), e encontro também uma tradução de Luís Costa no blogue Aventar. O poema de Tranströmer é muito mais fácil de traduzir que o de Karlfeldt. É um poema quase todo de frases narrativas curtas e diretas, sem grandes imagens literárias, e ambas estas traduções dão dele uma boa ideia***. Atrevo-me, ainda assim, a apresentar também a minha tradução:
No bairro de Alfama, cantavam os elétricos nas calçadas íngremes.
Havia duas prisões. Uma era para ladrões
e os ladrões acenavam através das grades.
Gritavam que queriam ser fotografados.
«Mas aqui», disse o condutor, rindo baixinho, inseguro,
«aqui estão políticos». Vi a fachada, a fachada, a fachada
e vi, lá em cima, um homem a uma janela,
com binóculos, a olhar para o mar.
Havia roupa estendida a secar no azul. Os muros estavam quentes.
As moscas liam cartas microscópicas.
Seis anos mais tarde, perguntei a uma senhora de Lisboa:
«Isto é verdade ou fui eu que sonhei?»

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* In Flora och Pomona, 1906. Texto original em sueco aqui.
** In Klanger och spår, 1966. Texto original em sueco aqui (e traduções em alemão, inglês e português).
*** Um pequeno comentário a alguns pormenores destas traduções:
Na primeira linha da segunda estrofe, está, no original, «som en kluven människa». Graça Moura traduz por «como se cortado ao meio» e Luís Costa por «como um afectado».  É certo que kluven significa «rachado; cortado ao meio» (um toro de lenha, por exemplo), mas en kluven människa é uma expressão fixa e não uma criação individual de Tranströmer e significa «uma pessoa dividida» (entre duas ou mais lealdades, gostos, crenças, etc.).
Graça Moura traduz kikare por «óculo». É verdade que kikare também pode ser um óculo, mas é muito provavelmente de vulgares binóculos que se trata.
É curioso que Vasco Graça Moura acrescente «branca» à roupa estendida a secar. Não é que não fique bem o branco da roupa à cidade branca, mas não há branco no original.
Quanto à «dama» de Luís Costa, acrescenta ao dam sueco uma dimensão que ele não tem: dam é só a palavra comum para «senhora», sem mais.



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