31/05/24

Línguas românicas vivas

 

Um dia, farto que estava de ouvir dizer que as línguas latinas são o francês, o português, o espanhol, o italiano e o romeno, decidi fazer uma pequena lista das línguas latinas. Evidentemente, isto é, com rigor, uma tarefa impossível, já que não há maneira de distinguir línguas de dialetos e os linguistas não estão de acordo sobre que variantes linguísticas do espaço neolatino se devem considerar ou não variantes dialetais de outra língua ou uma língua de pleno direito. Tive de fazer algumas escolhas e nem todos concordarão com as escolhas que fiz. Agradeço críticas e sugestões para melhorar o artigo.

Depois de cada língua, ponho o seu código internacional ISO 639-3 entre parênteses curvos. Depois, a sua situação de vulnerabilidade, de acordo com o UNESCO: NA para «não ameaçada«, VU para «vulnerável», PE para «em perigo» PG para «em perigo grave». Indico entre parênteses retos os países onde são falados e onde são (muitas vezes só na região onde são faladas) oficiais ou cooficiais (O) ou línguas de minorias com alguma forma de reconhecimento oficial (R). Dou por fim o número aproximado de falantes nativos e é com base nessa variante que a lista está organizada, das línguas com mais falantes nativos para as línguas com menos falantes nativos. Só incluo línguas com mais de 10.000 falantes nativos. Este número é perfeitamente arbitrário. Os dados sobre o nome de falantes provêm de fontes diversas e alguns são mais antigos do que outros, de maneira que há que desconfiar um pouco de muitos deles, que são hoje provavelmente mais baixos do que os que indico. É de notar que algumas línguas, como o espanhol, têm um grande número de falantes não nativos e há até casos, como o do catalão, em que o número de falantes como língua segunda, é, segundo algumas fontes, apresentado como sendo superior ao do de falantes nativos. No caso do estremenho, do ladino/judeu-espanhol e da fala estremenha, não consegui encontrar o grau de vulnerabilidade definido pelo UNESCO.

Nos nomes das línguas, há links para um vídeo falado nessa língua, para que quem não as conheça possa ouvir como soam (exceto nas quatro primeiras, que todos conhecem). Muitos destes vídeos são do projeto Wikitongues, que pretende precisamente criar documentação acessível de línguas minoritárias e contribuir para a sua preservação. Nalguns casos, nota-se claramente uma influência da língua oficial do país (espanhol francês, italiano, português) no discurso na língua minoritária. Como falantes do português, é-nos fácil notar isso no vídeo em mirandês. Mas também no vídeo em picardo, por exemplo, é fácil notar a influência do francês. O «verdadeiro» picardo é, ao que parece, raro hoje em dia e o ch'ti atual está muito contaminado pelo francês. É natural, dado que as línguas oficiais são as línguas de escolarização, da rádio e da televisão, das instituições públicas, etc. 

A questão da classificação dos crioulos de base espanhola, francesa ou portuguesa como línguas neolatinas é complicada e não sei praticamente nada sobre ela. Não os incluo nesta lista.

Castelhano ou Espanhol (spa) NA [Argentina (O), Bolívia (O), Chile (O), Colômbia (O), Costa Rica (O), Cuba (O), El Salvador (O), Equador (O), Espanha (O), Guatemala (O), Guiné Equatorial (O), Honduras (O), México (O), Nicarágua (O), Panamá (O), Paraguai (O), Peru (O), Porto Rico (O), República Árabe Saaraui Democrática (O), República Dominicana (O), Uruguai (O) e Venezuela (O)] 500.000.000 falantes nativos

Português (por) NA Angola (O), Brasil (O), Cabo Verde (O), China (O), Guiné-Bissau (O), Guiné Equatorial (O), Moçambique (O), Portugal (O), São Tomé e Príncipe (O), Timor-Leste (O) 230.000.000 falantes nativos

Francês (fra) NA [Bélgica (O), Benim (O), Burundi (O), Camarões (O), Canadá (O), Chade (O), Comores (O), Congo (O), Costa do Marfim (O), Djibuti (O), EUA (R), França (O), Gabão (O), Guiné (O), Guiné Equatorial (O), Haiti (O), Índia (O), Itália (O), Líbano (R), Luxemburgo (O), Madagáscar (O), Maurícia (R), Mónaco (O), Níger (O), República Centro-Africana (O), República Democrática do Congo (O), Ruanda (O), Senegal (O), Seicheles (O), Suíça (O), Togo (O), Vanuatu (O) (oficial não de jure mas de facto na Argélia, Mauritânia, Mali, Marrocos e Tunísia)] 74.000.000 falantes nativos

Italiano (ita) NA [Bósnia-Herzegovina (R), Croácia (O), Eritreia (R), Eslovénia (O), Itália (O), Roménia (R), São Marino (O), Suíça (O), Vaticano (O)] 65.000.000 falantes nativos

Romeno (nalguns países conhecido como Moldavo) (ron) NA [Hungria (R), Moldova (O), Roménia (O), Sérvia (O), Ucrânia (R)] 25.000.000 falantes nativos

Napolitano (nap) VU [Itália] 5.700.000 falantes nativos

Siciliano (scn) VU [Itália (R)] 4.700.000 falantes nativos

Catalão (também conhecido nalgumas regiões como Valenciano, Maiorquino, Menorquino, etc.) (cat) VU [Andorra (O), França (M), Itália (O), Espanha (O)] 4.100.000 falantes nativos (e mais de 5 milhões como L2)

Véneto (também chamado Taliano no Brasil e Chipileño no México) (vec) VU [Brasil (R), Itália (R), Mexico (R)] 3.900.000 falantes nativos

Lombardo (lmo) PE [Itália, Suíça] 3.800.000 falantes nativos

Galego (glg) PE [Espanha (O)] 2.400.000 falantes nativos

Piemontês (pms) PE [Itália (R)] 2.000.000 falantes nativos

Emiliano (egl) PE [Itália (R)] 1.300.000 falantes nativos

Sardo (srd) PE [Itália (R)] 1.000.000 falantes nativos (2010 -2016)

Picardo (também conhecido como Ch'timi ou Ch'ti) (pcd) PG [Bélgica (R), França] 700.000 falantes nativos

Lígure (chamado Monegasco no Mónaco) (lij) PE Itália (O), Mónaco (O) 600.000 falantes nativos

Romanholo (rgn) PE [Itália, San Marino] 430.000 falantes nativos

Friulano(fur) PE [Itália] 420.000 falantes nativos

Asturo-Leonês (ast) PE [Espanha (R)] 250.000 falantes nativos

Arromeno (também conhecido como Vlach ou Mácedo-Romeno) (rup) PE [Albânia (R), Bulgária, Grécia, Macedónia do Norte (R), Roménia e Sérvia] 210.000 falantes nativos

Occitano (também chamado Provençal em França e Aranês em Espanha) (oci) PE [Espanha (O), França (R), Itália (R), Mónaco (R)] 200.000 falantes nativos

Estremenho (ext) [Espanha] 200.000 falantes nativos

Franco-Provençal ou Arpitano (frp) PE [França (R), Itália (R) e Suíça (R)] 157.000 falantes nativos

Sassarês (sdc) PE [Itália (R)] 100.000 falantes nativos

Ladino ou Judeu-Espanhol (lad) [Bósnia e Herzegovina (R), França (R), Grécia, Israel (R), Turquia] 51.000 falantes nativos

Ladino Dolomítico (lld) PE [Itália (R)] 41.000 falantes nativos

Romanche (ou Grisão) (roh) PE [Suíça (O)] 40.000 falantes nativos

Normando (chamado Jersês e Guernsiês em Jersey e Guernsey) (nrf) PE [França, Reino Unido (R)] 20.000 falantes nativos

Corso (cos) PE [França (R)] 15.000 falantes nativos

Fala estremenha (fax) [Espanha (R)] 11.000 falantes nativos

Aragonês (arg) PE [Espanha (R)] 10.000 falantes nativos

Mirandês (mwl) PE [Portugal (R)] 10.000

Eis um mapa que dá uma boa ideia da distribuição geográfica das línguas românicas. A lista das línguas representadas no mapa não coincide completamente com a lista acima. 

Autoria: Yuri Koryakov, modificado por mim (Wikimedia commons, daqui)

Segue-se uma lista com as traduções de comer, beber, pão e água para 34 línguas românicas (as 31 acima e mais três com menos de 10.000 falantes). Só por curiosidade.

Tendo só em conta estas palavras, parece haver uma distinção de base entre as línguas em que a palavra mais imediata para «ingerir alimentos sólidos» vem do latim clássico comedere, latim tardio comere (as línguas iberorromânicas), e as línguas em que a palavra o mesmo conceito vem do latim manducare (as outras todas…). Mas é uma distinção algo fortuita. Tivesse escolhido outras palavras e saltariam à vista outras aparentes distinções. Todas as organizações são complicadas, mas podem distinguir-se dois grandes ramos, as línguas românicas orientais e as línguas românicas ocidentais, com algumas pelo meio que se discute onde pertencem ou que podem ser um terceiro grupo… As orientais dividem-se em ítalo-dálmatas e em balco-românicas e as ocidentais em ibero-românicas e galo-românicas. A Wikipédia dá uma panorâmica simples destas classificações

Também chama a atenção a variação de uma mesma palavra numa mesma língua. Pode pensar-se: «Como pode haver tantas maneiras, e tão diferentes, de dizer beber em sardo ou pão em romanche? A maior variação dialetal pode depender de fatores como fronteiras políticas e, tradicionalmente, também do isolamento geográfico das comunidades de falantes. Outro fator é a falta de padrão ou uma padronização recente e ainda pouco influente. Quando uma língua é padronizada, muitas variantes passam a ser consideradas incorretas e desaparecem dos registos escritos e dos registos orais menos educados. Quando não há tanto peso da norma padrão, os linguistas tendem a registar todas as formas produzidas em vários dialetos. Se os registos do português seguissem essa lógica, seria preciso registar, (e só no português europeu) as formas comêre e comêri, bebêre, bebêri, buber, buer, auga, entre outras, que são efetivamente produzidas pelos falantes da língua, mas que só em contextos muito especiais são registadas nas descrições do seu vocabulário.


P.S.: Algumas curiosidades

Ao procurar vídeos nas várias línguas, encontrei algumas coisas curiosas, que quero aqui destacar. Acho muito interessante, por exemplo, que um americano dos EUA, da quinta geração de imigrantes sicilianos, ainda fale siciliano (e perfeitamente, a julgar pelos comentários). 

Tão habituados que estamos às fronteiras dos estados nações atuais e à ideia de uma língua nacional para cada um deles, esquecemo-nos de que há muitas vezes um continuum de dialetos mutuamente inteligíveis através de fronteiras políticas. Para um português que conheça o galego, o asturo-leonês (incluindo o mirandês) e a fala estremenha, por exemplo, isso parecerá óbvio. Mas também é interessante ver como, noutros lugares, duas pessoas de nacionalidades diferentes comunicam sem problemas em línguas diferentes. Laura é espanhola, da província de Barcelona, e fala catalão, que é a sua língua materna; e Gabrièu é francês, de Nice (que não é logo ali ao lado da Catalunha), e fala occitano, em que é perfeitamente fluente, mas que não é a sua língua materna.  

Finalmente, e já que estamos em maré de catalão, um vídeo em que Joan Lluís-Lluís, um francês de Perpignhão, fala, num catalão impecável, dos problemas dessa língua – e de várias outras línguas – em França. Isto é interessante, porque não há muitos jovens franceses a falar catalão como ele. Como Joan diz, o catalão está moribundo em França e, se procurarem outros vídeos sobre o catalão na zona, verão que os jovens que o ainda o falam como língua segunda têm uma fluência limitada e um claro sotaque francês. 


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