15/11/23

A história de Charles e de outros poliglotas

Conheço um senhor chamado Charles que nasceu na Occitânia, já não me lembro onde, por alturas do início da Segunda Guerra Mundial. Os pais dele eram judeus polacos da Galícia (que faz hoje parte da Ucrânia) e tinham fugido para França das perseguições aos judeus na sua terra. Não me lembro já porquê (talvez o pai e a mãe tivessem línguas maternas diferentes), Charles aprendeu em casa o iídiche e o polaco. Na rua, aprendeu occitano. E só quando entrou para a escola começou a aprender francês, que é hoje a língua que melhor domina. Mais tarde, porque o trabalho o levou para outros países, aprendeu também inglês e alemão (que foi fácil para ele, por já saber iídiche), mas isso é outra história. 

Esta história de plurilinguismo, que parecerá estranha a quem cresceu e viveu sempre numa língua só, como é o caso da grande maioria dos portugueses, não é tão extraordinária como isso. Um dos melhores amigos do meu filho na Escola Internacional de Chimoio, em Moçambique, o Wilhelm, era alemão e, quando viemos para a Dinamarca, a família do Wilhelm mudou-se também para a Alemanha. Quando o fomos um dia visitar perto de Niböl, não muito longe da fronteira dano-alemã, ficámos a saber que coexistiam ali pessoas de quatro línguas maternas.  O amigo do meu filho falava português, inglês e alemão (alemão standard, alto-alemão) e andava agora numa escola dinamarquesa, onde aprendia dinamarquês e alemão. Os pais tinham escolhido a escola dinamarquesa porque achavam que era a melhor da zona, e há ali uma escola dinamarquesa porque vivem ali muitas famílias (alemãs) de língua dinamarquesa, até porque a região fez, durante muito tempo, parte da Dinamarca. Mas também há, na zona, quem tenha o baixo-alemão como língua materna e o frísio. No sul da Dinamarca, também há ainda famílias que têm o alemão como língua materna. Não sei se alguma vez houve quem tivesse o baixo-alemão como língua materna na Dinamarca, nunca ouvi nem li nada sobre isso, mas sei que já houve falantes de frísio, que agora já não existem. O frísio é ainda uma das línguas oficiais dos Países Baixos, e, entre este país e a Alemanha, tem agora cerca de 480.000 falantes nativos. 

A escolarização é em parte responsável pelo desaparecimento de muitas línguas que os governos das várias nações não quiseram durante muito tempo considerar oficiais e que não foram, por isso, línguas de ensino e administração. Além disso, os estados-nação modernos tiveram, muitas vezes, políticas de repressão brutal das línguas que não eram consideradas oficiais. 

França é um bom exemplo dessa erradicação das línguas nacionais — violenta e bastante bem-sucedida —, mas não é o único. Fiz as minhas primeiras viagens em França em 1976 e ainda cheguei a encontrar franceses, falantes de catalão ou de poitevino-saintongês, que falavam pouco francês (e cheguei até a conhecer dois deles, um casal, quando vivi num lugarejo perto de Niort), mas os jovens franceses de hoje já não têm como língua materna o provençal, o occitano, o bretão, o catalão, o picardo, o normando e por aí fora. Com sorte, e sobretudo se não forem de uma cidade grande, ainda compreendem um bocadinho dessas línguas, porque as ouviram ou ouvem falar aos mais velhos. E o mesmo em Itália e em muito outros países. 

Conheci há pouco tempo o Luigi, um genovês de trinta e cinco anos, que dizia saber mesmo muito pouco genovês (ou lígure, se preferirem).  Dizia que, às pessoas citadinas da idade dele ou mais jovens, não lhes servia de nada o genovês. Se vivesse no campo, era capaz de ter aprendido. Mas chateava-o, na sua qualidade fã de Fabrizio de André, só compreender as letras em italiano oficial (toscano) e não perceber as outras que o grande cantautor fez na língua da sua cidade natal. Na Ligúria, menos de 10% das pessoas falam lígure. Nem sempre a situação das outras línguas italianas (veneto, friulano, piemontês, lombardo, siciliano, tantas que há…) é tão grave como a do genovês, mas estão todas ou definitivamente ameaçadas ou gravemente ameaçadas, para usar a terminologia do UNESCO. Curiosamente, as línguas que, nas regiões onde são faladas, têm maior percentagem de falantes nativos relativamente ao italiano não são línguas latinas, mas sim línguas germânicas — falares tiroleses e alemânicos.

Passando agora da Europa para África, também conheci em Moçambique muitos poliglotas. Moçambique tem muitas línguas (contam-se entre oito e 41, mas é sempre difícil contar línguas) e as pessoas com formação profissional começaram a ter muita mobilidade. Funcionários do Estado a maior parte deles, iam sendo colocados em vários lugares, onde ficavam quatro ou cinco anos. Dou-vos um exemplo de um senhor que conheci chamado Monteiro. O Monteiro era do Alto Molócuè e de língua materna lómuè, mas tinha estudado em Quelimane, onde tinha adquirido um nível razoável de chuabo e depois trabalhado muito tempo em Maputo, onde aprendeu bastante ronga e changana, e depois de uns anos na sua terra natal, mudou-se para Chimoio, onde aprendeu chona. Além disso, também falava muito bem português, como seria de esperar de uma pessoa com o seu nível de educação, toda ela em português. Em Moçambique, é o português que cresce a olhos vistos (língua materna de cerca de 5% da população em meados dos anos 90, é agora a língua materna de cerca de 17% dos moçambicanos), mas não há, por enquanto, perigo de abafar completamente as línguas com que convive. Por enquanto.     

E isto tudo a propósito de quê? De nada de especial, é mais um texto ao correr do teclado, a propósito de línguas e pessoas que conheço e recordações de viagens. Falo aqui de duas coisas diferentes: de sítios onde se falam várias línguas e de pessoas que falam várias línguas. São coisas diferentes. Há pessoas que falam só uma língua, embora sejam de sítios onde se falam várias; e há pessoas que falam várias línguas e são de sítios onde se fala só uma. Agora, feliz ou infelizmente — vocês julgarão, com a cabeça e com o coração — cada vez se fala mais a língua oficial de cada país e as outras vão desaparecendo…

Como se ilustra um texto assim? Que tal uma versão frísia de uma bonita canção originalmente escrita em sueco por um cantautor de língua materna neerlandesa?

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