06/04/24

Do trema, do seu desaparecimento e da falta que às vezes faz

 

Se o desaparecimento de letras não pronunciadas foi, na última reforma ortográfica, um passo em frente no sentido de levar mais longe a lógica fonológica que subjaz à reforma republicana, já o desaparecimento do trema foi um passo atrás. 

É claro, em ortografia faz-se muitas vezes compromissos entre a lógica e a simplicidade. A não marcação do acento tónico na escrita do inglês ou do italiano são exemplos disso – por um lado, reduz-se o número de sinais e de regras a aprender; por outro, deixa de se assinalar todo um aspeto importante da língua. Não tenho dúvidas de que o que preside à eliminação do trema na grafia do português (do Brasil apenas, porque em Portugal não se usava) é essa vontade de simplificação. Para ser coerente com o espírito fonológico da ortografia portuguesa, porém, devia ter-se feito ao contrário: devia o uso do trema ter-se alargado à ortografia do português fora da América. Há outros casos, mas, por exemplo, a distinção entre as sequências /kwe/, /kwi/ e /ke/, /ki/ ou /gwe/, /gwi/ e /ge/, /gi/ em, por exemplo, cinquenta e apoquenta, tranquilo e quilo, desague e afague, preguiça e linguiça, é efetivamente fonológica e seria, por isso, mais lógico grafar cinqüenta, tranqüilo, desagüe e lingüiça. (Há outras soluções possíveis, mas seriam tão mal recebidas que é melhor nem pensar nelas…).

Em Portugal, o trema foi suprimido no Acordo Ortográfico de 1945. É claro, a supressão do trema foi na altura criticada — como é sempre criticada qualquer alteração na ortografia —, mas, neste caso, com razão, na minha perspetiva. 

O dramaturgo, poeta e escritor João Silva Tavares publicou a propósito, no Diário de Lisboa, este divertido poema que encontrei no Ciberdúvidas da Língua Portuguesa (mantenho a grafia original). Silva Tavares estranhava a supressão do trema em muitas palavras, mas não em saudade. Não conheço a história da palavra ao pormenor, e não sei se a forma sem ditongo foi muito difundida em alguma época ou lugar, mas, na Lisboa de 1945, devia já ser, como agora, forma muito rara. Embora os dicionários registem as duas pronúncias, a maioria dos falantes do português não pronuncia sa-u-da-de, mas sim sau-da-de — em todas as variantes da língua. 

«SIC TRANSIT GLORIA MUNDI»


Não há que ver—tudo morre. 
Chegada a hora suprema,
nada, nada nos socorre...

Desta vez, morreu o «trema»!


Morreu, não:—foi condenado

pela nossa Academia,

no acordo há tempos firmado

referente á Ortografia.


O «trema», tal corno é

do conhecimento geral,

quando se põe sobre o «u»,

torna expressiva a vogal.


Acento que muita gente

se esquecia de empregar,

consiste, graficamente,

em dois pontinhos a par.


Eu, por mim, digo em verdade:

—nas outras palavras, não,

mas na palavra «Saüdade»,

produzia-me impressão.


Por quê, saudade com «trema»?

Não lhes parece arriscado

complicarmos um problema

que é já de si, complicado?


Fora os «pontos» escusados,

por inuteis, por hostis!

Bem basta sermos forçados

a pôr os «pontos nos i i».


Louvemos, pois, o sistema

do acordo, já concluído,

pois dando sumiço ao «trema»

acabou com o «u» tremido!


Depois disto já firmado,

um amigo intrometido

e filólogo afamado,

declarou-me, compungido,

que não se diz «u» tremido

mas «u» tremado.


Que novidade!... Mau grado

o seu famoso bestunto,

o «sábio» não percebeu

que se eu escrevesse «u» tremado,

o «tremado» neste assunto

não era o «u»:—era eu!


Alexandre O’Neil dizia do trema em «Divertimento com sinais ortográficos» (de Abandono vigiado, 1960)

¨

Frequento palavras estrangeiras


Já vivi em saudade,

mas expulsaram-me

(p'ra sempre?...)

da língua portuguesa.





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