17/04/24

Estupidez e discriminação, mais uma vez

 Ricky Gervais (traduzo eu):

«Quando se está morto, são se sabe que se está morto. É só para os outros que isso é doloroso e difícil. O mesmo acontece quando se é estúpido.»

Encontra-se a mesma ideia noutro meme que circula nas redes sociais: 

«As pessoas gordas sabem que são gordas. As pessoas magras sabem que são magras. Não seria maravilhoso se as pessoas estúpidas soubessem que são estúpidas?»

Seria quase tentado a dizer que estas afirmações são uma estupidez e que, por isso mesmo, tenho de lhes dar razão: quem as diz não faz ideia da estupidez que são. Mas não é assim. São apenas afirmações em que tenho boas razões para não acreditar e que quero aqui discutir. Aliás, já aqui falei desta questão uma vez, mas quero agora desenvolver um pouco a discussão.

Precisamos de assentar, antes de mais, no que queremos dizer com estúpido e estupidez. Estúpido pode significar coisas como «atónito»; «insensato», «imprudente»; «grosseiro», «indelicado»; «desinteressante», «entediante»; ou «absurdo», mas nas frases que servem de introdução a este texto, estúpido é usado no sentido de «falto de inteligência», que é, provavelmente, o significado mais imediato da palavra para a maior parte das pessoas.

É claro, pode considerar-se que estúpido é muitas vezes apenas um termo de forte desaprovação. Muitas vezes, chamamos estúpido a alguém apenas para discordar veementemente das suas ideias ou ações mais do que para o acusarmos propriamente de alguma deficiência cognitiva. Se escolhemos utilizar estúpido nesta situação, porém, é para afirmarmos que falta à pessoa que acusamos de estupidez a capacidade de compreender ou sentir algo que nós compreendemos e sentimos. Há sempre alguma acusação de falta de capacidade.

Se nos detivermos agora a analisar agora esta ideia de falta de inteligência, constatamos umas quantas coisas importantes:

A capacidade cognitiva de uma pessoa não é adquirida e está fora do seu controlo — a não ser que identifiquemos inteligência com conhecimento, o que não parece muito sensato. A dificuldade de aprendizagem é, claro está, um obstáculo à aquisição de conhecimentos, mas apenas um dos muitos obstáculos possíveis, e há pessoas muito inteligentes que nunca tiveram, por razões várias, acesso à aquisição de conhecimentos. Assim sendo, o nível de inteligência de uma pessoa, seja lá o que for que com isso queiramos dizer, é como a cor dos olhos ou da pele, a forma das pernas ou a tendência inata para a corrida ou para determinada doença.

A falta de capacidade cognitiva de uma pessoa, quando existe, não se aplica necessariamente a todas as suas funções cognitivas, mas apenas a algumas delas. Por exemplo, pode ser-se muito fraco em raciocínio abstrato e ter uma excelente memória ou uma grande capacidade de organizar volumes no espaço, etc. Muitas pessoas eram antigamente simplesmente consideradas «burras» em geral e incapazes de aprendizagem por terem dislexia ou discalculia — o que hoje está longe de ser considerado sinónimo de burrice.

A falta de capacidade cognitiva não é uma condição comum entre humanos — todos fazemos coisas desarrazoadas, estupidezes (!), mas a falta de inteligência como condição (ser estúpido, ter deficiências cognitivas) é rara.

E por fim, a falta de inteligência não tem implicações morais: são possíveis todas as combinações de qualquer grau de inteligência com qualquer grau de moralidade. Muitas pessoas más, seja lá o que for que cada qual defina como mau, são inteligentes, algumas até acima da média, e muitas pessoas com pouca inteligência são boas pessoas.

A estupidez está muitas vezes incluída na retórica discriminatória como sendo, precisamente, a característica que mais justifica a discriminação. Às vezes, é a (pretensa) categoria que justifica, só por si, a discriminação. É certo que, às vezes, se atribuem, a quem se discrimina, outras qualidades negativas, como a maldade, a preguiça, o espírito de trapaça, etc. Mas, de que costuma mais rir-se quem se ri de anedotas de alentejanos (ou belgas, ou aarhusianos, ou seja lá o que for, as histórias são as mesmas em todo o lado, muda só o objeto de chacota), do Samora Machel ou de loiras, entre muitas outras? Da sua pretensa estupidez…

Talvez a característica com que seja mais fácil comparar as deficiências cognitivas seja a fealdade. Ser feio tem, em parte, as características que enumerei atrás para ser pouco inteligente e também resulta em desvantagens ao longo da vida, às vezes grandes. No entanto, há muito quem não ache bem acusar outras pessoas de serem feias, mas não se coíba de chamar burros àqueles de quem discorda — ou até de considerar a burrice em geral como um dos males da humanidade.

Voltemos ao início do texto: «Não seria maravilhoso se as pessoas estúpidas soubessem que são estúpidas?» Tenho boas razões para crer que, tal como as pessoas feias sabem bem que são feias, também as pessoas com alguma deficiência cognitiva sabem muito bem que a têm. Tanto a umas como outras, foi-lhes recordada toda a vida a sua «falha», de várias formas, umas mais diretas que outras. E não há nisso nada de maravilhoso – nem para essas pessoas, nem para ninguém…



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