31/03/24

Criminosos, cães e dilemas morais

 

Num artigo de 2 de fevereiro do blogue 2 Dedos de Conversa, Helena Araújo propõe o seguinte dilema: «Se uma casa estivesse a arder, e lá dentro estivesse um cão e o Hitler, e você só pudesse salvar um deles, qual deles salvava?» A sua própria resposta (que, diz ela, lhe veio «rápida e segura») é que o Hitler era muito pesado.

O Tintim, esse, não hesitou e salvou mesmo o Hitler de morrer afogado. Bom, como o Milou tinha desaparecido, não se lhe pôs o problema da escolha entre Hitler e um cão.

Esta imagem é d'O caso Girassol (1956) e, claro, não é Hitler que Tintim salva – mas parece,
o que faz com que esta imagem circule na Internet com intenções humorísticas.

Isto fez-me pensar em John Suart Mill — mais concretamente, numa nota de rodapé de Utilitarianism. Escreve J. S. Mill a certo passo [traduzo eu do original]:

Cabe à ética dizer-nos quais são os nossos deveres, ou por que teste podemos conhecê-los; mas nenhum sistema de ética exige que o único motivo de tudo o que fazemos seja um sentimento de dever; pelo contrário, noventa e nove por cento de todas as nossas ações são realizadas por outros motivos, e está muito bem que o sejam, se a regra do dever não as condenar. É ainda mais injusto para com o utilitarismo que este equívoco específico se torne motivo de objeção, na medida em que os moralistas utilitaristas foram mais longe que quase todos os outros ao afirmar que o motivo nada tem a ver com a moralidade da ação, embora muito com o valor de quem age. Quem salva um semelhante de morrer afogado faz o que é moralmente correto, quer o seu motivo seja o dever ou a esperança de ser pago pelo trabalho a que deu; e quem trai o amigo que nele confia é culpado de crime, mesmo que o seu objetivo seja servir outro amigo com quem tem maiores obrigações.

A passagem não tem relação nenhuma com o dilema moral atrás apresentado, nem com o quadradinho de Hergé com que aqui brinco. Mas J. S. Mill faz uma interessante nota de rodapé a esta passagem do seu texto, em que responde a uma objeção à ideia acima apresentada:

Um oponente, cuja honestidade intelectual e moral reconheço com prazer (o Rev. J. Llewellyn Davis), objetou a esta passagem, dizendo: «É claro que o há de certo ou errado em salvar um homem de morrer afogado depende muito do motivo com que se o faz. Suponhamos que um tirano, quando um inimigo seu se lança ao mar para lhe escapar, o salva de morrer afogado apenas para poder infligir-lhe torturas mais requintadas — seria sensato descrever esse salvamento como “uma ação moralmente correta”? (…)»

Eu digo que uma pessoa que salve outra de morrer afogado para depois a torturar até à morte não difere apenas no motivo de outra pessoa que faz a mesma coisa por dever ou benevolência; é o próprio ato que é diferente. O salvamento do homem é, no caso em apreço, apenas o início necessário de um ato muito mais atroz do que seria deixá-lo afogar-se. Se o Sr. Davis tivesse dito: «O que há de certo ou errado em salvar um homem de morrer afogado depende muito — não do motivo, mas sim — da intenção», nenhum utilitarista discordaria dele. (…) A moralidade da ação depende inteiramente da intenção — isto é, do que quem age quer fazer. Mas o motivo, isto é, o sentimento que o leva a querer realizá-la, quando não faz diferença no ato, também não altera de modo nenhum a sua moralidade (…).

Não me adianto na discussão da relevância do motivo de uma ação para a moralidade da mesma e da distinção milliana entre motivo e intenção. Proponho antes modificar um pouco a reflexão proposta por Llewellyn Davis: imaginemos que, em vez de um tirano que salva um oponente de morrer afogado para depois lhe infligir horríveis torturas, se trata antes do adversário de um tirano que o salva para ele poder ser julgado e condenado pelos crimes que cometeu. Como avaliar agora o salvamento?

Quando publicou o dilema e a sua resposta no Facebook, a Helena teve, é claro, muitos comentários. Algumas das pessoas que comentaram o post da Helena defenderam o princípio ético fundamental de que, quando se trata de escolher quem deve viver e quem deve morrer, mesmo o pior humano tem prioridade em relação a um animal não humano — a estranha solidariedade da espécie, como dizia já não me lembro quem. Mas não é essa a única razão possível para decidir salvar Hitler: pode-se salvá-lo «para o entregar directamente num tribunal», como a Helena sugeria numa resposta a um comentário à sua publicação.

Se é moralmente mais correto ficar a olhar para a morte por afogamento dos hitleres deste mundo ou ir buscá-los à água para responderem em tribunal pelos seus crimes, eis uma boa discussão moral — tanto numa perspetiva deontológica (há um princípio ético universal de base que o justifique?) como numa perspetiva utilitária (condená-lo tem consequências mais positivas para a maior parte das pessoas que deixá-lo morrer?). Que opinais?

1 comentário:

conversas várias disse...

Uma pessoa escreve um post a correr e sem pensar, e leva com esta delícia de texto muito bem decantado, a provar que, ao contrário do que se diz por aí, a blogosfera está viva. E continua um lugar de inteligência.
Obrigada, Vítor!

Já que me obrigas a pensar, aqui vai: deixar morrer o tirano em vez de o salvar para o entregar a um tribunal era aceitar fazer justiça por suas próprias mãos. Sabe-se lá se ele não arranjava maneira de escapar e de ficar a rir de nós...

Outra questão era, por exemplo, o Hitler estar a afogar-se em 1942. Aí, não tinha dúvidas.

E agora, para complicar: vi algures nas redes sociais uma imagem de Trump pendurado do lado de fora da varanda de um prédio altíssimo, tentando manter-se agarrado ao parapeito. E a pergunta: "Vá, diz com sinceridade: que fazias?!
E se fosse o George W. Bush na altura em que os republicanos andavam a inventar pretextos para invadir o Iraque?
E se fosse, hoje mesmo, o Putin? Ou o Netanyahu, ou um dos seus ministros mais fanáticos?

Que fazias, se fosse alguém que comprovadamente é uma grande ameaça para o nosso mundo de equilíbrio sempre muito precário, alguém que, como temos visto, consegue chegar ao poder ou manter-se nele e torna tudo muito pior?