08/06/09

A Música Negra de Belo Marques

Uma coisa que fiz várias vezes na minha vida foi discutir com textos de tempos passados em que os europeus falam de povos de outros lugares. E eis três conclusões a que cheguei: não serve de nada tentarmos dialogar com esses textos como dialogamos com um discurso nosso contemporâneo – não há maneira de ver o mundo que não seja definitivamente determinada pelo tempo histórico a que pertence e a única razão pela qual não se pode dizer “eu também seria assim, se tivesse nascido 60 anos antes” é que ninguém seria a mesma pessoa se tivesse nascido 60 anos antes…; a consciência da historicidade de qualquer texto não nos deve impedir de fazer notar no texto o que, aos olhos de alguém de hoje, ele tem de incoerências ou de traços de um imaginário ou de uma ideologia que não nos parece agora aceitável; mas não é porque num texto se revelam os inevitáveis traços da etnocentrismo que são marcas de outra época que ele deixa forçosamente de ser progressista.



















E a propósito de quê, tudo isto? De um livro que acabo de ler. Chama-se Música Negra, Estudos do Folclore Tonga (Divisão de Publicações e Biblioteca, Agência Geral das Colónias. Lisboa: Editorial Ática, 1943) e foi escrito pelo maestro José Belo Marques, que todos conhecem, pelo menos como autor de “[Quem passa por] Alcobaça”. O maestro tinha 40 anos quando, em 1938, se meteu a fazer um estudo da música do Sul de Moçambique.

O livro é bastante sedutor. É claro, uma boa parte dele são transcrições das canções recolhidas, e quem, como eu, não saiba ler música, tem de saltar, assim, por cima de metade da obra... Mas fica-lhe ainda muita e agradável leitura. Belo Marques é um verdadeiro romântico e é a sinceridade do seu romantismo a primeira coisa a fascinar-nos: há uma verdade essencial na alma dos povos, de que a música é a expressão mais imediata e verdadeira. Dito desta maneira, parece um pouco vago demais, desculpa-se ele várias vezes, mas quem o sentiu sabe que é assim.

Homem do seu tempo que é, Belo Marques não pode deixar de ver na “pureza” do negro a razão da sua pujança artística – o negro é espontâneo, bruto e bom, e um artista natural. Que se lhe civilize a alma, e eis que lhe desaparecem as suas qualidades:
**O observador que viva algum tempo no interior da selva, ainda pode descortinar alguma coisa da [música e da vida do negro]. Porém, vai sentindo um certo esbatido na verdade, à proporção que se vai afastando do mato e aproximando da civilização. Este facto, no que respeita à música, é de uma sensaboria flagrante. Procurámos por êsse motivo afastar-nos o mais possível das Missões estrangeiras, sobretudo das americanas, onde nos parece que se devia incutir no preto o gôsto pela sua arte e pela sua toada e não ensinar-lhe uma música que não se sabe de que raça é, sem vigor e sem beleza, que o preto canta com o mesmo sacrifício com que um doente toma uma receita.
O livro divide-se em 16 estudos, onde se sucedem, sem ordem nem lógica especial, a recolha musical propriamente dita, reflexões antropológicas e considerações estéticas. O livro Música negra é, assim, várias coisas, mas talvez se possa dizer que é sobretudo um apelo. Não exactamente a etnomusicólogos, mas antes a compositores! Um apelo ao abandono de tudo o que é cerebral e ao retorno a uma verdade sentida, mais ancestral – e mais universal! Saber muito de música não basta, porque a inspiração não se aprende nas escolas nem nas salas de concertos de Paris e Londres, e Belo Marques e muitos outros compositores ainda não descobriram “em qual expresso se embarca para o país dos iluminados…”
**Por esse motivo é de aconselhar, aos compositores, um embarque até à nossa África. Talvez, quem sabe?... É uma tentativa. O músico negro não fêz da sua arte uma profissão; a sua música, as suas melodias nasceram de um rasgo de sinceridade. Tudo ali se encontra: desde o sonho dôce de uma alma infantil, até ao grito sólido da brutalidade.
**Abrir o coração e sentir lá dentro tôda essa melodia calma da floresta; abrir o peito e deixar entrar o forte odor de uma natureza virgem… Talvez… Quem sabe?
Não sentir este baralhar constante dos nossos sentimentos entre a pureza e vaidade, nesta luta onde mistura tudo, numa ânsia de superioridade. O compositor, sobretudo, necessita fugir ao trabalho por encomenda e a prazo.
**Se encomendarmos a um compositor pagão um «Sanctus» ou um «Kyrie», é o mesmo que dispôr uma planta de grandes raízes num pequeno vaso; definha e, por fim, seca. Até a mais ligeira canção só pode nascer de um estado de espírito especial e, como um tremor de terra, nunca se sabe quando esse momento surge.
José Belo Marques gosta da música moçambicana e acredita nela. Ele pensa que é possível “uma análise verdadeira [dessa música,] aproveitando alguma coisa de novo que possa por ventura vir a ampliar os nossos conceitos sinfónicos e as nossas partituras.” Não diz abertamente, mas quase, que quer ver surgir os Grant Still e os Gershwin portugueses:
**Ao negro da América do Norte deve esse país uma transformação profunda da sua música. Já António Dvorak dizia que a música negra viria a dar a base a uma nova escola musical. (…) Os compositores portugueses têm ali, na nossa África, uma fonte inesgotável de inspiração; e todos esses cantares bárbaros, esses temas exóticos mas puros, podem abrir as portas a elevadas sinfonias, podendo ser enaltecidos pela riqueza dos nossos instrumentos e a nossa civilização.
O que é também interessante no texto de Belo Marques é que coexiste com a imagem do selvagem infantil e puro, e com uma consciência dramática de um abismo cultural entre “o branco” e “o negro”, um surpreendente universalismo humanista. E a certeza de que África tem algo importante a dar ao mundo:
**No século XX, êste século em que tudo se produz em série, eu prefiro, em vez de me embrenhar nessas partituras cerebrais, estudar a música do negro e a sua harmonia. Mas, afinal, a harmonia negra não existe. Não há harmonia negra nem branca. A harmonia é tôda da mesma côr, de minuto a minuto rejuvenescida. E, para êsse rejuvenescimento, creia o leitor, que muito há-de contribuir, para o futuro, a música negra.
É claro, podemos interrogar-nos: será a música o símbolo dessa igualdade fundamental entre todos os homens e todas as culturas, ou é só na música que essa igualdade se aplica? Para um músico, porém, o que é que, mais do que a música, pode ser expressão fundamental de Humanidade? Afirma Belo Marques: “Arvey e Grant Still dizem que a música negra, quando ganha os corações, não os larga mais”. O dele, obviamente, nunca mais a música negra o largou. Diz-me a minha amiga Guiomar, neta de Belo Marques, que ele compôs uma peça chamada Fantasia Negra, que foi tocada em público uma única vez. A Guiomar está convencida de que a Fantasia Negra é a grande obra do maestro; e nem ela, nem praticamente ninguém, a ouviu… Lembramos Belo Marques pela sua “Alcobaça”, mas não era, com certeza, por “Alcobaça” que ele gostaria de ser lembrado.

Só para uma coisa eu gostava de ter um blogue muito lido, influente, poderoso: para fazer lobbying. Neste caso, por uma gravação da Fantasia Negra de Belo Marques. Como será a música negra do maestro?

2 comentários:

  1. Olá Vitor, Você não me conhece, mas sabe que eu existo: sou a mãe da Olga que está em Bruxelas e estou precisamente a escrever um livro de memórias (minhas) em que uma grande parte é dedicada à família Belo Marques, visto que vivi 40 anos com o pai da Olga, filho do maestro. Não tenho esse livro sobre o folclore Tonga, que seria muito útil para completar algumas partes do que estou a escrever. Será que me podia enviar um exemplar (pagando eu, claro) ou fazer-me chegar uma cópia pela internet (talvez via e-mail) o meu e-mail é mluisanunes@sapo.pt.
    Ficar-khe-ia muito grata.
    Saudações Luiza

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  2. Gostei muito, muito deste texto.
    Cheguei aqui porque estou a fazer uma pequena pesquisa sobre a biografia do Maestro (uma coisa muito simples, escolar, que não incluirá estes dados) e adorei conhecer esta faceta e estas palavras do Maestro.
    Entretanto vou enviar o link do texto a alguns amigos que gostarão certamente de o conhecer.
    Obrigada

    Leonor Carvalho (de Alcobaça)

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