Em "Stereoscope" (2023), Lucy Kruger (& The Lost Boys) refere a canção "Lady with the braid" (1971) de Dory Previn de uma maneira muito original: encaixa um verso da canção de Previn na sua canção, melodia e tudo (quando o resto da melodia é muito diferente da canção de Previn), mas muda os versos "Would you mind if I leave on the light? / Would you mind if it isn't too bright?" para "Do you mind if I leave on the light / Do you mind THE THEFT OF A LINE?", ou seja, atribui abusivamente à sua própria referência o caráter de plágio. Um piscar de olho com um sorriso brincalhão.
Evidentemente, isto funciona apenas para quem, como eu, conheça a canção de Previn, mas é o mesmo com todas as referências: quem não conhecer as obras referidas não dá por elas. Disse noutro texto desta série que uma referência a outra obra é sempre uma espécie de manifesto, o dar conta de uma linhagem artística, mas é também uma forma de criar alguma intimidade ou cumplicidade com um subgrupo dos ouvintes ou espetadores, aqueles que conhecem a obra referida.
A canção de Dory Previn que Lucy Kruger refere é mais do que apenas uma bonita canção, é uma grande, grande canção. Vale mesmo a pena ouvi-la com a atenção, seguindo a letra. Como diz Amy Fleming, é uma canção tão triste, mas tão boa. Dory Previn, de quem já aqui falei, não é talvez uma cantautora muito conhecida, mas é uma cantautora de culto e Lucy Kruger é provavelmente uma das suas cultoras.
Em muitas canções de Dory Previn é o seu caráter confessional, às vezes extremo, que lhes dá uma intensidade fora de vulgar. Nesta canção, não sabemos — e não importa — o que há de confessional, se há alguma coisa confessional. Mas podia haver. A emoção é palpável e tem um caráter quase patético. A conversa banal vem-se meter pelo meio da súplica amorosa, e tudo é nervosismo, hesitação, desespero.
Lucy Kruger vem da cena neopsicadélica de Cape Town, que produziu muitas coisas interessantes. Agora vive em Berlim e começa a afastar-se cada vez mais do som das suas primeiras bandas. Não há maneira de saber se as canções de Lucy Kruger são também confessionais. Às vezes, há pequenos indícios de que bem o podiam ser, mas, para saber se é mesmo assim, falta-nos uma chave que ele não nos quer dar: o seu universo lírico é mais fechado, mais difuso, mais saltitante, mais colagem, muito diferente da contundente literalidade de Dory Previn.
«Your blue eyes
Pressed against the portal
Past present
Dim dazzling
Do you mind if I leave on the light
Do you mind the theft of a line
My my my my morning
My my my my mourning
Weight in my hands
To stop me from the calling
Tick tock full stop
Words of wonder
Words to right
Words of royal beauty bright
Write write write write
Right right right right right»
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