26/11/23

O marmelo: em doce, em infusão e em calão

Para mim, chá de marmeleiro sempre quis dizer «tareia» e apenas isso. Mas descobri um dia, para minha surpresa, que é também o nome de uma infusão – de folhas de marmeleiro, sim – ou de diversos chás aromatizados – com folha ou óleo ou aroma de marmeleiro. Aliás, se procurarem em Google a expressão, ela nem refere mais vezes a tareia que os chás.

Se houvesse em português um calão rimado como o rhyming slang inglês, pensei eu uma vez, chá bem podia querer dizer «tareia», mesmo sem ser de marmeleiro.

Para quem não conheça rhyming slang, explico que, nesta forma de calão, se usa uma sequência de duas palavras para substituir outra que rima com a segunda das duas. Por exemplo, Hampstead Heath, nome de um parque londrino, significa teeth, «dentes».  Muitas vezes, estas duas palavras são, não um nome composto, como no exemplo anterior,  mas antes um par «natural»: por exemplo, weasel and stoat, «doninha e arminho» (dois animais semelhantes) significa, coat, «casaco». É frequente dizer-se só a primeira das duas palavras, omitindo a que rima, o que complica ainda mais a coisa: dog («cão») pode querer dizer «telefone», porque dog and bone («cão e osso») rima com phone, «telefone». 

Voltando então à proposta de um termo novo no inexistente calão rimado português, chá e torradas rima com porradas, pelo que se diria, por exemplo, «deu-lhe chá» para dizer «deu-lhe porrada». Agora, como talvez fosse de esperar, quando procurei «chá e porradas» e «chá com porradas» na Internet, constatei imediatamente que muita gente tinha já pensado nisso antes de mim.

Chama-se o marmeleiro Cydonia oblonga. Acho muito engraçado este nome. Apetece transformá-lo, com a grafia modificada, em personagem de BD: «As aventuras de Sidónia Oblonga, Tomo I: Chá e torradas em Hampstead Heath».

Além do chá, o marmeleiro deu-nos a palavra portuguesa com mais fortuna fora do português – marmelada. Muitas vezes me interroguei sobre o porquê de tal fortuna: «Terão os portugueses exportado muita marmelada nalgum período da História, ao ponto de a marmelada portuguesa e a palavra que a designa se tornarem famosas pela Europa fora?» Há alguns meses, alguém me deu a conhecer um artigo que confirma a minha hipótese; parece que sim, que os portugueses exportavam marmelada no século XV (um artigo de luxo, na época) e, no século XVI, já se encontravam em Inglaterra receitas de marmelade com outros frutos. Aquilo a que em inglês se chama hoje marmelade, porém, que é sempre de citrinos, começou a fazer-se na Escócia no séc. XVII. Mas leiam o artigo todo, que é muito interessante e bastante completo e me parece fidedigno, apesar de não estar assinado e não incluir bibliografia, pelo que não ponho as mãos no fogo por ele.

Hoje, palavras derivadas de marmelada significam coisas diferentes em diferentes línguas – não forçosamente os doces de citrinos dos ingleses, mas também doces de outras frutas. Às vezes é assim, com as palavras e não só: espalha-se melhor o que passa a ser outra coisa nos sítios onde se espalha…

Em português, marmelada foi também ganhando, com o tempo, significados vários, alguns dos quais todos conhecem e outros menos comuns. Vejam aqui.



[Este texto foi publicado aqui na Travessa a 29 de agosto d 2013, depois foi retirado para revisão e correção há uns meses e volta agora com umas quantas alterações.]

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