22/12/23

O alfabeto e a língua da ilha de Utopia

[Um excerto de um texto de 1994, agora revisto e corrigido.] 

Diz o dicionário que utopia pode significar i) com maiúscula, a ilha que dá o nome à conhecida obra de Thomas More; e, com minúscula, ii) um «modelo de sociedade ideal, geralmente concebido como oposição à ordem política existente no momento da sua criação, cuja realização se considera impossível ou pelo menos difícil de concretizar no prazo de poucas gerações»; e, por extensão deste significado, iii) um «ideal de justiça e perfeição inatingível» e iv) «quimera; fantasia».

Falta dizer que utopia é também um género literário, uma narrativa de viagens ficcional que, inaugurado pela obra de More, teve grande sucesso sobretudo no período neoclássico. A história é quase sempre a mesma: um viajante europeu chega a uma ilha, algures numa parte do mundo onde nunca chegaram outros europeus, onde encontra uma sociedade «perfeita»; e volta para contar aos europeus o que viu, para eles perceberem assim a imperfeição das suas sociedades. Já falei algumas vezes de utopia aqui no blogue.

Ao contrário dos verdadeiros viajantes, que têm de se defrontar com culturas de facto outras e que, quer as desprezem ou as admirem, não podem deixar de sentir a materialidade da sua diferença, os viajantes de lado nenhum não têm nenhuma alteridade real com que tenham de esbarrar. A utopia não é realmente uma sociedade outra, é a sociedade europeia, mas em versão melhorada. Como sou uma pessoa de línguas, falo-vos de língua: uma marca clara dessa mesmidade é a língua da Utopia de More. 

O texto de More diz-nos muito pouco sobre a língua dos utopianos. Apenas ficamos a saber que a língua (como as instituições e as leis…) é «perfeitamente idêntica» nas cinquenta e quatro cidades que constituem a república, que [p.105, A Utopia. Lisboa: Guimarães Editores, 1990] «os utopienses aprendem as ciências na sua própria língua, língua rica, harmoniosa, que é fiel intérprete do pensamento, e que se difundiu, mais ou menos alterada, por vasta extensão do globo» e que [p.119] «essa grande facilidade com que aprenderam o grego prova que essa língua lhes não era de todo estranha. Suponho-os de origem helénica; e posto que o seu idioma se aproxime muito do persa, encontram-se nos nomes das suas cidades e magistraturas alguns vestígios da língua grega».

É fácil verificar esta origem helénica do utopiano nas duas dezenas de palavras que vão aparecendo ao longo da narrativa de Rafael Hitlodeu, o navegador português que descreve a ilha: como referem muitos estudiosos da obra, Abraxa, o nome anterior da ilha, bem pode ser uma latinização de abrakae, a-brakae, «sem calças»; perto de Utopia está o país Acoria, que é certamente a-coria, «não-país»; Ademos, o príncipe da ilha, é provavelmente apenas ademos, a-demos, «sem povo»; Alaopolitas, nome dos habitantes da cidade, é a fusão de a-laos, «não-povo» com polites, «cidadão»; etc...

A edição Frobenius de Basileia de 1518 traz em apêndice, além do alfabeto utopiense, um pequeno texto nessa língua. Segundo o prólogo da mesma edição, trata-se de um acrescento do editor, Pierre Gilles, ao texto de More, o que parece ser verdade. Mesmo não sendo da autoria de More, porém, esta adenda é perfeitamente coerente com o espírito da obra e pode bem aceitar-se como parte integrante da Utopia*. E só ela nos permite ir um pouco mais longe na análise da língua da ilha. Eis a inscrição da autoria de Utopos, o fundador de Utopia, em utopiense, latim e português:

Vtopos ha Boccas peu[/] la chama polta chamaan 

Vtopus me dux ex non insula fecit insula

Utopos, General, de mim, não ilha, fez ilha

 

Bargol he maglomi baccan soma gymnosophaon 

Vna ego terrarum omnium absque philosophia 

Só eu, das terras todas, sem filosofia,

 

Agrama gymnosophon labarem bacha bodamilomin

Civitatem philosophicam expressi mortalibus

Estado filosófico exprimi aos mortais

 

Voluala barchin heman la lauoluola drame pagloni

Libenter impartio mea non grauatim accipio meliora

De boa vontade reparto o que é meu, sem má vontade aceito melhor


Não tenho a certeza de que haja uma correspondência assim, palavra a palavra, entre o texto utopiense e o texto latino. Mas esse perfeito paralelismo é bastante provável, já que o poema tem o mesmo número de palavras nas duas línguas e que as que são identificáveis (Utopos, os pronomes, as partículas de negação, o nome “filosofia” e os advérbios de modo do último verso) ocupam os mesmos lugares nos textos nas duas línguas.

Bem vistas as coisas, se tudo é assim tão da mesma forma – o que nunca acontece em duas línguas diferentes – é porque se trata, digamos...da mesma língua!





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* É também o que faz, por exemplo, Pierre-François Moreau [Le récit utopique, droit natural et roman de l'état. Paris: PUF, 1982].


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