Versos, pois… E porque não?
Ele há vezes em que eu,
compreende Vossa Senhoria?,
não vejo ne’ssidade de chegar
a conversa ao fim da linha.
Basta-me o verso, bem vê,
uma mania que eu tenho…
– ou outras maneiras que haja
de ligar mais ao dizer
do que àquilo que se diz. Que mal
vê nisso Vossa Senhoria?
É certo: não traz ao mundo
bem nenhum, pois isso não…
Mas nem mal traz...
Quando é p’r’alguém ouvir mesmo
o que eu tenho p’ra dizer,
compreende Vossa Senhoria?,
faço os possíveis por encher
as linhas até ao fim…
Que seja o que mais falta faz,
dou-lhe nisso toda a razão!
Agora, que seja uma perda de tempo
não dizer sempre o que mais conta,
isso é a opinião de Vossa Senhoria, que não a minha.
Eu gosto de converseta,
seja ela em verso ou não:
faz-nos bem ao figueiredo
e também ao coração!
11/12/09
O parquet do céu e o ladrilhado do inferno
Costumam os portugueses dizer que de boas intenções está o inferno cheio. Já os ingleses dizem que a estrada para o inferno está pavimentada com boas intenções, o que, sendo mais bonito, não acrescenta muito ao sentido da frase. Mais interessante, pelo menos para o tema que quero aqui desenvolver, é uma versão espanhola do provérbio, que diz que o inferno está cheio de boas intenções e o céu de boas obras [1].
Vocês sabem (ou, se não sabem, ficam a saber) que eu não acredito em céu e em inferno mais do que acredito no Pai Natal, de maneira que o provérbio, como o título do post, são só um pré-texto. A questão que me interessa, e para a qual o provérbio serve apenas de introdução, é a seguinte: Para se agir bem – ou para se agir mal, a questão coloca-se da mesma forma – é condição necessária e suficiente ter a intenção de o fazer?
John Stuart Mill, um moralista de que eu gosto, afirma, a dado passo de O utilitarismo, que “a moralidade de uma acção depende inteiramente da intenção – quer dizer, do que o agente quer fazer – mas o motivo, quer dizer, a razão que faz com que deseje actuar assim, se não afectar o acto, não afecta a sua moralidade.”
Foi-me fácil, quando li isto, concordar com J. S. Mill quanto a deixar de lado o motivo na avaliação da moralidade de uma acção. Tinha um amigo (millista, pelo menos nisto, provavelmente sem o saber) que me dizia sempre que, se o meu trabalho numa qualquer organização de interesse, por exemplo, trouxer bons resultados aos beneficiários dessa organização, pouco importa que eu para lá tenha entrado para cortejar uma miúda ou para tentar mostrar aos outros que até sou um rapaz muito esperto [2].
Ainda assim a distinção entre motivo e intenção levantou-me de imediato uma dúvida: Como avaliar a intenção de uma acção? O problema é que essa avaliação não parece poder ser feita senão a partir dos resultados da acção. Se a acção que eu quero praticar, com a melhor das intenções, devido a qualquer acidente, a qualquer força que não controlo, é transformada numa outra acção diferente da que eu pretendia praticar, o que é que resta da minha intenção? Como pode alguém saber que intenção tinha eu?
Tomemos o caso de que alguém, sob tortura, revela um segredo fatal para outras pessoas. A intenção era não o revelar, mas não foi suficientemente forte para não o fazer. A moralidade da acção que devemos julgar é apenas a tentativa de não revelar o segredo? Não se distingue a moralidade dessa acção da moralidade de outra acção em que, mesmo sob tortura, não se revela o segredo?
As muitas questões que a questão levanta, se posso dizer assim, empurraram-me, a certa altura, para uma espécie de objectivismo radical. Numa carta a uma amiga minha, dizia eu uma vez o seguinte:
“Há muita acção que se perde entre a intenção e a sua concretização, o que, se por um lado não tira o mérito da intenção ao seu autor, não lhe chega, tampouco, a dar o mérito da acção realizada, que é o mais importante, já que é esse que influi de facto na realidade… Dirás tu: significa isso que eu ter ou não esse maior mérito não depende, em última análise, de mim, já que, se a intenção é da minha exclusiva responsabilidade, a concretização de acção depende de factores que me são exteriores e, o mais das vezes, incontroláveis? Sim, na minha perspectiva – o mérito, como tudo na vida, é em parte (em grande parte…) dependente de acasos.”
Imediatamente depois de enviar a carta, arrependi-me de o ter feito. A minha posição era obviamente exagerada: relegando para segundo plano o nível das intenções e focando a minha avaliação moral na acção em si, coloco ao mesmo nível, em última análise, quem salve alguém de morrer afogado por sentimento de solidariedade com outro ser humano ou com a ideia de o torturar refinadamente em seguida[3], contanto que a fase seguinte desse plano criminoso nunca se venha a realizar, seja lá por que razões for… É claro que a avaliação da acção em si é uma avaliação não da moralidade da acção mas da eficácia ou competência técnica com que a intenção foi ou não levada à prática e a palavra mérito, como a uso na carta à minha amiga, não tem um sentido essencialmente moral.
Acho que temos de aceitar que, como Mill propõe, é sempre ao nível da intenção de uma acção que está a sua moralidade, embora aceitando que nem sempre é possível avaliar essa moralidade, porque os resultados da acção são distorcidos relativamente à intenção do agente por factores externos à vontade desse agente. Acho que é necessária uma distinção entre o plano das intenções e o plano dos resultados: para agir bem ou mal, quer dizer, ter resultados que influenciem, para bem ou para mal, o estado de coisas sobre o qual me proponho agir, é necessário que à minha intenção (e à consequente moralidade ou imoralidade da minha acção) se venham juntar as condições práticas para a levar a cabo: capacidade técnica (em sentido alargado) e a ausência de forças contrárias.
Voltando à minha questão inicial, respondo então que para se agir bem ou para se agir mal não é condição necessária e suficiente ter intenção de o fazer, embora admita que a intenção de o fazer é a única base para a avaliação moral da minha acção. Donde que, pelo menos se Céu for metáfora de valor moral, é no Céu que repousam forçosamente as boas intenções e não no Inferno, que é o lugar das más intenções. E deve haver algum Limbo moral para acções propriamente ditas…
__________________
[1] Os provérbios são como a música popular – não foram criados pelo povo enquanto colectivo, que o povo colectivamente não cria nada, mas sempre por uma pessoa concreta que já nos esquecemos, ou nunca soubemos, quem é. Fiz uma pesquisa rápida à procura da origem da expressão e fiquei a saber que é provável que venha de São Bernardo de Clairvaux, que, no século XII, escreveu que “O inferno está cheio de boas intenções ou desejos”.
É preciso também deixar claro que não é de analisar o provérbio ou as suas diversas versões que aqui se trata, mas apenas, como deixei claro, de o usar como introdução a uma discussão. Na maior parte das vezes, o provérbio quer dizer outra coisa: o que é bem para uns não o é forçosamente para outros, e as acções realizadas com a intenção de fazer o bem podem não ser sentidas pelos outros (e não forçosamente apenas aqueles que se pretende beneficiar) como benéficas. Por interessante que seja essa discussão (na minha opinião, mais interessante até do que esta que aqui proponho – e mais difícil!), é outra discussão e deixo-a aqui de lado.
[2] Agora, a propósito da volúpia ou da vaidade como móbil de boas acções, é preciso acrescentar que John Stuart Mill, sensato que é, diz que avaliar o motivo, porém, “conta muito aquando da nossa apreciação moral do agente, especialmente se indica uma disposição habitual boa ou má, uma inclinação de que seja de esperar que resultem acções benéficas ou prejudiciais.” É algo que se pode e deve discutir, porque se liga com a questão de haver pessoas tendencialmente boas e menos boas e más, mas fica para outra ocasião. Pode-se também acrescentar que há muito quem defenda que, em última análise, todo o altruísmo tem como fim criar reconhecimento social e seduzir possíveis parceiros sexuais...
[3] O exemplo não é inventado por mim, é o que Mill e J. Llewellyn Davies usaram na sua discussão da questão.
Vocês sabem (ou, se não sabem, ficam a saber) que eu não acredito em céu e em inferno mais do que acredito no Pai Natal, de maneira que o provérbio, como o título do post, são só um pré-texto. A questão que me interessa, e para a qual o provérbio serve apenas de introdução, é a seguinte: Para se agir bem – ou para se agir mal, a questão coloca-se da mesma forma – é condição necessária e suficiente ter a intenção de o fazer?
John Stuart Mill, um moralista de que eu gosto, afirma, a dado passo de O utilitarismo, que “a moralidade de uma acção depende inteiramente da intenção – quer dizer, do que o agente quer fazer – mas o motivo, quer dizer, a razão que faz com que deseje actuar assim, se não afectar o acto, não afecta a sua moralidade.”
Foi-me fácil, quando li isto, concordar com J. S. Mill quanto a deixar de lado o motivo na avaliação da moralidade de uma acção. Tinha um amigo (millista, pelo menos nisto, provavelmente sem o saber) que me dizia sempre que, se o meu trabalho numa qualquer organização de interesse, por exemplo, trouxer bons resultados aos beneficiários dessa organização, pouco importa que eu para lá tenha entrado para cortejar uma miúda ou para tentar mostrar aos outros que até sou um rapaz muito esperto [2].
Ainda assim a distinção entre motivo e intenção levantou-me de imediato uma dúvida: Como avaliar a intenção de uma acção? O problema é que essa avaliação não parece poder ser feita senão a partir dos resultados da acção. Se a acção que eu quero praticar, com a melhor das intenções, devido a qualquer acidente, a qualquer força que não controlo, é transformada numa outra acção diferente da que eu pretendia praticar, o que é que resta da minha intenção? Como pode alguém saber que intenção tinha eu?
Tomemos o caso de que alguém, sob tortura, revela um segredo fatal para outras pessoas. A intenção era não o revelar, mas não foi suficientemente forte para não o fazer. A moralidade da acção que devemos julgar é apenas a tentativa de não revelar o segredo? Não se distingue a moralidade dessa acção da moralidade de outra acção em que, mesmo sob tortura, não se revela o segredo?
As muitas questões que a questão levanta, se posso dizer assim, empurraram-me, a certa altura, para uma espécie de objectivismo radical. Numa carta a uma amiga minha, dizia eu uma vez o seguinte:
“Há muita acção que se perde entre a intenção e a sua concretização, o que, se por um lado não tira o mérito da intenção ao seu autor, não lhe chega, tampouco, a dar o mérito da acção realizada, que é o mais importante, já que é esse que influi de facto na realidade… Dirás tu: significa isso que eu ter ou não esse maior mérito não depende, em última análise, de mim, já que, se a intenção é da minha exclusiva responsabilidade, a concretização de acção depende de factores que me são exteriores e, o mais das vezes, incontroláveis? Sim, na minha perspectiva – o mérito, como tudo na vida, é em parte (em grande parte…) dependente de acasos.”
Imediatamente depois de enviar a carta, arrependi-me de o ter feito. A minha posição era obviamente exagerada: relegando para segundo plano o nível das intenções e focando a minha avaliação moral na acção em si, coloco ao mesmo nível, em última análise, quem salve alguém de morrer afogado por sentimento de solidariedade com outro ser humano ou com a ideia de o torturar refinadamente em seguida[3], contanto que a fase seguinte desse plano criminoso nunca se venha a realizar, seja lá por que razões for… É claro que a avaliação da acção em si é uma avaliação não da moralidade da acção mas da eficácia ou competência técnica com que a intenção foi ou não levada à prática e a palavra mérito, como a uso na carta à minha amiga, não tem um sentido essencialmente moral.
Acho que temos de aceitar que, como Mill propõe, é sempre ao nível da intenção de uma acção que está a sua moralidade, embora aceitando que nem sempre é possível avaliar essa moralidade, porque os resultados da acção são distorcidos relativamente à intenção do agente por factores externos à vontade desse agente. Acho que é necessária uma distinção entre o plano das intenções e o plano dos resultados: para agir bem ou mal, quer dizer, ter resultados que influenciem, para bem ou para mal, o estado de coisas sobre o qual me proponho agir, é necessário que à minha intenção (e à consequente moralidade ou imoralidade da minha acção) se venham juntar as condições práticas para a levar a cabo: capacidade técnica (em sentido alargado) e a ausência de forças contrárias.
Voltando à minha questão inicial, respondo então que para se agir bem ou para se agir mal não é condição necessária e suficiente ter intenção de o fazer, embora admita que a intenção de o fazer é a única base para a avaliação moral da minha acção. Donde que, pelo menos se Céu for metáfora de valor moral, é no Céu que repousam forçosamente as boas intenções e não no Inferno, que é o lugar das más intenções. E deve haver algum Limbo moral para acções propriamente ditas…
__________________
[1] Os provérbios são como a música popular – não foram criados pelo povo enquanto colectivo, que o povo colectivamente não cria nada, mas sempre por uma pessoa concreta que já nos esquecemos, ou nunca soubemos, quem é. Fiz uma pesquisa rápida à procura da origem da expressão e fiquei a saber que é provável que venha de São Bernardo de Clairvaux, que, no século XII, escreveu que “O inferno está cheio de boas intenções ou desejos”.
É preciso também deixar claro que não é de analisar o provérbio ou as suas diversas versões que aqui se trata, mas apenas, como deixei claro, de o usar como introdução a uma discussão. Na maior parte das vezes, o provérbio quer dizer outra coisa: o que é bem para uns não o é forçosamente para outros, e as acções realizadas com a intenção de fazer o bem podem não ser sentidas pelos outros (e não forçosamente apenas aqueles que se pretende beneficiar) como benéficas. Por interessante que seja essa discussão (na minha opinião, mais interessante até do que esta que aqui proponho – e mais difícil!), é outra discussão e deixo-a aqui de lado.
[2] Agora, a propósito da volúpia ou da vaidade como móbil de boas acções, é preciso acrescentar que John Stuart Mill, sensato que é, diz que avaliar o motivo, porém, “conta muito aquando da nossa apreciação moral do agente, especialmente se indica uma disposição habitual boa ou má, uma inclinação de que seja de esperar que resultem acções benéficas ou prejudiciais.” É algo que se pode e deve discutir, porque se liga com a questão de haver pessoas tendencialmente boas e menos boas e más, mas fica para outra ocasião. Pode-se também acrescentar que há muito quem defenda que, em última análise, todo o altruísmo tem como fim criar reconhecimento social e seduzir possíveis parceiros sexuais...
[3] O exemplo não é inventado por mim, é o que Mill e J. Llewellyn Davies usaram na sua discussão da questão.
África minha e outras questões morais
África é, ao que dizem, como a Alcobaça da letra de Silva Tavares – quem por lá passa, não passa sem lá voltar, porque por mais que tente e que faça, é lembrança que não passa, etc. É claro, África é uma palavra demasiado grande, tão grande como todas as abusivas generalizações que se costumam fazer em relação a ela. Mas é um facto que há, pelo menos aqui nesta África que eu conheço, muita gente de fora que adopta esta terra como sendo sua e, muito embora queixando-se sempre dela, nunca a quer abandonar para voltar ao que deveria ser a sua “verdadeira terra”; como é um facto também que há muito quem, tendo aqui vivido algum tempo, queira voltar à África que, por qualquer razão, deixou – uns queixam-se apenas e nunca voltam, outros vão além da resmunguice e voltam mesmo.
E uma pessoa interroga-se: de que é feito então esse charme, se a vida aqui é, em tantos aspectos, mais insegura e mais difícil do que no conforto do chamado mundo moderno? Em 1998, quando estive em Moçambique a primeira vez, esbocei uma resposta a esta pergunta nas cartas colectivas (ainda em papel, nessa altura) que enviava à família e amigos. Alvitrava eu que a explicação era a possibilidade de arranjar amantes, esposas e esposos incluídos, que noutro lado nunca se arranjariam: “Basicamente, uma pessoa rica tem quem quiser – ou quase. E isso é uma coisa que cativa muito muita gente. Há quem diga que o fascínio de África está na imensa liberdade e no espaço imenso, na natureza ainda por desbravar, no odor virgem da terra, coisas assim… Perdoem-me o tom quiçá um pouco brejeiro, mas essas poetices, a mim, não me convence: o que os faz ficar em África, ou querer voltar, são outros odores que não o da terra, odores que têm, aliás, muito pouco a ver com virgindade…”
Mas é, obviamente, uma visão muito redutora da questão. O poder sexual é apenas uma parte do poder tout court e penso agora que é por aí, pelo poder, que se deve ir. Evidentemente, não é uma explicação que exclua outras (que sabe bem não se precisar nunca de sobretudos, ah pois sabe!) e não se aplica seguramente a todos os casos, mas parece-me, no geral, uma boa explicação para haver tanto quem se apaixone por esta terra. A “liberdade” e o “espaço” que atraem “em África” são metáforas desse poder, porque é isso que dá o poder: liberdade e espaço, em variadíssimas acepções destas duas palavras.
Queria, a propósito, especular um bocadinho sobre poder, precisamente. Nem sempre é fácil apercebermo-nos da importância que a conquista e manutenção do poder têm nas nossas preferências e nas escolhas que vamos fazendo ao longo da vida. Há várias demonstrações muito convincentes de uma verdade simples, que se aplica tanto aos seres humanos como a outros animais com hierarquias sociais: a subordinação tem grandes implicações ao nível da alegria de viver e até ao nível da saúde; quanto mais baixo se está numa hierarquia social, quanto mais indivíduos houver a quem dever obediência, pior vivemos. Isto não implica, é claro, que, a maneira de evitar o stress da subordinação seja deter o poder (a não ser que não admitamos a possibilidade de igualitarismo) – para não sofrer stress da subordinação basta viver sem hierarquia e não forçosamente fazer parte do topo da hierarquia, e é o que defendem precisamente, os defensores da igualdade como mecanismo de bem-estar social. Não conheço demonstrações de que resulte directamente uma maior qualidade de vida do facto de se ocupar um posto mais alto na hierarquia, mas parece provável que haja uma tendência natural de procura de poder e que a sua satisfação seja uma fonte de bem-estar. Não me parece que haja nesta afirmação nada de muito polémico, até porque é velha como o mundo a ideia (a constatação?) de que o poder seduz; e até porque, dirão muitos, o poder traz com ele vantagens palpáveis e é por isso que ele é, naturalmente, desejável!
Não sei. Ao contrário do que possa parecer de imediato, talvez seja a vertente mais abstracta do poder a mais sedutora. É certo que ajuda muito na vida prática ter, por exemplo, quem faça por nós e para nós o trabalho que, não tendo esse poder, teríamos de ser nós a fazer; e é objectivamente desejável, em termos de transmissão dos nossos genes (ou de satisfação da pulsão sexual, vejam isso como quiserem) termos o poder de escolher muitos parceiros sexuais e de boa qualidade. Mas talvez o mais sedutor de ter pessoas que trabalhem para nós não seja o trabalho que elas fazem, e sim o facto de as ter. Ou melhor, de as poder ter. O mesmo com os parceiros sexuais. Mais apetecível do que tê-los de facto, talvez seja saber que se os pode ter. Poder.
E uma pessoa interroga-se: de que é feito então esse charme, se a vida aqui é, em tantos aspectos, mais insegura e mais difícil do que no conforto do chamado mundo moderno? Em 1998, quando estive em Moçambique a primeira vez, esbocei uma resposta a esta pergunta nas cartas colectivas (ainda em papel, nessa altura) que enviava à família e amigos. Alvitrava eu que a explicação era a possibilidade de arranjar amantes, esposas e esposos incluídos, que noutro lado nunca se arranjariam: “Basicamente, uma pessoa rica tem quem quiser – ou quase. E isso é uma coisa que cativa muito muita gente. Há quem diga que o fascínio de África está na imensa liberdade e no espaço imenso, na natureza ainda por desbravar, no odor virgem da terra, coisas assim… Perdoem-me o tom quiçá um pouco brejeiro, mas essas poetices, a mim, não me convence: o que os faz ficar em África, ou querer voltar, são outros odores que não o da terra, odores que têm, aliás, muito pouco a ver com virgindade…”
Mas é, obviamente, uma visão muito redutora da questão. O poder sexual é apenas uma parte do poder tout court e penso agora que é por aí, pelo poder, que se deve ir. Evidentemente, não é uma explicação que exclua outras (que sabe bem não se precisar nunca de sobretudos, ah pois sabe!) e não se aplica seguramente a todos os casos, mas parece-me, no geral, uma boa explicação para haver tanto quem se apaixone por esta terra. A “liberdade” e o “espaço” que atraem “em África” são metáforas desse poder, porque é isso que dá o poder: liberdade e espaço, em variadíssimas acepções destas duas palavras.
Queria, a propósito, especular um bocadinho sobre poder, precisamente. Nem sempre é fácil apercebermo-nos da importância que a conquista e manutenção do poder têm nas nossas preferências e nas escolhas que vamos fazendo ao longo da vida. Há várias demonstrações muito convincentes de uma verdade simples, que se aplica tanto aos seres humanos como a outros animais com hierarquias sociais: a subordinação tem grandes implicações ao nível da alegria de viver e até ao nível da saúde; quanto mais baixo se está numa hierarquia social, quanto mais indivíduos houver a quem dever obediência, pior vivemos. Isto não implica, é claro, que, a maneira de evitar o stress da subordinação seja deter o poder (a não ser que não admitamos a possibilidade de igualitarismo) – para não sofrer stress da subordinação basta viver sem hierarquia e não forçosamente fazer parte do topo da hierarquia, e é o que defendem precisamente, os defensores da igualdade como mecanismo de bem-estar social. Não conheço demonstrações de que resulte directamente uma maior qualidade de vida do facto de se ocupar um posto mais alto na hierarquia, mas parece provável que haja uma tendência natural de procura de poder e que a sua satisfação seja uma fonte de bem-estar. Não me parece que haja nesta afirmação nada de muito polémico, até porque é velha como o mundo a ideia (a constatação?) de que o poder seduz; e até porque, dirão muitos, o poder traz com ele vantagens palpáveis e é por isso que ele é, naturalmente, desejável!
Não sei. Ao contrário do que possa parecer de imediato, talvez seja a vertente mais abstracta do poder a mais sedutora. É certo que ajuda muito na vida prática ter, por exemplo, quem faça por nós e para nós o trabalho que, não tendo esse poder, teríamos de ser nós a fazer; e é objectivamente desejável, em termos de transmissão dos nossos genes (ou de satisfação da pulsão sexual, vejam isso como quiserem) termos o poder de escolher muitos parceiros sexuais e de boa qualidade. Mas talvez o mais sedutor de ter pessoas que trabalhem para nós não seja o trabalho que elas fazem, e sim o facto de as ter. Ou melhor, de as poder ter. O mesmo com os parceiros sexuais. Mais apetecível do que tê-los de facto, talvez seja saber que se os pode ter. Poder.
26/11/09
De preceitos e preconceitos
De todas as maneiras que há de falar uma língua, a nossa é sempre a correcta… Não é o que eu penso, mas é o que pensa muita gente. A maioria das pessoas, acho eu. Nada mais difícil, pelos vistos, do que reconhecer como maneira de falar ao mesmo nível da sua uma maneira de falar diferente da sua. Uma prova disso é a necessidade de se fazerem duas traduções para a mesma língua, uma em português europeu e outra em português americano. Mesmo quando uma tradução brasileira é excelente, os portugueses preferem ler uma tradução menos boa no seu português…
Agora, para que não pensem que me julgo isento de preconceito linguístico, conto-vos uma constatação que fiz no outro dia: Tenho quase a certeza de que, se um aluno meu, digamos, irlandês ou sueco, me escrevesse num TPC os dois últimos versos da penúltima quadra da letra de “Asa Branca”, de Humberto Teixeira e Luiz Gonzaga (“Espero a chuva cair de novo, / para mim voltar para o meu sertão”), eu corrigia. Era capaz de achar que “estava mal”, que era uma “construção estrangeira” – quando se trata de uma letra maravilhosa, de um grande clássico da canção em língua portuguesa…
Agora, para que não pensem que me julgo isento de preconceito linguístico, conto-vos uma constatação que fiz no outro dia: Tenho quase a certeza de que, se um aluno meu, digamos, irlandês ou sueco, me escrevesse num TPC os dois últimos versos da penúltima quadra da letra de “Asa Branca”, de Humberto Teixeira e Luiz Gonzaga (“Espero a chuva cair de novo, / para mim voltar para o meu sertão”), eu corrigia. Era capaz de achar que “estava mal”, que era uma “construção estrangeira” – quando se trata de uma letra maravilhosa, de um grande clássico da canção em língua portuguesa…
Mas isto sou eu a especular
Começa a ser raro não se encontrar rapidamente na Internet aquilo que se procura. Mas ainda há (mal feito fora, também…) perguntas para as quais só mesmo encomendando uma ou várias obras impressas é que a gente consegue (talvez…) obter resposta. Por exemplo, como é que Rimbaud, em 1888, algures na Etiópia, reagiu a uma carta que lhe contava que, após a publicação de Illuminations dois anos antes, se tinha tornado célebre nos meios literários de Paris?
Também é verdade que é uma pergunta de interesse mínimo, pelo menos se se medir o seu interesse pelo número de pessoas a quem ela possa interessar. E a mim, porque é que me havia de interessar uma pergunta assim? Bom, há já muito tempo, li um artigo de um jornal conhecido* em que se falava de “profissionais e artistas de destaque” que “se retiram em plena glória”. O artigo não refere só o abandono definitivo, mas fala também de casos em que há interrupções longas do trabalho criativo ou fugas temporárias às luzes da ribalta. Porque será que tudo isso acontece? Depois de dar uma série de exemplos de gente famosa que decide retirar-se do trabalho que lhe traz a fama, o artigo sugere, entre outras coisas, que “lidar mal com um êxito pode paralisar a criatividade”.
O artigo suscitou-me uma dúvida. Dizia que Arthur Rimbaud, “depois de conseguir um êxito brutal”, teria procurado permanecer tão afastado da fama quanto possível. Isto era um bocado contrário à ideia (muito vaga, muito vaga…) que eu tinha da vida de Rimbaud, e fui procurar informação. Foi assim que descobri que, apesar de Rimbaud ser uma dos poetas mais influentes de sempre, é difícil arranjar online informação detalhada sobre a sua vida.
O que podemos verificar com alguma facilidade é que, ao contrário do que afirmava o tal artigo (a minha vaga impressão estava correcta!...), a fama não tem nada a ver com o afastamento de Rimbaud da literatura – sobretudo porque ele se afastou da literatura antes de ser famoso… É certo que Rimbaud se tornou famoso ainda em vida (ou começou a tornar-se famoso ainda em vida), mas essa fama começou só com a publicação de Illuminations em 1886, mais de dez anos depois de ele ter deixado de escrever poesia; e enquanto vivia longe de França, pelo que nunca passou de facto pela experiência de ser uma figura pública… Também é certo que Rimbaud chegou a saber, pelo menos através de uma carta do seu amigo Paul Bourde**, do sucesso que estava a ter a sua poesia, e podemos então dizer, quando muito, que a consciência do seu sucesso não foi suficiente para o fazer voltar à poesia – nem sequer para o fazer voltar a França para gozar esse sucesso.
Outra coisa que uma pesquisa sobre a vida de Rimbaud nos ensina é que há, entre os seus estudiosos, quem defenda que a falta de dinheiro (ou a vontade de o ganhar, seja…) foi uma das razões que o levou a correr mundo; e que, na sua correspondência, o dinheiro é um dos temas principais. E então, se acharmos, como eu acho, que é o dinheiro, precisamente, que faz andar o mundo em geral e cada uma das vidas particulares dos seus habitantes, podemos até perguntar-nos se Rimbaud não teria continuado a escrever, se lhe tivesse vindo mais cedo da escrita a compensação económica que acompanha o êxito! Mas isto sou eu a especular…
_______________
* Desta vez, é de propósito que omito a referência, não vão pensar que a intenção deste texto é corrigir o artigo de jornal. Nada disso: a intenção deste texto é antes, como o título indica, especular, sem mais, sobre «como teria sido, se…» (chamando também a atenção para a importância, tantas vezes desprezada pelos estudiosos, do dinheiro na produção artística….)
** Ao que consegui perceber, mas não posso ter a certeza absoluta. A informação que consegui arranjar de dois biógrafos de língua inglesa refere o autor dessa carta como “his editor”.
Também é verdade que é uma pergunta de interesse mínimo, pelo menos se se medir o seu interesse pelo número de pessoas a quem ela possa interessar. E a mim, porque é que me havia de interessar uma pergunta assim? Bom, há já muito tempo, li um artigo de um jornal conhecido* em que se falava de “profissionais e artistas de destaque” que “se retiram em plena glória”. O artigo não refere só o abandono definitivo, mas fala também de casos em que há interrupções longas do trabalho criativo ou fugas temporárias às luzes da ribalta. Porque será que tudo isso acontece? Depois de dar uma série de exemplos de gente famosa que decide retirar-se do trabalho que lhe traz a fama, o artigo sugere, entre outras coisas, que “lidar mal com um êxito pode paralisar a criatividade”.
O artigo suscitou-me uma dúvida. Dizia que Arthur Rimbaud, “depois de conseguir um êxito brutal”, teria procurado permanecer tão afastado da fama quanto possível. Isto era um bocado contrário à ideia (muito vaga, muito vaga…) que eu tinha da vida de Rimbaud, e fui procurar informação. Foi assim que descobri que, apesar de Rimbaud ser uma dos poetas mais influentes de sempre, é difícil arranjar online informação detalhada sobre a sua vida.
O que podemos verificar com alguma facilidade é que, ao contrário do que afirmava o tal artigo (a minha vaga impressão estava correcta!...), a fama não tem nada a ver com o afastamento de Rimbaud da literatura – sobretudo porque ele se afastou da literatura antes de ser famoso… É certo que Rimbaud se tornou famoso ainda em vida (ou começou a tornar-se famoso ainda em vida), mas essa fama começou só com a publicação de Illuminations em 1886, mais de dez anos depois de ele ter deixado de escrever poesia; e enquanto vivia longe de França, pelo que nunca passou de facto pela experiência de ser uma figura pública… Também é certo que Rimbaud chegou a saber, pelo menos através de uma carta do seu amigo Paul Bourde**, do sucesso que estava a ter a sua poesia, e podemos então dizer, quando muito, que a consciência do seu sucesso não foi suficiente para o fazer voltar à poesia – nem sequer para o fazer voltar a França para gozar esse sucesso.
Outra coisa que uma pesquisa sobre a vida de Rimbaud nos ensina é que há, entre os seus estudiosos, quem defenda que a falta de dinheiro (ou a vontade de o ganhar, seja…) foi uma das razões que o levou a correr mundo; e que, na sua correspondência, o dinheiro é um dos temas principais. E então, se acharmos, como eu acho, que é o dinheiro, precisamente, que faz andar o mundo em geral e cada uma das vidas particulares dos seus habitantes, podemos até perguntar-nos se Rimbaud não teria continuado a escrever, se lhe tivesse vindo mais cedo da escrita a compensação económica que acompanha o êxito! Mas isto sou eu a especular…
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* Desta vez, é de propósito que omito a referência, não vão pensar que a intenção deste texto é corrigir o artigo de jornal. Nada disso: a intenção deste texto é antes, como o título indica, especular, sem mais, sobre «como teria sido, se…» (chamando também a atenção para a importância, tantas vezes desprezada pelos estudiosos, do dinheiro na produção artística….)
** Ao que consegui perceber, mas não posso ter a certeza absoluta. A informação que consegui arranjar de dois biógrafos de língua inglesa refere o autor dessa carta como “his editor”.
18/11/09
De gestos e palavras, quais importam?
De gestos e palavras, quais é que mais importam? Quais é que fazem diferente o mundo do que antes desses gestos e palavras ele era? De gestos e palavras, quais é que mais se entranham na vida de quem tocam? E de gestos e palavras e do resto, o que é que de nós chega a ser não digo História, mas vá, nem que modesta contribuição para os nossos serem o que são, para ser como é a terra, as terras, onde vamos vivendo?
A verdade é que ninguém sabe: Aconchegar outrem junto ao peito? Dar cabo, transido de medo, do inimigo que a guerra lhe pôs à frente? Encher de roupa a máquina e depois de detergente, e depois apertar o botão? Calcular sonolento os deves e os haveres? Ou calcular as leis inexoráveis da máquina do mundo? Ou calcular as outras, menos inexoráveis, que mandam nos gestos de nós (nos tais gestos de que nunca chegamos a saber quais é que modelam o mundo e quais preenchem apenas dispensáveis... isso, dispensáveis... minutos de vida)? Escrever tratados ou sinfonias? Afinar os travões da bicicleta? Preparar o desembarque em Dunquerque? Regar as plantas da sala? Dormir a sesta? Chorar uma morte? Chorar mil mortes? Pregar aos peixes?
Ou pôr a mesa para o jantar?
A verdade é que ninguém sabe: Aconchegar outrem junto ao peito? Dar cabo, transido de medo, do inimigo que a guerra lhe pôs à frente? Encher de roupa a máquina e depois de detergente, e depois apertar o botão? Calcular sonolento os deves e os haveres? Ou calcular as leis inexoráveis da máquina do mundo? Ou calcular as outras, menos inexoráveis, que mandam nos gestos de nós (nos tais gestos de que nunca chegamos a saber quais é que modelam o mundo e quais preenchem apenas dispensáveis... isso, dispensáveis... minutos de vida)? Escrever tratados ou sinfonias? Afinar os travões da bicicleta? Preparar o desembarque em Dunquerque? Regar as plantas da sala? Dormir a sesta? Chorar uma morte? Chorar mil mortes? Pregar aos peixes?
Ou pôr a mesa para o jantar?
Redacção encontrada no sótão: Os sapatos
[Houve uma altura em que me dediquei a escrever “redacções”, que era o nome que eu dava a textos em que ia anotando tudo o que me vinha à cabeça sobre um tema qualquer, como, por exemplo, “As árvores” ou “As canetas”. No outro dia, fui dar com essas redacções algures num sótão do meu computador, reli-as, achei que esta ficava bem aqui no blogue e colei-lhe só uns quantos links antes de a pespegar aqui. Como, quando escrevi o texto, não lhe fiz as devidas notas de rodapé (acho que por ser uma “redacção”...), não sei onde fui buscar alguma da informação que ele inclui e de que não posso agora, portanto, assegurar o rigor. Mas, se me conheço bem, devo ter verificado tudo na altura…]
Os sapatos
Os sapatos, como todos os objectos, têm histórias maravilhosas que me fazem sonhar. Mais do que apenas novelas, verdadeiros romances, recheados de complicados enredos secundários.
Tomemos quaisquer sapatos, por exemplo os que trago calçados. São sapatos estupidamente clássicos, desses que em Portugal são normalmente conhecidos por mocassin (pronunciado à francesa, mòcassã), por muito que o meu dicionário registe antes mocassim: “calçado de pele usado pelos índios da América do Norte, sem tacão e com a sola revirada dos lados e à frente, para melhor protecção do pé; qualquer sapato desportivo que se assemelhe a este calçado”.
(O filho de uma amiga minha, nascido e criado os primeiros anos da sua vida nos Países Baixos, chamava-lhes “sapatos à turco”. É que os neerlandeses, como os outros povos da Europa do Norte, usam sapatos de atacadores, e ele só conhecia dos turcos sapatos assim. Então, quando veio para Portugal, achou curioso ver o tio dele com sapatos daqueles: “Olha, o tio Zé tem sapatos à turco!” Mas era porque ele não conhecia ainda o gosto, pelo menos o mais conservador, dos países latinos da Europa e da América. Mas então, eu, que nunca me quis nem conservador nem latino, é isso que os meus sapatos mostram que sou? Pois seja!, aceito... Com algumas reticências, como mostram claramente os três pontinhos, mas que remédio tenho senão aceitar?)
Uma das histórias maravilhosas que entram na história de qualquer objecto é a da sua designação. Por que é que se chamam sapatos os sapatos, de onde lhes vem o nome? E os mocassins, onde foram buscar tão estranha designação? Bom, a etimologia de sapato, ao contrário da etimologia de mocassin, está longe de ser pacífica.
Mocassin vem das línguas dos índios americanos, porque foram eles a apresentar aos europeus esse tipo de calçado. Há quem queira especificar que é de uma língua determinada (algonquino, por exemplo), mas é arriscado, porque parece que, entre mokasin e makisin, várias línguas tinham designações semelhantes.
Agora, sapato é mais complicado. Se se seguir a opinião da maioria, a palavra portuguesa sapato vem da espanhola zapato, introduzida por alturas do Renascimento, que por sua vez vem do turco (zabata ou chabata, conforme os dicionários), provavelmente através do árabe sabbat. Mas há quem diga que a palavra portuguesa vem directamente do árabe, e há quem defenda a origem eslava da palavra espanhola. Enfim, origem debatida, se não mesmo polémica.
A questão é que não é fácil saber o que é que vem de quê, quando há tantas palavras semelhantes (todas elas para designar tipos de calçado, embora nem sempre o mesmo) em idiomas tão distintos como o português, o occitano, o francês, o italiano, o basco, o árabe vulgar, várias línguas eslavas e inclusivamente o tártaro e o persa – a lista é do Coromines, que é uma das autoridades nestas matérias de etimologia. É isso mesmo: o nosso sapato pertence a uma grande família etimológica, com primos direitos uns a residir aqui perto, como o italiano ciabatta (“sapatilha”), o francês savate (“sapato velho”), e outros a residir bem longe, como o indonésio sepatu (“sapato”), que foi levado para aquelas paragens, juntamente com o objecto que designa, pelos portugueses ou pelos espanhóis; e talvez até mesmo primos afastados, como sabot (“soca”, originalmente em francês, mas naturalizado também inglês), pelo menos se for verdade a tese que diz que a palavra, surgida no século XV, vem de uma contracção de savate (que naquela altura era “sapato” só, sem aludir ao seu estado de deterioração) e bot (uma forma antiga de botte, “bota”). É claro, os mocassins pertencem também seguramente a uma família etimológica, mas essa nunca me foi apresentada.
Mocassin é um hipónimo de sapato, que é então, por sua vez, um hiperónimo de mocassin, e o que estes tão estranhos palavrões querem dizer é apenas que os mocassins são um dos muitos tipos de sapatos que há. Para os que acham graça a este tipo de coisas, adianto que o fazer-se parte de um grupo “natural”, como os mocassins fazem parte dos sapatos, tem algumas implicações óbvias, que toda a gente sabe mas que só os lógicos perderam tempo a analisar e a formalizar. Por exemplo: Todos os mocassins são sapatos, mas nem todos os sapatos são mocassins. Pronto. Por isso, posso dizer: “Estavam lá muitos sapatos, mas não vi lá nenhuns mocassins”, mas não posso dizer, obviamente, (quer dizer, posso, mas hão-de pensar que eu não bato bem…) “Estavam lá muitos mocassins, mas não vi lá nenhuns sapatos”. Mas é uma relação de hiperonímia estranha, esta que há entre sapatos e mocassins, muito diferente daquelas mais clássicas como a que existe entre animal e cão. Se eu disser ou escrever “o cão entrou na sala; o animal vinha esfomeado”, ninguém hesita em compreender que o animal é o cão. Já se eu disser ao contrário, é esquisito, não é?: “o animal entrou na sala; o cão vinha esfomeado.” Mas tratando-se de sapatos, é tudo mais estranho ainda. Se “deixou os sapatos debaixo da cama; os mocassins estavam enlameados” é, como se previa, uma frase esquisita, já “deixou os mocassins debaixo da cama; os sapatos estavam enlameados” não é menos esquisito, e isso é que é esquisito…
Desisto disto e resumo para avançar: Além de fazerem parte de famílias etimológicas, tanto mocassim como sapato fazem parte de outras famílias, das quais acabo de referir a do calçado, no caso dos sapatos, e a dos sapatos, no caso dos mocassins. E como os mocassins são um dos muitos tipos de sapatos que há, são forçosamente uma variedade de calçado. Até aqui, acho que o consenso ainda vai alargado, porque o que cabe no menos cabe no mais, como diz o dito. A partir daqui, as coisas complicam-se: os sapatos, mocassins incluídos, estão incluídos no vestuário? Pelo menos em português, as duas palavras, calçado e vestuário, “o que se veste” e “o que se calça”, parecem referir grupos de objectos completamente distintos. Conjuntos sem intersecção: há alguma coisa que se possa vestir e calçar ao mesmo tempo? Parece que não. Mas já o meu dicionário, como os dicionários costumam, discorda desse comum senso que é o dos falantes apenas nativos e inclui o calçado no vestuário e calçar no vestir: “calçado: peça de vestuário para cobrir exteriormente os pés”; “calçar: revestir pés, pernas ou mãos com o vestuário que lhes compete”. Aceita-se ou rejeita se? E aceitando ou rejeitando – dá igual… –, terá isto tudo alguma lógica?
Se pusermos temporariamente de lado a nossa lusa classificação, podemos constatar que, por exemplo, em espanhol (¡ponte los zapatos rojos y baila la jota!), em francês (mets tes chaussures rouges et danse la java !) ou em inglês (put on your red shoes and dance the blues!) os sapatos como a roupa se “põem”, que é uma coisa que em português só se faz aos chapéus… ou às perucas.
Além disso, em português, como em espanhol ou francês, calçam-se luvas. E será que isso faz delas calçado? Nada! Mas peças de vestuário, serão? Não nos soa. Pobres luvas, feitas assim órfãs por estas línguas ingratas. Ainda por cima, sem poderem sequer ser hiperónimos seja lá do que for, porque todos os tipos de luvas são sempre… luvas: luvas de pele, luvas de borracha, luvas de boxe, eu sei lá que mais… Já em francês, por exemplo, as luvas podem ser gants ou moufles ou mitaines, conforme tenham todos os dedos e os dedos inteiros, ou só o polegar separado e um saco para o resto da mão, ou os dedos cortados a meio (eu sei que há mitenes no dicionário português, mas deve ser palavra de um falar diferente do meu, porque nunca a ouvi…). Se perguntarmos aos franceses, porém, qual é o nome genérico dos objectos que calçamos nas mãos, eles dizem-nos que são gants, pelo que tanto gants como moufles como mitaines são tipos de gant. E é exactamente o mesmo em inglês com glove e mitten: parece que um dos termos é hipónimo de si próprio, pelo que é grande a confusão. E eu, que me tinha proposto falar de sapatos, acho que já estou a meter os pés pelas mãos…
Mas as línguas são assim, como se sabe: traiçoeiras. E se deitarmos fora as línguas todas e nos pusermos a pensar sem essas designações prontas-a-vestir que a língua traz, podemos ir até mais longe do que o meu dicionário e dizer que calçado e vestuário é tudo uma mesma coisa, o que nos serve para nos cobrirmos, ponto, embora o português seja tão insistente na distinção que nu é “o que não está vestido” e descalço “o que não está calçado”, ao passo que outras línguas referem os pés descobertos exactamente como os braços descobertos, por desnudo, nu, naked ou bare. E este bare do dinamarquês é ainda mais curioso, porque designa tudo o que não está coberto, excepto se for uma pessoa inteira, que, sem roupa, o que está é nøgen, e não bare. E a verdade, já agora, que às vezes é nua e crua? Posso propor uma verdade descalça e crua, ou não vos cheira?
Voltando aos sapatos, e por falar em cheiros, o meu dicionário diz que chulé é o “mau cheiro dos pés”, mas poderia, com a mesma propriedade, dizer que é o mau cheiro dos sapatos, porque, nisto de maus cheiros, é difícil saber onde é que acaba o pé e começa o sapato. Tive já sapatos que me faziam cheirar mal dos pés, e que cheiravam mal eles próprios, e outros que não. Mas vá lá uma pessoa saber se é o pé que conspurca o sapato ou o sapato que conspurca o pé. Nunca me lembro de ter cheirado mal dos pés andando descalço, de chinelas, ou de sandálias bem abertas. E abandono esta excursão, que começa já a tresandar, e passo atèquenfim à história destes sapatos que trago calçados, cuja marca aqui omito para não lhe fazer publicidade, mas de que posso esclarecer que são toscanos na origem.
O que estes sapatos já viajaram, Deus meu! Senão, vejam: Primeiro, viajaram couro e sola até à fábrica, vindos sabe-se lá de onde. Depois de umas quantas passeatas por máquinas e mãos de artesãos, viajaram os sapatos que agora já o eram até algum grande armazém onde ficaram a aguardar uma sorte que não sabiam imaginar, porque a perspectiva de um sapato, nesta situação, não vai nunca muito além da sua caixa de cartão. Mas, passadas semanas, ou talvez meses, quem sabe?, começou a sua aventura maior, comparável à de tantos humanos seus compatriotas que deixaram Itália para se fixar em qualquer outro lado do mundo. Foram provavelmente de camião até um porto ou um aeroporto, e depois de barco ou de avião até à Dinamarca, que era o destino que, sem eles sonharem, lhes estava há muito fixado. Ou então foi sempre por estrada que continuaram até lá, também pode ser. É provável que tenham passado mais algum tempo nalgum sombrio armazém, quem sabe se a tiritar de frio e desesperançados do seu futuro, até os levarem à loja onde seriam depois vendidos.
Deve ter sido uma loja em Frederiksberg ou na própria Copenhaga, onde os deve ter comprado um homem já não muito jovem e de gosto conservador como eu. Sabe-se lá agora o que os sapatos terão viajado nos pés desse senhor. Talvez até Espanha ou à Grécia de férias, se calhar até Paris ou Berlim. Se calhar, o dono levou-os até de volta à sua Itália natal, onde eles pisaram pela primeira vez o solo pátrio. Depois, o senhor deve ter-se fartado deles e deu-os à Cruz Vermelha dinamarquesa, que os pôs à venda na sua loja de roupa e calçado em segunda mão em Frederiksberg, onde eu os comprei por 100 coroas apenas, ainda em muito bom estado.
Comigo, fizeram, além de viagens pequenas casa-trabalho-e-volta que eu nunca percebi se lhes agradavam ou não, uma viagem grande de Copenhaga a Maputo, que devem ter achado demasiado cansativa para a idade que tinham: no segundo dia em Maputo abriram-se e ficaram a descansar no quarto de hotel, acho eu que sem saberem o que perdiam, porque eu passeei muito por Maputo e Maputo é daquelas cidades onde dá gosto passear. Foram em seguida de Maputo a Nampula dentro da minha mala, porque eu não me quis desfazer deles, talvez os conseguisse ainda arranjar. E então, quando cheguei a Nampula, pu-los a consertar num oficina de sapateiro de uma associação de deficientes que por lá encontrei e eles vieram do conserto muito deficientemente arranjados, porque sola não havia em Nampula, ou pelo menos aqueles sapateiros diziam que não, e substituíram-lhes a sola por borracha de má qualidade, mas enfim, tão mal também não estava que não se pudessem usar, e então, como já disse, são esses sapatos que trago neste momento calçados…
Pois é, eu cá… os meus sapatos…andaram p’los prados, pisaram a lua, dormiram em casa das fadas e fizeram dançar umas quantas, como cantava Félix Leclerc. Além de tudo o mais para que possam servir – matar baratas ou dar pontapés numa bola, por exemplo –, uma função importante dos sapatos é aquilo a que poderíamos chamar a sua função musical: dançar… e serem cantados! Já introduzi lá atrás, muito ao de leve (com sapatos vermelhos, lembram-se?), o tema dos sapatos como motivo de canção. Ou o calçado em geral, seja. É, curiosamente, um motivo muito mais frequente do que se possa pensar, e há muitos clássicos da canção que falam de calçado, quando nos pomos a pensar um bocado. Além desta canção “Moi, mes souliers” de Félix Leclerc, há “High heeled sneakers” de Jerry Lee Lewis, “Blue suede shoes” e “Pointed Toe Shoes”, de Carl Perkins, “These boots are made for walking”, de Lee Hazlewood, “Boots of Spanish leather” de Bob Dylan, “Les sabots d’Héléne” de Georges Brassens… e dezenas de etecéteras. Os Flaming Groovies têm um E.P. de culto chamado Sneakers e os Henry Cow têm um álbum legendário chamado Leg End, só que, a julgar pela capa, o que, nesse caso, está na ponta da perna não é um sapato, e nem sequer um pé, é uma meia de lã, e então, pai natal falhado que sou, parece que já estou a querer enfiar nos sapatos cantigas que lá não cabem, que não entram nesta história nem com calçadeira…
O que entra nesta história sem precisar de calçadeira outra que não seja a própria palavra história é, isso sim, a História dos sapatos. Uma história que nem sequer tem muito que eu lhe diga, e ainda bem, pelo que aqui fica, com o agá grande mais pequeno que eu consigo arranjar:
Ao princípio, as pessoas andavam descalças e só depois é que começaram a calçar-se. E, por muito que se tivessem tornado, nalgumas partes do mundo, parte inalienável do corpo – como a roupa, aliás, que nós somos animais de pele insuficiente –, os sapatos nunca se tornaram (infelizmente?) património genético, de maneira que continuamos a nascer descalços e a calçar-nos só mais tarde... Durante muitos milhares de anos, as pessoas de todo o mundo calçavam-se com coisas simples, e em todos os tempos e lugares o luxo no calçar sempre foi o primeiro e mais óbvio sinal exterior de riqueza.
Há relativamente pouco tempo deu às pessoas sobretudo da Europa para disparatar também no calçado. Foram três os disparates maiores de que as pessoas revestiram, e revestem, as extremidades dos membros inferiores: O primeiro grande disparate foram as poulaines que apareceram na Europa no século XII, cujas pontas reviradas chegavam a ter 60 cm e até a serem atadas aos joelhos! Outro disparate grande, o segundo, foram os sapatos de biqueira alargada do séc. XVI: nalguns sítios e nalgumas classes, as biqueiras alargaram tanto que a sua largura chegou a ser delimitada por lei! O terceiro e último disparate, quiçá o maior de todos, foram os tacões altos, às vezes até muito altos, inventados no fim do séc. XVI e divulgados sobretudo por Louis XIV e pela sua corte, que, desde então, nunca passaram de moda. Fazem mal, são desconfortáveis, mas enfim, dão altura e fazem sobressair a barriga da perna, o que é que querem que vos diga?
Que de excursões, como diria o outro, com os sapatos a pretexto! É como eu dizia: os sapatos têm histórias como as cerejas, que se enredam umas nas outras e, a propósito de coisa quase nenhuma, podem trazer atrás tudo o que diga respeito seja lá ao que for… Até já me doem os pés de tanto delirar sobre sapatos. Vou descalçar-me e dá-los por terminados.
Foto: Sapatos alemães da segunda metade do séc. XV e primeira metade do séc. XVI, Museu Nacional da Baviera, Munique
Os sapatos
Os sapatos, como todos os objectos, têm histórias maravilhosas que me fazem sonhar. Mais do que apenas novelas, verdadeiros romances, recheados de complicados enredos secundários.
Tomemos quaisquer sapatos, por exemplo os que trago calçados. São sapatos estupidamente clássicos, desses que em Portugal são normalmente conhecidos por mocassin (pronunciado à francesa, mòcassã), por muito que o meu dicionário registe antes mocassim: “calçado de pele usado pelos índios da América do Norte, sem tacão e com a sola revirada dos lados e à frente, para melhor protecção do pé; qualquer sapato desportivo que se assemelhe a este calçado”.
(O filho de uma amiga minha, nascido e criado os primeiros anos da sua vida nos Países Baixos, chamava-lhes “sapatos à turco”. É que os neerlandeses, como os outros povos da Europa do Norte, usam sapatos de atacadores, e ele só conhecia dos turcos sapatos assim. Então, quando veio para Portugal, achou curioso ver o tio dele com sapatos daqueles: “Olha, o tio Zé tem sapatos à turco!” Mas era porque ele não conhecia ainda o gosto, pelo menos o mais conservador, dos países latinos da Europa e da América. Mas então, eu, que nunca me quis nem conservador nem latino, é isso que os meus sapatos mostram que sou? Pois seja!, aceito... Com algumas reticências, como mostram claramente os três pontinhos, mas que remédio tenho senão aceitar?)
Uma das histórias maravilhosas que entram na história de qualquer objecto é a da sua designação. Por que é que se chamam sapatos os sapatos, de onde lhes vem o nome? E os mocassins, onde foram buscar tão estranha designação? Bom, a etimologia de sapato, ao contrário da etimologia de mocassin, está longe de ser pacífica.
Mocassin vem das línguas dos índios americanos, porque foram eles a apresentar aos europeus esse tipo de calçado. Há quem queira especificar que é de uma língua determinada (algonquino, por exemplo), mas é arriscado, porque parece que, entre mokasin e makisin, várias línguas tinham designações semelhantes.
Agora, sapato é mais complicado. Se se seguir a opinião da maioria, a palavra portuguesa sapato vem da espanhola zapato, introduzida por alturas do Renascimento, que por sua vez vem do turco (zabata ou chabata, conforme os dicionários), provavelmente através do árabe sabbat. Mas há quem diga que a palavra portuguesa vem directamente do árabe, e há quem defenda a origem eslava da palavra espanhola. Enfim, origem debatida, se não mesmo polémica.
A questão é que não é fácil saber o que é que vem de quê, quando há tantas palavras semelhantes (todas elas para designar tipos de calçado, embora nem sempre o mesmo) em idiomas tão distintos como o português, o occitano, o francês, o italiano, o basco, o árabe vulgar, várias línguas eslavas e inclusivamente o tártaro e o persa – a lista é do Coromines, que é uma das autoridades nestas matérias de etimologia. É isso mesmo: o nosso sapato pertence a uma grande família etimológica, com primos direitos uns a residir aqui perto, como o italiano ciabatta (“sapatilha”), o francês savate (“sapato velho”), e outros a residir bem longe, como o indonésio sepatu (“sapato”), que foi levado para aquelas paragens, juntamente com o objecto que designa, pelos portugueses ou pelos espanhóis; e talvez até mesmo primos afastados, como sabot (“soca”, originalmente em francês, mas naturalizado também inglês), pelo menos se for verdade a tese que diz que a palavra, surgida no século XV, vem de uma contracção de savate (que naquela altura era “sapato” só, sem aludir ao seu estado de deterioração) e bot (uma forma antiga de botte, “bota”). É claro, os mocassins pertencem também seguramente a uma família etimológica, mas essa nunca me foi apresentada.
Mocassin é um hipónimo de sapato, que é então, por sua vez, um hiperónimo de mocassin, e o que estes tão estranhos palavrões querem dizer é apenas que os mocassins são um dos muitos tipos de sapatos que há. Para os que acham graça a este tipo de coisas, adianto que o fazer-se parte de um grupo “natural”, como os mocassins fazem parte dos sapatos, tem algumas implicações óbvias, que toda a gente sabe mas que só os lógicos perderam tempo a analisar e a formalizar. Por exemplo: Todos os mocassins são sapatos, mas nem todos os sapatos são mocassins. Pronto. Por isso, posso dizer: “Estavam lá muitos sapatos, mas não vi lá nenhuns mocassins”, mas não posso dizer, obviamente, (quer dizer, posso, mas hão-de pensar que eu não bato bem…) “Estavam lá muitos mocassins, mas não vi lá nenhuns sapatos”. Mas é uma relação de hiperonímia estranha, esta que há entre sapatos e mocassins, muito diferente daquelas mais clássicas como a que existe entre animal e cão. Se eu disser ou escrever “o cão entrou na sala; o animal vinha esfomeado”, ninguém hesita em compreender que o animal é o cão. Já se eu disser ao contrário, é esquisito, não é?: “o animal entrou na sala; o cão vinha esfomeado.” Mas tratando-se de sapatos, é tudo mais estranho ainda. Se “deixou os sapatos debaixo da cama; os mocassins estavam enlameados” é, como se previa, uma frase esquisita, já “deixou os mocassins debaixo da cama; os sapatos estavam enlameados” não é menos esquisito, e isso é que é esquisito…
Desisto disto e resumo para avançar: Além de fazerem parte de famílias etimológicas, tanto mocassim como sapato fazem parte de outras famílias, das quais acabo de referir a do calçado, no caso dos sapatos, e a dos sapatos, no caso dos mocassins. E como os mocassins são um dos muitos tipos de sapatos que há, são forçosamente uma variedade de calçado. Até aqui, acho que o consenso ainda vai alargado, porque o que cabe no menos cabe no mais, como diz o dito. A partir daqui, as coisas complicam-se: os sapatos, mocassins incluídos, estão incluídos no vestuário? Pelo menos em português, as duas palavras, calçado e vestuário, “o que se veste” e “o que se calça”, parecem referir grupos de objectos completamente distintos. Conjuntos sem intersecção: há alguma coisa que se possa vestir e calçar ao mesmo tempo? Parece que não. Mas já o meu dicionário, como os dicionários costumam, discorda desse comum senso que é o dos falantes apenas nativos e inclui o calçado no vestuário e calçar no vestir: “calçado: peça de vestuário para cobrir exteriormente os pés”; “calçar: revestir pés, pernas ou mãos com o vestuário que lhes compete”. Aceita-se ou rejeita se? E aceitando ou rejeitando – dá igual… –, terá isto tudo alguma lógica?
Se pusermos temporariamente de lado a nossa lusa classificação, podemos constatar que, por exemplo, em espanhol (¡ponte los zapatos rojos y baila la jota!), em francês (mets tes chaussures rouges et danse la java !) ou em inglês (put on your red shoes and dance the blues!) os sapatos como a roupa se “põem”, que é uma coisa que em português só se faz aos chapéus… ou às perucas.
Além disso, em português, como em espanhol ou francês, calçam-se luvas. E será que isso faz delas calçado? Nada! Mas peças de vestuário, serão? Não nos soa. Pobres luvas, feitas assim órfãs por estas línguas ingratas. Ainda por cima, sem poderem sequer ser hiperónimos seja lá do que for, porque todos os tipos de luvas são sempre… luvas: luvas de pele, luvas de borracha, luvas de boxe, eu sei lá que mais… Já em francês, por exemplo, as luvas podem ser gants ou moufles ou mitaines, conforme tenham todos os dedos e os dedos inteiros, ou só o polegar separado e um saco para o resto da mão, ou os dedos cortados a meio (eu sei que há mitenes no dicionário português, mas deve ser palavra de um falar diferente do meu, porque nunca a ouvi…). Se perguntarmos aos franceses, porém, qual é o nome genérico dos objectos que calçamos nas mãos, eles dizem-nos que são gants, pelo que tanto gants como moufles como mitaines são tipos de gant. E é exactamente o mesmo em inglês com glove e mitten: parece que um dos termos é hipónimo de si próprio, pelo que é grande a confusão. E eu, que me tinha proposto falar de sapatos, acho que já estou a meter os pés pelas mãos…
Mas as línguas são assim, como se sabe: traiçoeiras. E se deitarmos fora as línguas todas e nos pusermos a pensar sem essas designações prontas-a-vestir que a língua traz, podemos ir até mais longe do que o meu dicionário e dizer que calçado e vestuário é tudo uma mesma coisa, o que nos serve para nos cobrirmos, ponto, embora o português seja tão insistente na distinção que nu é “o que não está vestido” e descalço “o que não está calçado”, ao passo que outras línguas referem os pés descobertos exactamente como os braços descobertos, por desnudo, nu, naked ou bare. E este bare do dinamarquês é ainda mais curioso, porque designa tudo o que não está coberto, excepto se for uma pessoa inteira, que, sem roupa, o que está é nøgen, e não bare. E a verdade, já agora, que às vezes é nua e crua? Posso propor uma verdade descalça e crua, ou não vos cheira?
Voltando aos sapatos, e por falar em cheiros, o meu dicionário diz que chulé é o “mau cheiro dos pés”, mas poderia, com a mesma propriedade, dizer que é o mau cheiro dos sapatos, porque, nisto de maus cheiros, é difícil saber onde é que acaba o pé e começa o sapato. Tive já sapatos que me faziam cheirar mal dos pés, e que cheiravam mal eles próprios, e outros que não. Mas vá lá uma pessoa saber se é o pé que conspurca o sapato ou o sapato que conspurca o pé. Nunca me lembro de ter cheirado mal dos pés andando descalço, de chinelas, ou de sandálias bem abertas. E abandono esta excursão, que começa já a tresandar, e passo atèquenfim à história destes sapatos que trago calçados, cuja marca aqui omito para não lhe fazer publicidade, mas de que posso esclarecer que são toscanos na origem.
O que estes sapatos já viajaram, Deus meu! Senão, vejam: Primeiro, viajaram couro e sola até à fábrica, vindos sabe-se lá de onde. Depois de umas quantas passeatas por máquinas e mãos de artesãos, viajaram os sapatos que agora já o eram até algum grande armazém onde ficaram a aguardar uma sorte que não sabiam imaginar, porque a perspectiva de um sapato, nesta situação, não vai nunca muito além da sua caixa de cartão. Mas, passadas semanas, ou talvez meses, quem sabe?, começou a sua aventura maior, comparável à de tantos humanos seus compatriotas que deixaram Itália para se fixar em qualquer outro lado do mundo. Foram provavelmente de camião até um porto ou um aeroporto, e depois de barco ou de avião até à Dinamarca, que era o destino que, sem eles sonharem, lhes estava há muito fixado. Ou então foi sempre por estrada que continuaram até lá, também pode ser. É provável que tenham passado mais algum tempo nalgum sombrio armazém, quem sabe se a tiritar de frio e desesperançados do seu futuro, até os levarem à loja onde seriam depois vendidos.
Deve ter sido uma loja em Frederiksberg ou na própria Copenhaga, onde os deve ter comprado um homem já não muito jovem e de gosto conservador como eu. Sabe-se lá agora o que os sapatos terão viajado nos pés desse senhor. Talvez até Espanha ou à Grécia de férias, se calhar até Paris ou Berlim. Se calhar, o dono levou-os até de volta à sua Itália natal, onde eles pisaram pela primeira vez o solo pátrio. Depois, o senhor deve ter-se fartado deles e deu-os à Cruz Vermelha dinamarquesa, que os pôs à venda na sua loja de roupa e calçado em segunda mão em Frederiksberg, onde eu os comprei por 100 coroas apenas, ainda em muito bom estado.
Comigo, fizeram, além de viagens pequenas casa-trabalho-e-volta que eu nunca percebi se lhes agradavam ou não, uma viagem grande de Copenhaga a Maputo, que devem ter achado demasiado cansativa para a idade que tinham: no segundo dia em Maputo abriram-se e ficaram a descansar no quarto de hotel, acho eu que sem saberem o que perdiam, porque eu passeei muito por Maputo e Maputo é daquelas cidades onde dá gosto passear. Foram em seguida de Maputo a Nampula dentro da minha mala, porque eu não me quis desfazer deles, talvez os conseguisse ainda arranjar. E então, quando cheguei a Nampula, pu-los a consertar num oficina de sapateiro de uma associação de deficientes que por lá encontrei e eles vieram do conserto muito deficientemente arranjados, porque sola não havia em Nampula, ou pelo menos aqueles sapateiros diziam que não, e substituíram-lhes a sola por borracha de má qualidade, mas enfim, tão mal também não estava que não se pudessem usar, e então, como já disse, são esses sapatos que trago neste momento calçados…
Pois é, eu cá… os meus sapatos…andaram p’los prados, pisaram a lua, dormiram em casa das fadas e fizeram dançar umas quantas, como cantava Félix Leclerc. Além de tudo o mais para que possam servir – matar baratas ou dar pontapés numa bola, por exemplo –, uma função importante dos sapatos é aquilo a que poderíamos chamar a sua função musical: dançar… e serem cantados! Já introduzi lá atrás, muito ao de leve (com sapatos vermelhos, lembram-se?), o tema dos sapatos como motivo de canção. Ou o calçado em geral, seja. É, curiosamente, um motivo muito mais frequente do que se possa pensar, e há muitos clássicos da canção que falam de calçado, quando nos pomos a pensar um bocado. Além desta canção “Moi, mes souliers” de Félix Leclerc, há “High heeled sneakers” de Jerry Lee Lewis, “Blue suede shoes” e “Pointed Toe Shoes”, de Carl Perkins, “These boots are made for walking”, de Lee Hazlewood, “Boots of Spanish leather” de Bob Dylan, “Les sabots d’Héléne” de Georges Brassens… e dezenas de etecéteras. Os Flaming Groovies têm um E.P. de culto chamado Sneakers e os Henry Cow têm um álbum legendário chamado Leg End, só que, a julgar pela capa, o que, nesse caso, está na ponta da perna não é um sapato, e nem sequer um pé, é uma meia de lã, e então, pai natal falhado que sou, parece que já estou a querer enfiar nos sapatos cantigas que lá não cabem, que não entram nesta história nem com calçadeira…
O que entra nesta história sem precisar de calçadeira outra que não seja a própria palavra história é, isso sim, a História dos sapatos. Uma história que nem sequer tem muito que eu lhe diga, e ainda bem, pelo que aqui fica, com o agá grande mais pequeno que eu consigo arranjar:
Ao princípio, as pessoas andavam descalças e só depois é que começaram a calçar-se. E, por muito que se tivessem tornado, nalgumas partes do mundo, parte inalienável do corpo – como a roupa, aliás, que nós somos animais de pele insuficiente –, os sapatos nunca se tornaram (infelizmente?) património genético, de maneira que continuamos a nascer descalços e a calçar-nos só mais tarde... Durante muitos milhares de anos, as pessoas de todo o mundo calçavam-se com coisas simples, e em todos os tempos e lugares o luxo no calçar sempre foi o primeiro e mais óbvio sinal exterior de riqueza.
Há relativamente pouco tempo deu às pessoas sobretudo da Europa para disparatar também no calçado. Foram três os disparates maiores de que as pessoas revestiram, e revestem, as extremidades dos membros inferiores: O primeiro grande disparate foram as poulaines que apareceram na Europa no século XII, cujas pontas reviradas chegavam a ter 60 cm e até a serem atadas aos joelhos! Outro disparate grande, o segundo, foram os sapatos de biqueira alargada do séc. XVI: nalguns sítios e nalgumas classes, as biqueiras alargaram tanto que a sua largura chegou a ser delimitada por lei! O terceiro e último disparate, quiçá o maior de todos, foram os tacões altos, às vezes até muito altos, inventados no fim do séc. XVI e divulgados sobretudo por Louis XIV e pela sua corte, que, desde então, nunca passaram de moda. Fazem mal, são desconfortáveis, mas enfim, dão altura e fazem sobressair a barriga da perna, o que é que querem que vos diga?
Que de excursões, como diria o outro, com os sapatos a pretexto! É como eu dizia: os sapatos têm histórias como as cerejas, que se enredam umas nas outras e, a propósito de coisa quase nenhuma, podem trazer atrás tudo o que diga respeito seja lá ao que for… Até já me doem os pés de tanto delirar sobre sapatos. Vou descalçar-me e dá-los por terminados.
Foto: Sapatos alemães da segunda metade do séc. XV e primeira metade do séc. XVI, Museu Nacional da Baviera, Munique
Louvor de jardins e parques e dos passeios no campo ao fim-de-semana
Já decidimos que, quando voltarmos à Dinamarca, não vamos viver em Copenhaga. É ponto assente, tanto para a Karen como para mim, que não queremos viver mais numa cidade grande. Não foi uma decisão fácil, porque fora das grandes cidades não há trabalho para nós nas profissões que sempre tivemos, mas estamos convencidos de que o esforço de reciclagem que a mudança implica há-de valer bem o sossego que ganhamos. “Mas é mesmo para o campo que vocês querem ir viver?”, costumam perguntar as pessoas, quando anunciamos o nosso plano. Não, a ideia é ir para uma vilazinha de província. Temos três miúdos pequenos e viver mesmo no campo com três miúdos pequenos, na Dinamarca, dá muito trabalho, porque tem de se passar a vida a levá-los aqui e ali e acolá... Mas eu gostava, mais tarde, de viver mesmo no campo, porque gosto cada vez mais do campo. E, independentemente de gostar ou não, estou convencido de que o verde nos é necessário e nos faz bem.
O verde é o que natural para nós, é a nossa casa. Foi lá que passámos milhares de anos a aperfeiçoar-nos, a tornar-nos humanos. Foi para viver no verde que evoluímos e é por isso mesmo que o achamos bonito e nos sentimos bem nele. “Ui, por onde este vem”, adivinho eu que seja a reacção de muita gente (e boa gente!) à romântica simplicidade do postulado. Basta aceitar, sem refilar, a ditadura da nossa natureza? Bem vistas as coisas, nem tudo o que a natureza pôs em nós é positivo por aí além – e há uma parte da natureza humana que é inútil na vida que levam hoje os seus portadores: sei lá, instintos de violência e de recusa dos forasteiros, por exemplo, que nos ficaram da vida de caçadores em pequenos grupos, ou a atracção por açúcares e gorduras, que nos era útil quando a nossa dieta era naturalmente pobre nisso mesmo e a vida que levávamos nos fazia gastar muita energia… Está bem, mas essas sim, essas são partes da nossa natureza que, não podendo desfazer-nos delas, devemos arranjar maneira de equilibrar com outras partes mais morais de nós, ou simplesmente contrariar ou enganar – para bem de nós próprio e dos outros. Agora, a nossa atracção pelo verde, que implicações negativas é que ela tem? Não é mais fácil, em vez de nos esforçarmos por ir buscar a outras actividades e paisagens a satisfação que o verde naturalmente nos dá, darmos mesmo passeios regulares no campo?
Gosto do verde e estou convencido de que a falta de verde faz mal. É o verde que limpa o cotão e a poeira que se nos vão acumulando na alma. Não é preciso ir viver para o campo, acho eu, mas é preciso ir ao campo. Nem que não seja campo mesmo, mesmo a sério. É como o calor, por exemplo: animais tropicais que somos, precisamos de calor para nos sentirmos bem. Na falta de calor a sério, blusões de penas e aquecimento central também servem. Mas frio é que não. O mesmo com o verde: jardins e parques, pode ser, desde que seja vegetação. Agora, urbanizações sem verde são um crime contra a nossa humanidade e passar o fim-de-semana entre paredes, sejam elas quais forem, é autoinfligir-se um mal. A sério.
O verde é o que natural para nós, é a nossa casa. Foi lá que passámos milhares de anos a aperfeiçoar-nos, a tornar-nos humanos. Foi para viver no verde que evoluímos e é por isso mesmo que o achamos bonito e nos sentimos bem nele. “Ui, por onde este vem”, adivinho eu que seja a reacção de muita gente (e boa gente!) à romântica simplicidade do postulado. Basta aceitar, sem refilar, a ditadura da nossa natureza? Bem vistas as coisas, nem tudo o que a natureza pôs em nós é positivo por aí além – e há uma parte da natureza humana que é inútil na vida que levam hoje os seus portadores: sei lá, instintos de violência e de recusa dos forasteiros, por exemplo, que nos ficaram da vida de caçadores em pequenos grupos, ou a atracção por açúcares e gorduras, que nos era útil quando a nossa dieta era naturalmente pobre nisso mesmo e a vida que levávamos nos fazia gastar muita energia… Está bem, mas essas sim, essas são partes da nossa natureza que, não podendo desfazer-nos delas, devemos arranjar maneira de equilibrar com outras partes mais morais de nós, ou simplesmente contrariar ou enganar – para bem de nós próprio e dos outros. Agora, a nossa atracção pelo verde, que implicações negativas é que ela tem? Não é mais fácil, em vez de nos esforçarmos por ir buscar a outras actividades e paisagens a satisfação que o verde naturalmente nos dá, darmos mesmo passeios regulares no campo?
Gosto do verde e estou convencido de que a falta de verde faz mal. É o verde que limpa o cotão e a poeira que se nos vão acumulando na alma. Não é preciso ir viver para o campo, acho eu, mas é preciso ir ao campo. Nem que não seja campo mesmo, mesmo a sério. É como o calor, por exemplo: animais tropicais que somos, precisamos de calor para nos sentirmos bem. Na falta de calor a sério, blusões de penas e aquecimento central também servem. Mas frio é que não. O mesmo com o verde: jardins e parques, pode ser, desde que seja vegetação. Agora, urbanizações sem verde são um crime contra a nossa humanidade e passar o fim-de-semana entre paredes, sejam elas quais forem, é autoinfligir-se um mal. A sério.
12/11/09
A lusa sabedoria na Cornualha
No Museu Marítimo da Cornualha, em Falmouth, uma amostra da lusa sabedoria, ó ia, gravada a maiúsculas de escantilhão brancas num dóri, um bote de bacalhoeiro... Segundo outra versão da lusa sabedoria, o que deve antes crer quem trabalha é: “Ai de mim se não for eu…”
Foto de Seth Jenkinson
Foto de Seth Jenkinson
05/11/09
Spot the blog
Encontrei um blogue (um metablogue, seja) com a temática extremamente específica de listar “blogues extremamente específicos”. O próximo passo é, naturalmente, fazer um blogue (um metametablogue…) onde se listem blogues que listam blogues muito específicos. &cætera…
Chamariscos, digitansos e outras palavras que, por assim dizer, não há
Apareceu-me no outro dia, num texto de que estava a fazer uma revisão, a palavra chamarisco. Tendo em conta o tipo de texto que era (um manual para associações de pequenas e médias empresas), tratava-se com certeza de um erro. Mas podia ter sido uma inspirada criação: se chamariz é “engodo para pássaros” e “engodo, em sentido figurativo”; e se isco é “engodo para peixes” e também “engodo, em sentido figurativo”, então chamarisco é duplo engodo e duplamente figurativo. O ideal, provavelmente, para a caça ao basilisco…
Chamarisco, se não fosse um erro, seria um neologismo de um tipo chamado portmanteau word em inglês, mot-valise em francês e parola-macedonia em italiano. Durante algum tempo, cheguei a pensar que era boa ideia adoptar a expressão italiana, por mais próxima da lógica do português, em vez de usar a expressão inglesa ou a expressão francesa que tanto via usar na nossa língua. Mas acabei por adoptar a expressão amálgama, que entretanto se impôs – e está muito bem assim.
Muitas destas palavras são de grande utilidade, mesmo que não sejam inventadas na nossa língua. Adaptámos sem hesitar amálgamas criadas noutras línguas, umas mais abreviadas (modem, codec, motel...), outras menos (informática, internauta...) e estamos em vias de adoptar outras, como cantautor e digiteca. E podíamos pensar em adoptar ainda mais, mesmo que, para as adoptar, tenhamos de as adaptar.
A maneira mais comum (mas não a única, note-se) de fazer amálgamas é aglutinar duas palavras do mesmo tipo (dois nomes, dois adjectivos, dois verbos...) colando-os nos sons comuns. Às vezes, a sutura realizada noutra língua fica impecável em português, como em glocal, que é aquilo que é ao mesmo tempo global e local (boa palavra!), mas, às vezes, para funcionar bem, a colagem não pode ser demasiado invisível. Por exemplo: os franceses inventaram a palavra adulescent, mistura de adolescent e adulte, que é palavra de utilidade suficiente para merecer ser adaptada ao português, mas como em português o u e o átono se pronunciam da mesma maneira, acho que teria de transformar-se em adultescente, para evitar confusões na oralidade…
Outra maneira de fazer amálgamas é transformar em prefixo ou sufixo uma parte de uma palavra, como quando se usou o -burger de hamburger para fazer cheeseburger. Um exemplo que se costuma dar em inglês ou francês é também o -thon de marathon, “maratona”, em telethon, uma maratona televisiva para angariar fundos para uma causa qualquer. É curioso que, em português, teletona não existe, mas os brasileiros usam (só que sem acento no o) a palavra espanhola teleton. Deve haver alguma coisa em teletona que não soa bem em português… O que será? Já quando se trata de adaptar o inglês walkathon, uma longa caminhada também para angariar fundos, parece que marchatona surge como proposta natural, e encontrei até uma ocorrência (já não é chita…) desta palavra em Google.
Outra maneira de fazer desta salada lexical é agarrar num elemento de formação de uma palavra e aplicá-lo a outras a que ela até aí não se aplicava, como nos casos conhecidos de workaholic e chocoholic em inglês, palavras que se começaram já a espalhar por várias línguas, em versões adaptadas. É interessante constatar o que se está a passar com o aportuguesamento destas palavras a partir de uma pesquisa simples em Google (os números que dou agora dizem respeito ao total das ocorrências das formas masculinas, femininas, singulares e plurais das palavras a o4-11-09 e devem considerar-se ligeiramente inflacionados, porque não fui controlar as ocorrências uma a uma – pode bem haver hits duplos ou triplos no total de hits que Google assinala – e dou números aproximados, porque o tal de ocorrências pode diferir em duas pesquisas com um intervalo de tempo relativamente curto entre elas): trabalhólico aparece cerca de 250 vezes e trabalhólatra cerca de 300 vezes. Não me podem citar nisto, porque não analisei as ocorrências em pormenor, mas, à primeira vista, parece que o uso de trabalhólico e trabalhólatra depende não tanto do grau de purismo dos utentes do neologismo, mas antes (como seria de esperar, aliás…) de serem ou não falantes de português do Brasil: os brasileiros, que dizem naturalmente alcoólatra, preferem trabalhólatra; os não brasileiros, que usam mais a forma criticada alcóolico, usam mais o neologismo trabalhólico. O que é curioso é que não encontro nem uma (!) ocorrência em Google de uma forma que a mim me pareceria natural, trabalhómano… Quanto a chocoólico, a taxa de ocorrência é tão grande que nenhum dicionário deveria hesitar em incluir a palavra na sua próxima edição: cerca de 19 000 ocorrências! Está bem que há um livro com esse nome e que, às vezes, a palavra não significa “viciado em chocolate” («uma cerveja chocoólica»), mas, mesmo assim, já é claramente uma palavra da língua… E mais palavra da língua é chocólatra, que tem direito a definição em dicionários online e cerca de 200 000 ocorrências em Google! Já chocoólatra é palavra com menos fortuna (cerca de 800 ocorrências apenas…) e só vi 3 ocorrências de chocolómanos, mas isso eu percebo, porque é palavra feiota…
Há países em que existe alguma tradição de criar neologismos deste tipo para resistir à importação de palavras estrangeiras. Eu proponho que se faça o mesmo em português, mas só pelo prazer de o fazer, notem bem, que eu não sou muito – ou não sou mesmos nada, seja – de purismos nacionalistas... Agora, com arte e ponderação. Não basta importar, de qualquer maneira. Não podemos, por exemplo, seguir literalmente o exemplo dos quebequenses, que chamam clavardage ao chat (de clavier e bavardage), porque teclersa é uma mistura francamente estúpida de teclado com conversa… Aliás, para o chat o melhor aportuguesamento nem é uma amálgama, o melhor é chamar-lhe simplesmente conversa de chat…cha… conversa de tchatcha, precisamente! Uma palavra como digitanso, porém, parece que fica bem para designar o que chama em inglês um technopeasant… E minhocultura é uma excelente alternativa bem portuguesa a vermicompostagem, que é uma importação directa doutros idiomas...
Que grande sal(s)ada… Pois, isto de neologismos é complicado. Noutro dia, vi no Ciberdúvidas a discussão do neologismo volunturismo, para designar “iniciativas que têm como objectivo unir o turismo solidário/sustentável/comunitário ao voluntariado”. A pessoa que colocava a dúvida dizia que a palavra já existia, mas queria saber se podia usar o neologismo em documentos oficiais. O consultor do Ciberdúvidas, por muito que admitisse que a palavra era “foneticamente aceitável”, não gostava dela, e é um direito que ele tem. Dizia ele que “do ponto de vista semântico, [este vocábulo] poderá ser desagradável porque sugere um trocadilho em que uma vogal é trocada por outra: volunt/a/rismo versus volunt/u/rismo” e que “contém duas ideias que são contraditórias: o exercício abnegado da vontade e o turismo, que sugere desprendimento e prazer pessoal”. Eu digo que é estranho chamar contradição a formas novas de encarar as viagens de férias (em que o prazer pessoal e o exercício abnegado da vontade não se anulem, precisamente). E aproveito para propor que quem ache que não se deve passar férias a trabalhar com miúdos da rua em Maputo se chame um defensor do conservaturismo. Já que estamos em maré de amálgamas relacionadas com turismo, proponho aventurismo para substituir o agora tão popular “turismo de aventura”. Parece-vos bem, ou acham que a segurança e o conforto que o turismo normalmente pressupõe são incompatíveis com o risco da aventura? [Chamo ao tom deste texto brincar a sério, não sabendo bem se me faço assim mal entender… Mas asseguro-vos que o texto quer mesmo dizer o que quer dizer...]
Uma palavra nova não tem de ser útil só para designar melhor o mal designado ou designar, ponto, o que tem falta de designação. Pode ser útil para, em vez de designar, descongestionar, desafiar, trocar as voltas ao discurso. Um dos campeões dos neologismos brincalhões era O’Neill, esse Alexandre grande da nossa poesia. Uma vez, fiz um levantamento de neologismos na obra de O’Neill e encontrei cerca de 200 palavras. Muitos deles eram amálgamas maravilhosas e deixo aqui meia dúzia delas a fechar com graça um texto que pouco a tem. Que passem os dicionários a registar, se fazem favor, coitarado, ejaculatra, màfrarrico, maravirilhas, perikitsch, pestanítido, rastejantraseiro, resmunguarda e tocantar. [Esta última palavra, como é uma amálgama de confecção mais óbvia, foi inventada por muita gente ao mesmo tempo, em português e espanhol. Uma pesquisa simples na net mostrar-vos-á utilizações do verbo tocantar por pessoas com uma probabilidade por assim dizer nula de conhecerem o texto de O’Neill onde ele o usa. Razão de sobra, portanto, para se a adoptar. Além disso, poderiam designar-se os cantautores que tocantam como tocantautores, não é verdade?]
[Já agora, como O’Neill não se limitava a brincar na sua língua-mãe, que passem também a figurar nos dicionários franceses politichien e portugueux, duas palavras úteis para designar tipos de pessoas que, por acaso, existem mesmo…]
Chamarisco, se não fosse um erro, seria um neologismo de um tipo chamado portmanteau word em inglês, mot-valise em francês e parola-macedonia em italiano. Durante algum tempo, cheguei a pensar que era boa ideia adoptar a expressão italiana, por mais próxima da lógica do português, em vez de usar a expressão inglesa ou a expressão francesa que tanto via usar na nossa língua. Mas acabei por adoptar a expressão amálgama, que entretanto se impôs – e está muito bem assim.
Muitas destas palavras são de grande utilidade, mesmo que não sejam inventadas na nossa língua. Adaptámos sem hesitar amálgamas criadas noutras línguas, umas mais abreviadas (modem, codec, motel...), outras menos (informática, internauta...) e estamos em vias de adoptar outras, como cantautor e digiteca. E podíamos pensar em adoptar ainda mais, mesmo que, para as adoptar, tenhamos de as adaptar.
A maneira mais comum (mas não a única, note-se) de fazer amálgamas é aglutinar duas palavras do mesmo tipo (dois nomes, dois adjectivos, dois verbos...) colando-os nos sons comuns. Às vezes, a sutura realizada noutra língua fica impecável em português, como em glocal, que é aquilo que é ao mesmo tempo global e local (boa palavra!), mas, às vezes, para funcionar bem, a colagem não pode ser demasiado invisível. Por exemplo: os franceses inventaram a palavra adulescent, mistura de adolescent e adulte, que é palavra de utilidade suficiente para merecer ser adaptada ao português, mas como em português o u e o átono se pronunciam da mesma maneira, acho que teria de transformar-se em adultescente, para evitar confusões na oralidade…
Outra maneira de fazer amálgamas é transformar em prefixo ou sufixo uma parte de uma palavra, como quando se usou o -burger de hamburger para fazer cheeseburger. Um exemplo que se costuma dar em inglês ou francês é também o -thon de marathon, “maratona”, em telethon, uma maratona televisiva para angariar fundos para uma causa qualquer. É curioso que, em português, teletona não existe, mas os brasileiros usam (só que sem acento no o) a palavra espanhola teleton. Deve haver alguma coisa em teletona que não soa bem em português… O que será? Já quando se trata de adaptar o inglês walkathon, uma longa caminhada também para angariar fundos, parece que marchatona surge como proposta natural, e encontrei até uma ocorrência (já não é chita…) desta palavra em Google.
Outra maneira de fazer desta salada lexical é agarrar num elemento de formação de uma palavra e aplicá-lo a outras a que ela até aí não se aplicava, como nos casos conhecidos de workaholic e chocoholic em inglês, palavras que se começaram já a espalhar por várias línguas, em versões adaptadas. É interessante constatar o que se está a passar com o aportuguesamento destas palavras a partir de uma pesquisa simples em Google (os números que dou agora dizem respeito ao total das ocorrências das formas masculinas, femininas, singulares e plurais das palavras a o4-11-09 e devem considerar-se ligeiramente inflacionados, porque não fui controlar as ocorrências uma a uma – pode bem haver hits duplos ou triplos no total de hits que Google assinala – e dou números aproximados, porque o tal de ocorrências pode diferir em duas pesquisas com um intervalo de tempo relativamente curto entre elas): trabalhólico aparece cerca de 250 vezes e trabalhólatra cerca de 300 vezes. Não me podem citar nisto, porque não analisei as ocorrências em pormenor, mas, à primeira vista, parece que o uso de trabalhólico e trabalhólatra depende não tanto do grau de purismo dos utentes do neologismo, mas antes (como seria de esperar, aliás…) de serem ou não falantes de português do Brasil: os brasileiros, que dizem naturalmente alcoólatra, preferem trabalhólatra; os não brasileiros, que usam mais a forma criticada alcóolico, usam mais o neologismo trabalhólico. O que é curioso é que não encontro nem uma (!) ocorrência em Google de uma forma que a mim me pareceria natural, trabalhómano… Quanto a chocoólico, a taxa de ocorrência é tão grande que nenhum dicionário deveria hesitar em incluir a palavra na sua próxima edição: cerca de 19 000 ocorrências! Está bem que há um livro com esse nome e que, às vezes, a palavra não significa “viciado em chocolate” («uma cerveja chocoólica»), mas, mesmo assim, já é claramente uma palavra da língua… E mais palavra da língua é chocólatra, que tem direito a definição em dicionários online e cerca de 200 000 ocorrências em Google! Já chocoólatra é palavra com menos fortuna (cerca de 800 ocorrências apenas…) e só vi 3 ocorrências de chocolómanos, mas isso eu percebo, porque é palavra feiota…
Há países em que existe alguma tradição de criar neologismos deste tipo para resistir à importação de palavras estrangeiras. Eu proponho que se faça o mesmo em português, mas só pelo prazer de o fazer, notem bem, que eu não sou muito – ou não sou mesmos nada, seja – de purismos nacionalistas... Agora, com arte e ponderação. Não basta importar, de qualquer maneira. Não podemos, por exemplo, seguir literalmente o exemplo dos quebequenses, que chamam clavardage ao chat (de clavier e bavardage), porque teclersa é uma mistura francamente estúpida de teclado com conversa… Aliás, para o chat o melhor aportuguesamento nem é uma amálgama, o melhor é chamar-lhe simplesmente conversa de chat…cha… conversa de tchatcha, precisamente! Uma palavra como digitanso, porém, parece que fica bem para designar o que chama em inglês um technopeasant… E minhocultura é uma excelente alternativa bem portuguesa a vermicompostagem, que é uma importação directa doutros idiomas...
Que grande sal(s)ada… Pois, isto de neologismos é complicado. Noutro dia, vi no Ciberdúvidas a discussão do neologismo volunturismo, para designar “iniciativas que têm como objectivo unir o turismo solidário/sustentável/comunitário ao voluntariado”. A pessoa que colocava a dúvida dizia que a palavra já existia, mas queria saber se podia usar o neologismo em documentos oficiais. O consultor do Ciberdúvidas, por muito que admitisse que a palavra era “foneticamente aceitável”, não gostava dela, e é um direito que ele tem. Dizia ele que “do ponto de vista semântico, [este vocábulo] poderá ser desagradável porque sugere um trocadilho em que uma vogal é trocada por outra: volunt/a/rismo versus volunt/u/rismo” e que “contém duas ideias que são contraditórias: o exercício abnegado da vontade e o turismo, que sugere desprendimento e prazer pessoal”. Eu digo que é estranho chamar contradição a formas novas de encarar as viagens de férias (em que o prazer pessoal e o exercício abnegado da vontade não se anulem, precisamente). E aproveito para propor que quem ache que não se deve passar férias a trabalhar com miúdos da rua em Maputo se chame um defensor do conservaturismo. Já que estamos em maré de amálgamas relacionadas com turismo, proponho aventurismo para substituir o agora tão popular “turismo de aventura”. Parece-vos bem, ou acham que a segurança e o conforto que o turismo normalmente pressupõe são incompatíveis com o risco da aventura? [Chamo ao tom deste texto brincar a sério, não sabendo bem se me faço assim mal entender… Mas asseguro-vos que o texto quer mesmo dizer o que quer dizer...]
Uma palavra nova não tem de ser útil só para designar melhor o mal designado ou designar, ponto, o que tem falta de designação. Pode ser útil para, em vez de designar, descongestionar, desafiar, trocar as voltas ao discurso. Um dos campeões dos neologismos brincalhões era O’Neill, esse Alexandre grande da nossa poesia. Uma vez, fiz um levantamento de neologismos na obra de O’Neill e encontrei cerca de 200 palavras. Muitos deles eram amálgamas maravilhosas e deixo aqui meia dúzia delas a fechar com graça um texto que pouco a tem. Que passem os dicionários a registar, se fazem favor, coitarado, ejaculatra, màfrarrico, maravirilhas, perikitsch, pestanítido, rastejantraseiro, resmunguarda e tocantar. [Esta última palavra, como é uma amálgama de confecção mais óbvia, foi inventada por muita gente ao mesmo tempo, em português e espanhol. Uma pesquisa simples na net mostrar-vos-á utilizações do verbo tocantar por pessoas com uma probabilidade por assim dizer nula de conhecerem o texto de O’Neill onde ele o usa. Razão de sobra, portanto, para se a adoptar. Além disso, poderiam designar-se os cantautores que tocantam como tocantautores, não é verdade?]
[Já agora, como O’Neill não se limitava a brincar na sua língua-mãe, que passem também a figurar nos dicionários franceses politichien e portugueux, duas palavras úteis para designar tipos de pessoas que, por acaso, existem mesmo…]
28/10/09
A história de Aleixo Garcia e um conto que eu desisti de escrever
Em 1923, foi publicado em Portugal um livro de Mário Monteiro chamado Aleixo Garcia, descobridor português do Paraguay e da Bolivia, em 1524-1525: glória ignorada em Portugal; em 1998, foi publicado no Brasil A Saga de Aleixo Garcia: o Descobridor do Império Inca, de Rosana Bond, livro este que é apresentado como relatando “os feitos do desconhecido catarinense que, no século XVI, atravessou toda a América do Sul, alcançou a grande civilização peruana antes dos espanhóis, e virou um mito latino-americano”.
Que Aleixo Garcia era português, não haja dúvida de que era, mesmo que se o considere catarinense; também parece certo que tenha sido um dos primeiros europeus a chegar ao que é hoje o Paraguai e a Bolívia (não nos esqueçamos que iam outros europeus com ele na mesma expedição); que é ignorado, também é verdade, e não só em Portugal (mas na Bolívia e no Paraguai é referido nos compêndios de História e até há ruas com o seu nome...); e que seja uma glória, bom, isso já é mais discutível, como é sempre discutível que alguém seja uma glória… Não é certamente ser uma glória portuguesa, porém, o que nele me interessa, que eu não sou muito dado a nacionalismos, mas sim a sua vida invulgar, onde se cruzam maneiras várias de viver, e a grande aventura de que foi protagonista, que E. Salgari, H. R. Haggard ou E. R. Burroughs gostariam certamente de ter tido como material narrativo.
Como eu a vejo, a história de Aleixo Garcia não é epopeia, mas sim tragédia. Não é a aventura de um herói nacional, fundador de nação e linhagem ou conquistador ao seu serviço, é antes o drama do homem que, cortado do seu mundo, tem de criar para si próprio um lugar numa sociedade diferente, e que, seduzido pela visão da riqueza, se lança num empreendimento tão arrojado que dele só pode resultar desgraça – para ele e para todos os outros.
Deixem-me, já agora, explicar que, se esta história aqui aparece agora, é só porque não consegui fazer dela um conto. Tomei conhecimento da existência de Aleixo Garcia, há uns 10 anos, numa História da Bolívia. Descobri depois que tinha saído há pouco tempo um livro sobre ele, no Brasil, e, durante muito tempo, tentei obter esse livro, mas nunca consegui. Fui tomando notas de tudo o que apanhava sobre o assunto, com o propósito firme de um dia escrever um conto ou uma pequena novela em que romanceasse a aventura de Garcia, mas foi projecto que acabou por ficar em águas de bacalhau. Para fazer um conto, precisava de saber palavras e nomes de pessoas guaranis, e precisava de saber como era a vida dessa gente nessa altura, e falta-me, para essa pesquisa, o dinheiro que o tempo é. Decidi então contar a história de Aleixo Garcia em versão apenas enciclopédica, ou quase, só para a apresentar a quem a não conheça:
Na sua segunda viagem à procura da passagem de Ocidente que o levasse às Índias, João Dias de Solis partiu, de perto de Cádiz, a 8 de Outubro de 1515. Essa viagem terminou para ele a 20 de Janeiro do ano seguinte. No sítio que é hoje Ponta Gorda, no Uruguai, Solis foi a terra com um grupo de homens. Os barcos ficaram ancorados perto da costa, de maneira que os homens de Solis o viram ser atacado por índios locais e assistiram à sua morte à mão dos nativos. Os barcos da frota de Solis, comandados pelo seu cunhado Francisco de Torres, regressaram a terras de Espanha a 4 de Setembro do 1516. Ou antes, só regressaram duas das três naves. A galé em que viajava Aleixo Garcia naufragou não longe do que hoje se chama Florianápolis, a ilha de Meiembipe. Salvaram-se, consoante as fontes, entre 11 e 18 marinheiros europeus. Aleixo Garcia era um deles.
[Dizia eu lá atrás que a aventura é mais trágica que épica, mas não deixa, ainda assim, de ter fortes traços de epopeia. Não sei se vos acontece o mesmo, mas, a mim, qualquer náufrago que se salve a nado traz-me logo à mente a imagem mítica de Camões, a nadar só com um braço e com o outro a tentar livrar da salmoura um esboço dos Lusíadas. É que a lenda, mesmo que só lenda, tem pujança, isso não se o pode negar... E claro, fico logo cheio de vontade de aqui fazer aparecer deuses a vociferar em decassílabo heróico e de pôr Vénus a proteger Aleixo Garcia, por ele ser da estirpe do Gama. O enredo podia ser, por exemplo, que, da mesma forma que protegem os audazes, os deuses castigam os cobardes, e que o naufrágio teria sido o castigo de Neptuno para os que decidiram abandonar a empresa gloriosa em que os tinham enviado Fernando e Isabel e fogem a correr para casa, só por terem visto João de Solis ser comido pelos originaios uruguários. Mas, qual o quê, sou um escritor raso e ignorante da beleza clássica, e seria aventura vã meter-me por tão complexos floreios da narrativa…. Fico-me por uma história mais chã.]
Aleixo e os seus companheiros foram recebidos pelos guaranis carijós. Aleixo Garcia ambientou-se, aprendeu a língua, casou-se e teve um filho, tornou-se ele próprio um chefe local. Quando ouviu as histórias que os carijós contavam das riquezas imensas dos reinos das terras altas, entre as quais uma montanha toda de prata, Aleixo Garcia pensou em reunir um exército para ir à conquistas desses tesouros. E foi o que fez. Não se sabe ao certo quando partiu. Algumas fontes dizem 1522, outras 1524. Também não se sabe quanto tempo levou a chegar ao império dos incas. Também nisso não concordam os documentos que consultei. Mas todos os textos que encontrei sobre a expedição de Aleixo Garcia estão de acordo numa coisa: o grupo que reuniu era de cerca de 2000 pessoas. E não apenas um exército como o concebemos normalmente, porque havia também na expedição mulheres e crianças.
A expedição de Aleixo Garcia subiu o chamado caminho do Peabiru, uma rota que era já utilizada há muitas centenas de anos. Não foi, claro está, a primeira vez que entraram em contacto os povos das terras baixas e os habitantes do planalto. Sabe-se que os incas desceram até às terras baixas e até é possível que tenham sido os povos do altiplano andino a abrir a rota do Peabiru. [Vem-me à memória uma descrição que li uma vez, que não me lembro de quem era e que não faço ideia que rigor terá, de um exército de soberbos guerreiros incas, invencíveis nas guerras abertas no planalto, a serem aniquilados um por um por zarabatanas de guerrilheiros invisíveis, quando tentaram em vão alargar o império às matas tropicais. Mas enfim, isso foi com certeza noutros lugares mais a Norte… O que é provável, porém, é que, como acontece muitas vezes quando se trata de contactos entre povos, os comerciantes tenham precedido os soldados e se fizesse há muito tempo comércio nesse rota que ficaria depois célebre como trajecto de expedições guerreiras.] Passando, provavelmente, perto do que hoje é Asunción, no Paraguai, e Porto Suárez, na Bolívia, os guaranis de Garcia chegaram às fronteiras do império do Inca Huayna Capac e travaram batalhas com os incas, entre as actuais localidades de Mizque e Tomina, nos departamentos de Cochabamba e de Chuquisaca, respectivamente.
Os guaranis sofreram pesadas baixas, mas parece que conseguiram apoderar-se de algum ouro e prata, antes de serem obrigados a retirar. Para além do exército incaico, os guaranis da costa tinham tido também de enfrentar um clima e uma paisagem desconhecidos, fome e doença. Não devia reinar grande optimismo entre eles quando empreenderam o caminho de regresso. García mandou à frente um pequeno grupo de homens, para irem pedir reforços e deixar a salvo o tesouro conquistado aos incas. O resto da expedição, que tinha tomado no regresso um caminho diferente, fez uma paragem à beira do rio Paraguai e foi aí que Aleixo Garcia morreu. As minhas fontes dividem-se sobre as causas da morte de Garcia: uma versão da história é que o exército de Garcia foi atacado pelos temíveis paiaguás e que Garcia foi uma das muitas vítimas mortais desse ataque. Segundo outra versão (muito mais trágica e que seria, portanto, a que eu adoptaria se tivesse escrito o conto…), Aleixo Garcia teria sido assassinado por um dos seus companheiros europeus.
E é esta a história da história que não escrevi. Nas notas que tinha para o conto, gosto das palavras que queria pôr na boca de um guerreiro carijó que, após uma terrível derrota frente a um exército incaico, quer convencer um Aleixo Garcia obcecado pelo ouro e pela prata a abandonar a empresa e a voltar para casa:
“Os campos celestes onde repousam os guerreiros existem só nos olhares que os homens e as mulheres e as crianças levantam ao céu quando os tentam imaginar algures lá em cima. A glória eterna existe só no coração de quem no-la atribui e na memória de nós. Se morrermos todos, se não ficar ninguém para contar a nossa coragem nem ninguém para a recordar, é sem valor essa coragem e é vã a morte do maior guerreiro.”
_______________
Fontes: Li todos os textos que encontrei online com referências a Aleixo Garcia e ao caminho do Peabiru, mas, para simplificar as coisas e evitar redundâncias, digamos que este pequeno delírio foi montado a partir das entradas Aleixo Garcia e Juan Díaz de Solís da Wikipédia, de três artigos de jornal sobre a obra de Rosana Bond quando ela saiu (um artigo de Etoile Shaw, “Jornalista refaz caminho do descobridor dos incas”, no Estado de 13 de Agosto de 1998, que já não se encontra online; um artigo de Maurício Oliveira, “O verdadeiro descobridor dos incas” em A Notícia, de 28 de Julho de 1998, que também já não se encontra online no sítio original, mas que se pode ler num blogue de Ozias Alves Jr.) e a Historia de Bolivia de José de Mesa, Teresa Gisbert e Carlos Mesa Gisbert (La Paz: Ed. Gisbert, 1999). Também consultei o blogue Peabiru Calunga, que tem mapas do caminho do Peabiru.
Aqui ficam, também, para quem queira aprofundar o assunto, as referências bibliográficas dos dois livros que menciono logo no início e que não tive, infelizmente, possibilidade de ler:
MONTEIRO, Mário. Aleixo Garcia descobridor português do Paraguay e da Bolivia, em 1524-1525: glória ignorada em Portugal. Lisboa: Livraria Central de H. E. G. de Carvalho, 1923, 69 págs.
BOND, Rosana. A Saga de Aleixo Garcia: o Descobridor do Império Inca. Florianápolis: Editora Insular, Fundação Franklin Cascaes, 1998, 86 págs.
________________
Notas um bocado patetas:
Tentações a que, infelizmente, não soube resistir:
os originaios uruguários: Não é gralha, não senhora, é mesmo assim… E esteve quase para ser “os originaios canibários uruguais”…
um conto ou uma pequena novela em que romanceasse a aventura de Garcia: eu bem sei que é uma contradição romancear seja lá o que for num conto ou numa novela, mas é de propósito, acreditem em mim… E também, o que é que eu aqui podia pôr? Contar aqui não me serve e novelar não existe, pois não?
Tentações a que, felizmente, soube resistir:
Na versão anterior à minha auto-censura, onde se lê
João Dias de Solis partiu, de perto de Cádiz, a 8 de Outubro de 1515 lia-se
João Dias de Solis partiu, não do porto de Cádiz mas sim de perto de Cádiz, a 8 de Outubro de 1515
e onde se lê
seria aventura vã meter-me por tão complexos floreios da narrativa lia-se
seria aventura vã (uma avãtura, seria…) meter-me por tão complexos floreios da narrativa – e não porque tenha complexos relativamente a tais floreios…
Para que vocês vejam…
Que Aleixo Garcia era português, não haja dúvida de que era, mesmo que se o considere catarinense; também parece certo que tenha sido um dos primeiros europeus a chegar ao que é hoje o Paraguai e a Bolívia (não nos esqueçamos que iam outros europeus com ele na mesma expedição); que é ignorado, também é verdade, e não só em Portugal (mas na Bolívia e no Paraguai é referido nos compêndios de História e até há ruas com o seu nome...); e que seja uma glória, bom, isso já é mais discutível, como é sempre discutível que alguém seja uma glória… Não é certamente ser uma glória portuguesa, porém, o que nele me interessa, que eu não sou muito dado a nacionalismos, mas sim a sua vida invulgar, onde se cruzam maneiras várias de viver, e a grande aventura de que foi protagonista, que E. Salgari, H. R. Haggard ou E. R. Burroughs gostariam certamente de ter tido como material narrativo.
Como eu a vejo, a história de Aleixo Garcia não é epopeia, mas sim tragédia. Não é a aventura de um herói nacional, fundador de nação e linhagem ou conquistador ao seu serviço, é antes o drama do homem que, cortado do seu mundo, tem de criar para si próprio um lugar numa sociedade diferente, e que, seduzido pela visão da riqueza, se lança num empreendimento tão arrojado que dele só pode resultar desgraça – para ele e para todos os outros.
Deixem-me, já agora, explicar que, se esta história aqui aparece agora, é só porque não consegui fazer dela um conto. Tomei conhecimento da existência de Aleixo Garcia, há uns 10 anos, numa História da Bolívia. Descobri depois que tinha saído há pouco tempo um livro sobre ele, no Brasil, e, durante muito tempo, tentei obter esse livro, mas nunca consegui. Fui tomando notas de tudo o que apanhava sobre o assunto, com o propósito firme de um dia escrever um conto ou uma pequena novela em que romanceasse a aventura de Garcia, mas foi projecto que acabou por ficar em águas de bacalhau. Para fazer um conto, precisava de saber palavras e nomes de pessoas guaranis, e precisava de saber como era a vida dessa gente nessa altura, e falta-me, para essa pesquisa, o dinheiro que o tempo é. Decidi então contar a história de Aleixo Garcia em versão apenas enciclopédica, ou quase, só para a apresentar a quem a não conheça:
Na sua segunda viagem à procura da passagem de Ocidente que o levasse às Índias, João Dias de Solis partiu, de perto de Cádiz, a 8 de Outubro de 1515. Essa viagem terminou para ele a 20 de Janeiro do ano seguinte. No sítio que é hoje Ponta Gorda, no Uruguai, Solis foi a terra com um grupo de homens. Os barcos ficaram ancorados perto da costa, de maneira que os homens de Solis o viram ser atacado por índios locais e assistiram à sua morte à mão dos nativos. Os barcos da frota de Solis, comandados pelo seu cunhado Francisco de Torres, regressaram a terras de Espanha a 4 de Setembro do 1516. Ou antes, só regressaram duas das três naves. A galé em que viajava Aleixo Garcia naufragou não longe do que hoje se chama Florianápolis, a ilha de Meiembipe. Salvaram-se, consoante as fontes, entre 11 e 18 marinheiros europeus. Aleixo Garcia era um deles.
[Dizia eu lá atrás que a aventura é mais trágica que épica, mas não deixa, ainda assim, de ter fortes traços de epopeia. Não sei se vos acontece o mesmo, mas, a mim, qualquer náufrago que se salve a nado traz-me logo à mente a imagem mítica de Camões, a nadar só com um braço e com o outro a tentar livrar da salmoura um esboço dos Lusíadas. É que a lenda, mesmo que só lenda, tem pujança, isso não se o pode negar... E claro, fico logo cheio de vontade de aqui fazer aparecer deuses a vociferar em decassílabo heróico e de pôr Vénus a proteger Aleixo Garcia, por ele ser da estirpe do Gama. O enredo podia ser, por exemplo, que, da mesma forma que protegem os audazes, os deuses castigam os cobardes, e que o naufrágio teria sido o castigo de Neptuno para os que decidiram abandonar a empresa gloriosa em que os tinham enviado Fernando e Isabel e fogem a correr para casa, só por terem visto João de Solis ser comido pelos originaios uruguários. Mas, qual o quê, sou um escritor raso e ignorante da beleza clássica, e seria aventura vã meter-me por tão complexos floreios da narrativa…. Fico-me por uma história mais chã.]
Aleixo e os seus companheiros foram recebidos pelos guaranis carijós. Aleixo Garcia ambientou-se, aprendeu a língua, casou-se e teve um filho, tornou-se ele próprio um chefe local. Quando ouviu as histórias que os carijós contavam das riquezas imensas dos reinos das terras altas, entre as quais uma montanha toda de prata, Aleixo Garcia pensou em reunir um exército para ir à conquistas desses tesouros. E foi o que fez. Não se sabe ao certo quando partiu. Algumas fontes dizem 1522, outras 1524. Também não se sabe quanto tempo levou a chegar ao império dos incas. Também nisso não concordam os documentos que consultei. Mas todos os textos que encontrei sobre a expedição de Aleixo Garcia estão de acordo numa coisa: o grupo que reuniu era de cerca de 2000 pessoas. E não apenas um exército como o concebemos normalmente, porque havia também na expedição mulheres e crianças.
A expedição de Aleixo Garcia subiu o chamado caminho do Peabiru, uma rota que era já utilizada há muitas centenas de anos. Não foi, claro está, a primeira vez que entraram em contacto os povos das terras baixas e os habitantes do planalto. Sabe-se que os incas desceram até às terras baixas e até é possível que tenham sido os povos do altiplano andino a abrir a rota do Peabiru. [Vem-me à memória uma descrição que li uma vez, que não me lembro de quem era e que não faço ideia que rigor terá, de um exército de soberbos guerreiros incas, invencíveis nas guerras abertas no planalto, a serem aniquilados um por um por zarabatanas de guerrilheiros invisíveis, quando tentaram em vão alargar o império às matas tropicais. Mas enfim, isso foi com certeza noutros lugares mais a Norte… O que é provável, porém, é que, como acontece muitas vezes quando se trata de contactos entre povos, os comerciantes tenham precedido os soldados e se fizesse há muito tempo comércio nesse rota que ficaria depois célebre como trajecto de expedições guerreiras.] Passando, provavelmente, perto do que hoje é Asunción, no Paraguai, e Porto Suárez, na Bolívia, os guaranis de Garcia chegaram às fronteiras do império do Inca Huayna Capac e travaram batalhas com os incas, entre as actuais localidades de Mizque e Tomina, nos departamentos de Cochabamba e de Chuquisaca, respectivamente.
Os guaranis sofreram pesadas baixas, mas parece que conseguiram apoderar-se de algum ouro e prata, antes de serem obrigados a retirar. Para além do exército incaico, os guaranis da costa tinham tido também de enfrentar um clima e uma paisagem desconhecidos, fome e doença. Não devia reinar grande optimismo entre eles quando empreenderam o caminho de regresso. García mandou à frente um pequeno grupo de homens, para irem pedir reforços e deixar a salvo o tesouro conquistado aos incas. O resto da expedição, que tinha tomado no regresso um caminho diferente, fez uma paragem à beira do rio Paraguai e foi aí que Aleixo Garcia morreu. As minhas fontes dividem-se sobre as causas da morte de Garcia: uma versão da história é que o exército de Garcia foi atacado pelos temíveis paiaguás e que Garcia foi uma das muitas vítimas mortais desse ataque. Segundo outra versão (muito mais trágica e que seria, portanto, a que eu adoptaria se tivesse escrito o conto…), Aleixo Garcia teria sido assassinado por um dos seus companheiros europeus.
E é esta a história da história que não escrevi. Nas notas que tinha para o conto, gosto das palavras que queria pôr na boca de um guerreiro carijó que, após uma terrível derrota frente a um exército incaico, quer convencer um Aleixo Garcia obcecado pelo ouro e pela prata a abandonar a empresa e a voltar para casa:
“Os campos celestes onde repousam os guerreiros existem só nos olhares que os homens e as mulheres e as crianças levantam ao céu quando os tentam imaginar algures lá em cima. A glória eterna existe só no coração de quem no-la atribui e na memória de nós. Se morrermos todos, se não ficar ninguém para contar a nossa coragem nem ninguém para a recordar, é sem valor essa coragem e é vã a morte do maior guerreiro.”
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Fontes: Li todos os textos que encontrei online com referências a Aleixo Garcia e ao caminho do Peabiru, mas, para simplificar as coisas e evitar redundâncias, digamos que este pequeno delírio foi montado a partir das entradas Aleixo Garcia e Juan Díaz de Solís da Wikipédia, de três artigos de jornal sobre a obra de Rosana Bond quando ela saiu (um artigo de Etoile Shaw, “Jornalista refaz caminho do descobridor dos incas”, no Estado de 13 de Agosto de 1998, que já não se encontra online; um artigo de Maurício Oliveira, “O verdadeiro descobridor dos incas” em A Notícia, de 28 de Julho de 1998, que também já não se encontra online no sítio original, mas que se pode ler num blogue de Ozias Alves Jr.) e a Historia de Bolivia de José de Mesa, Teresa Gisbert e Carlos Mesa Gisbert (La Paz: Ed. Gisbert, 1999). Também consultei o blogue Peabiru Calunga, que tem mapas do caminho do Peabiru.
Aqui ficam, também, para quem queira aprofundar o assunto, as referências bibliográficas dos dois livros que menciono logo no início e que não tive, infelizmente, possibilidade de ler:
MONTEIRO, Mário. Aleixo Garcia descobridor português do Paraguay e da Bolivia, em 1524-1525: glória ignorada em Portugal. Lisboa: Livraria Central de H. E. G. de Carvalho, 1923, 69 págs.
BOND, Rosana. A Saga de Aleixo Garcia: o Descobridor do Império Inca. Florianápolis: Editora Insular, Fundação Franklin Cascaes, 1998, 86 págs.
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Notas um bocado patetas:
Tentações a que, infelizmente, não soube resistir:
os originaios uruguários: Não é gralha, não senhora, é mesmo assim… E esteve quase para ser “os originaios canibários uruguais”…
um conto ou uma pequena novela em que romanceasse a aventura de Garcia: eu bem sei que é uma contradição romancear seja lá o que for num conto ou numa novela, mas é de propósito, acreditem em mim… E também, o que é que eu aqui podia pôr? Contar aqui não me serve e novelar não existe, pois não?
Tentações a que, felizmente, soube resistir:
Na versão anterior à minha auto-censura, onde se lê
João Dias de Solis partiu, de perto de Cádiz, a 8 de Outubro de 1515 lia-se
João Dias de Solis partiu, não do porto de Cádiz mas sim de perto de Cádiz, a 8 de Outubro de 1515
e onde se lê
seria aventura vã meter-me por tão complexos floreios da narrativa lia-se
seria aventura vã (uma avãtura, seria…) meter-me por tão complexos floreios da narrativa – e não porque tenha complexos relativamente a tais floreios…
Para que vocês vejam…
18/10/09
The spirit level*: Recensão
Nunca houve recensões de livros na Travessa, mas, como há para tudo uma primeira vez, eis aqui uma. Por quê? Bom, as razões para aqui pôr uma recensão de um livro são duas e são ambas boas: a primeira é que se trata de um livro cujo tema é, na minha opinião, dos temas mais importantes que um livro pode ter; e a segunda é que foi escrita pelo meu amigo Seth Jenkinson, médico reformado, de Bradford, Reino Unido, que tem a mania de dizer coisas interessantes (e que não se importou de ver arruinada por uma tradução minha a sua prosa…). A recensão é muito britânica, como verão, mas, tratando-se da recensão de um livro de autores britânicos, isso é com certeza uma vantagem – dá-lhe aquela empatia de que costumam falar os críticos de música quando é a Orquestra Filarmónica de Helsínquia a tocar Sibelius…
Wilkinson, Richard & Kate Pickett. The Spirit Level: Why More Equal Societies Almost Always Do Better. London: Penguin, 2009.
É claro, já comprei o livro. Só que, como é arriscado fazer encomendas directamente para aqui, mandei entregá-lo em casa de uns amigos dinamarqueses que nos vêm visitar pelo Natal. Até lá, vou-me educando no site do Equality Trust, onde se podem descarregar muitos e muito instrutivos estudos sobre a relação directa entre desigualdade económica e uma série de coisas más que há no mundo (alguns dos estudos também são muito britânicos, mas mesmo esses são instrutivos). E aconselho-vos a que façam o mesmo: que se ofereçam a vocês mesmos The Spirit Level como prenda de Natal e que se instruam no Equality Trust.
Duas mini-notas finais:
1. Podem os defensores da igualdade (eu sou um deles) argumentar que as discussões morais não se podem reduzir a discussões de factos, e que a igualdade é um valor por si, mesmo que não traga melhor saúde ou menos violência. Eu concordo completamente, mas não faz mal nenhum demonstrar-se que esse valor moral de base, nos países desenvolvidos, traz consigo enormes vantagens práticas…
2. Evidentemente, mesmo para quem aceite as conclusões do livro, uma questão propriamente política permanece, a questão estratégica: como se obtém a igualdade? A única contribuição que posso dar imediatamente para uma resposta a essa pergunta é que o primeiro passo para lá chegar é, com toda a certeza, querer a igualdade… É que, ao contrário do que sugere o subtítulo reinadio proposto por Seth Jenkinson para o livro de Wilkinson e Pickett, a igualdade, como tudo o que é moralmente louvável, é essencialmente contra natura e não se chega lá por acaso. Notem que não quero dizer com isto que o igualitarismo não tenha origem em disposições comuns a todos os seres humanos, ou que não haja algumas tendências igualitaristas em todos os comportamentos sociais (há muitas experiências de várias áreas científicas que parecem prová-lo, sobretudo no que diz respeito a uma componente fundamental do igualitarismo que é a reciprocidade), mas parece que o igualitarismo “natural” não o é em quantidade suficiente para produzir “naturalmente” sociedades justas…).
________________
* Não me atrevo a traduzir o título, fico antes à espera de saber que título terá a edição portuguesa da obra, que, segundo o site do Equality Trust, está prevista para 2010.
** O estudo de Whitehall: Resumo geral aqui e resumos escolhidos aqui.
Wilkinson, Richard & Kate Pickett. The Spirit Level: Why More Equal Societies Almost Always Do Better. London: Penguin, 2009.
É um livro notabilíssimo. Se a ciência que lhe subjaz é verdadeira, é tese para causar uma mudança de paradigma, como a evolução ou a teoria microbiana. Essencialmente, os autores postulam que há provas de que muitos males das sociedade prósperas modernas, desde a obesidade e da toxicodependência até à violência e às cadeias sobrelotadas, passando pela gravidez precoce, todos eles têm uma causa comum: a desigualdade de rendimentos.
Trata-se aqui de uma afirmação revolucionária, porque torna irrelevantes grandes áreas do discurso político. A “sociedade despedaçada” de [David] Cameron e as mães adolescentes que [Gordon] Brown quer pôr em lares precisam ambas da mesma solução, uma sociedade com mais igualdade. As provas apresentadas são, de facto, tão poderosas que implicam que, se não conseguirmos criar sociedades com mais igualdade, outras panaceias não funcionarão, donde a redundância de muita da discussão política actual.
Há pelo menos 20 anos que conheço o trabalho de Wilkinson sobre desigualdade e saúde, mas a tese estende-se agora a novas medições, entre as quais as dos níveis de confiança, doenças mentais (incluindo alcoolismo e toxicodependência), esperança de vida e mortalidade infantil, obesidade, desempenho das crianças na escola, gravidez precoce, homicídios, taxas de encarceramento e mobilidade social.
Obviamente, em sociedades desiguais são os pobres que sofrem mais, mas outra asserção intrigante, com provas, é que há uma estratificação fina das desvantagens sociais que permeia a sociedade até ao topo. Há muitos anos que isto se sabe no campo restrito da medicina, a partir do conhecido estudo de Whitehall** feito por [Michael] Marmot. Este livro vem agora alargar muito o panorama e mostra que os ricos das sociedades menos igualitárias são menos saudáveis e menos felizes do que as pessoas das classes superiores de países onde há mais igualdade. No século XIX, a cólera espalhou-se a partir dos bairros da lata afectando até as classes médias, de modo que, quando se compreendeu a teoria microbiana, água limpa e bom saneamento foram benéficos para todos. Quem beneficiou mais foram os pobres, porque eram eles que mais morriam, mas todos beneficiaram. A analogia hoje é que, dado que a criminalidade, os comportamentos anti-sociais e os custos da dependência transbordam das zonas mais pobres das cidades, toda a gente veria a sua vida melhorada por mais igualdade.
Isto é uma análise de países ricos. Ninguém duvida de que a vida das pessoas dos países pobres só pode ser melhorada com progresso económico. Há, no entanto, um ponto de inflexão (talvez 20 000 dólares anuais per capita) a partir do qual mais aumento de riqueza não corresponde a uma melhoria das estatísticas sociais. O país mais rico e com mais desigualdade, os EUA, há décadas que passou essa barreira e o aumento de riqueza só produziu uma sociedade violenta com uma enorme quantidade de gente na cadeia, em que as classes médias se escondem atrás de fechaduras de segurança em comunidades muradas. O livro é uma devastadora crítica do fracasso da versão estado-unidense da democracia de mercado que domina o mundo desde 1945. Há outras maneiras de lidar com o capitalismo. Os países escandinavos e o Japão, na ponta igualitária do espectro, são exemplos de duas maneiras diferentes de o fazer. Os investigadores conseguem também demonstrar os efeitos da desigualdade entre vários estados dos EUA. É extraordinário, porque mostra a força que tem de ter este efeito para se o conseguir detectar entre estados cuja cultura e riqueza variam tão pouco. Há de longe menos diferenças entre Nova Yorque e New Hampshire do que entre Portugal e a Suécia, e, ainda assim, o parâmetro da desigualdade continua a prever todos os efeitos malignos.
Este livro merece a mais alargada discussão. Num piscar de olhos ao famoso antepassado de 1859, acho que poderia ter como subtítulo “a origem dos stresses, por meios de desigualdades pouco naturais”. Os autores especulam também de uma forma muito interessante, no fim do livro, sobre a plausibilidade biológica de os seres humanos funcionarem melhor em sociedades mais igualitárias.
A obra não é senão a corroboração científica da política de centro-esquerda. É nisso que reside a sua fraqueza, porque as suas conclusões há mais de um século que vêm sendo reiteradas pelos esquerdistas liberais e poderiam ser irreflectidamente recusadas como sendo “vira o disco e toca o mesmo”. Mas não é. O importante aqui é que há PROVAS. Quando se tem provas de que as andorinhas migram para África no Inverno, já não é necessário especular, como fez o Dr. Johnson, sobre elas hibernarem no fundo dos lagos. Morreu o antigo discurso. Os cépticos podem achar difícil aceitar que não precisemos de outra receita para combater comportamentos anti-sociais que não seja mais igualdade. Pode parecer-lhes tão improvável como um passarinho voar até África – mas por acaso é verdade.
Seth Jenkinson, Outubro de 2009
É claro, já comprei o livro. Só que, como é arriscado fazer encomendas directamente para aqui, mandei entregá-lo em casa de uns amigos dinamarqueses que nos vêm visitar pelo Natal. Até lá, vou-me educando no site do Equality Trust, onde se podem descarregar muitos e muito instrutivos estudos sobre a relação directa entre desigualdade económica e uma série de coisas más que há no mundo (alguns dos estudos também são muito britânicos, mas mesmo esses são instrutivos). E aconselho-vos a que façam o mesmo: que se ofereçam a vocês mesmos The Spirit Level como prenda de Natal e que se instruam no Equality Trust.
Duas mini-notas finais:
1. Podem os defensores da igualdade (eu sou um deles) argumentar que as discussões morais não se podem reduzir a discussões de factos, e que a igualdade é um valor por si, mesmo que não traga melhor saúde ou menos violência. Eu concordo completamente, mas não faz mal nenhum demonstrar-se que esse valor moral de base, nos países desenvolvidos, traz consigo enormes vantagens práticas…
2. Evidentemente, mesmo para quem aceite as conclusões do livro, uma questão propriamente política permanece, a questão estratégica: como se obtém a igualdade? A única contribuição que posso dar imediatamente para uma resposta a essa pergunta é que o primeiro passo para lá chegar é, com toda a certeza, querer a igualdade… É que, ao contrário do que sugere o subtítulo reinadio proposto por Seth Jenkinson para o livro de Wilkinson e Pickett, a igualdade, como tudo o que é moralmente louvável, é essencialmente contra natura e não se chega lá por acaso. Notem que não quero dizer com isto que o igualitarismo não tenha origem em disposições comuns a todos os seres humanos, ou que não haja algumas tendências igualitaristas em todos os comportamentos sociais (há muitas experiências de várias áreas científicas que parecem prová-lo, sobretudo no que diz respeito a uma componente fundamental do igualitarismo que é a reciprocidade), mas parece que o igualitarismo “natural” não o é em quantidade suficiente para produzir “naturalmente” sociedades justas…).
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* Não me atrevo a traduzir o título, fico antes à espera de saber que título terá a edição portuguesa da obra, que, segundo o site do Equality Trust, está prevista para 2010.
** O estudo de Whitehall: Resumo geral aqui e resumos escolhidos aqui.
Retalhos da vida de três compositores
Eis três histórias de música que, acho eu, podem interessar também a quem não se interessa por música. O que vem a itálico nos textos que se seguem foi traduzido, às vezes em terceira mão, do livro Music in the Western World, A History in Documents (Weiss, Piero e Richard Taruskin, selecção e anotação. Nova Iorque: Schirmer Books, Macmillan, 1983). O resto vem dos sítios para onde vos mandem os links...
Salomé e a vivenda de Garmisch
A ópera Salomé de Richard Strauss (1986-1947), com libreto de Hedwig Lachmann baseado na peça homónima de Oscar Wilde, foi estreada em Dresden em 1905. Num texto educativo da English National Opera, entretanto desaparecido da Internet*, Sarah Lenton dizia-nos sobre essa estreia que, “durante 90 minutos, o público observou traumatizado a história bíblica da morte de S. João Baptista transformada agora num relato de corrupção e depravação. A música era pertinazmente moderna, os cantores cantavam com o máximo das suas forças e tudo aquilo era indescritivelmente macabro. No fim do espectáculo, Strauss virou-se para o público e disse: «Bem, eu gostei bastante – e vocês?»”
Uma conhecida enciclopédia explica também que “a combinação do tema bíblico, do erótico e do homicídio, que tanto atraíam Wilde na história, chocaram o público de ópera desde a primeira apresentação da obra” e que a ópera foi proibida em Londres pelo gabinete de Lord Chamberlain até 1907 e Gustav Mahler não conseguiu obter do censor de Viena consentimento para que ela fosse levada à cena”. Um pequeno escândalo, como se vê.
Interessante também é o que nos conta o próprio compositor sobre a estreia de Salomé e a sua recepção em geral:
A Sinfonia nº 3 de Camille Saint-Saëns, a sinfonia com órgão, de 1886 é uma das sua obras mais conhecidas e é normalmente considerada um clássico do reportório sinfónico. Esta sinfonia, que lança mão de uma orquestra grande reforçada com piano (às vezes a quatro mãos) e órgão, é muito provavelmente, como dizem as liner notes de uma edição que tenho dela, a obra pela qual Saint-Saëns gostaria de ser conhecido. “Dei aqui tudo o que conseguia dar”, disse Saint-Saëns da obra, “o que fiz nessa altura não o voltarei a fazer”.
Mas não é. Ou seja, é uma das obras pelas quais é conhecido, mas a obra pela qual é mais conhecido é O carnaval dos animais, que ele nunca considerou senão uma brincadeira, uma peça menor, sem interesse, e que, por isso mesmo, proibiu de ser tocada em público enquanto fosse vivo. A decisão de Saint-Saëns provoca-me uma estranheza que a proibição simples de execução pública de uma obra não me causa: ele proibiu a execução d’O carnaval dos animais enquanto fosse vivo, mas autorizou expressamente a sua execução após a sua morte. O que, bem vistas as coisas, é o mesmo que dizer assim: “O meu nome, a minha reputação, a maneira como quero que os outros me vejam, tudo isso acaba quando eu acabar… A partir daí, vejam-me lá como quiserem, que eu já cá não estou para ver como me vêem…”. O que é, no mínimo, uma atitude fora do vulgar…
Pode alguém ser quem não é?
Eu sei que, dos músicos, o que conta é a música, mas também sei que quem se interessa por música não consegue nunca deixar de espiolhar um bocadinho a vida de quem a faz. Ora a vida de Prokofiev tem mistérios que cheguem para inspirar muitas novelas; e mistérios que não o são só para amadores como eu – mesmo os grandes estudiosos de Prokofiev confessam-se incapazes de afirmar com o mínimo de certeza que as coisas se passaram assim ou assado, e por esta ou por aquela razão. Por que voltou Prokofiev à Rússia, se não tinha disso nenhuma necessidade, bem pelo contrário? Ninguém compreende. E por que aceitou com aparente docilidade as imposições do Partido? Que sinceridade havia, se havia alguma, na retractação pública em que se humilha a si próprio em 1948? É quase standard, nas biografias de Prokofiev, descrevê-lo na sua juventude como um enfant terrible. Prokofiev não era propriamente uma pessoa submissa, mas, quando lemos a carta que escreve em 1948 à Assembleia-geral dos Compositores Soviéticos, a que a doença o impede de assistir, ficamos sem saber o que pensar. Eis um excerto:
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* O texto de Sarah Lenton encontrava-se em http://www.eno.org/src/Salome.pdf, visto a 18 de Outubro de 2009
Salomé e a vivenda de Garmisch
A ópera Salomé de Richard Strauss (1986-1947), com libreto de Hedwig Lachmann baseado na peça homónima de Oscar Wilde, foi estreada em Dresden em 1905. Num texto educativo da English National Opera, entretanto desaparecido da Internet*, Sarah Lenton dizia-nos sobre essa estreia que, “durante 90 minutos, o público observou traumatizado a história bíblica da morte de S. João Baptista transformada agora num relato de corrupção e depravação. A música era pertinazmente moderna, os cantores cantavam com o máximo das suas forças e tudo aquilo era indescritivelmente macabro. No fim do espectáculo, Strauss virou-se para o público e disse: «Bem, eu gostei bastante – e vocês?»”
Uma conhecida enciclopédia explica também que “a combinação do tema bíblico, do erótico e do homicídio, que tanto atraíam Wilde na história, chocaram o público de ópera desde a primeira apresentação da obra” e que a ópera foi proibida em Londres pelo gabinete de Lord Chamberlain até 1907 e Gustav Mahler não conseguiu obter do censor de Viena consentimento para que ela fosse levada à cena”. Um pequeno escândalo, como se vê.
Interessante também é o que nos conta o próprio compositor sobre a estreia de Salomé e a sua recepção em geral:
O espectáculo teve o sucesso que têm todas as estreias em Dresden, mas os agoireiros todos, a abanarem a cabeça depois, no Bellevue Hotel, eram unânimes na opinião de que, embora a obra pudesse ser produzida num ou noutros teatro de muito grandes dimensões, em breve desapareceria. No espaço de três semanas foi aceite por, creio eu, dez teatros e fez sensação em Breslau com uma orquestra de apenas 70 instrumentos. Depois, começaram os disparates na imprensa, a oposição do clero (…) e dos puritanos de Nova Iorque (…). O imperador alemão consentiu que a obra fosse levada à cena só depois de Sua Excelência [o Administrador Geral] Hülsen se ter lembrado de fazer aparecer no fim a estrela de Belém, como sinal da chegada dos reis magos! Uma ocasião, Guilherme II disse ao seu Administrador Geral: «Tenho pena que Strauss tenha composto esta Salomé. Eu até gosto bastante dele, mas vai desgraçar-se com isto!». Graças a esta desgraça, consegui comprar a minha vivenda de Garmisch!Quando eu morrer, pensem de mim o que quiserem
A Sinfonia nº 3 de Camille Saint-Saëns, a sinfonia com órgão, de 1886 é uma das sua obras mais conhecidas e é normalmente considerada um clássico do reportório sinfónico. Esta sinfonia, que lança mão de uma orquestra grande reforçada com piano (às vezes a quatro mãos) e órgão, é muito provavelmente, como dizem as liner notes de uma edição que tenho dela, a obra pela qual Saint-Saëns gostaria de ser conhecido. “Dei aqui tudo o que conseguia dar”, disse Saint-Saëns da obra, “o que fiz nessa altura não o voltarei a fazer”.
Mas não é. Ou seja, é uma das obras pelas quais é conhecido, mas a obra pela qual é mais conhecido é O carnaval dos animais, que ele nunca considerou senão uma brincadeira, uma peça menor, sem interesse, e que, por isso mesmo, proibiu de ser tocada em público enquanto fosse vivo. A decisão de Saint-Saëns provoca-me uma estranheza que a proibição simples de execução pública de uma obra não me causa: ele proibiu a execução d’O carnaval dos animais enquanto fosse vivo, mas autorizou expressamente a sua execução após a sua morte. O que, bem vistas as coisas, é o mesmo que dizer assim: “O meu nome, a minha reputação, a maneira como quero que os outros me vejam, tudo isso acaba quando eu acabar… A partir daí, vejam-me lá como quiserem, que eu já cá não estou para ver como me vêem…”. O que é, no mínimo, uma atitude fora do vulgar…
Pode alguém ser quem não é?
Eu sei que, dos músicos, o que conta é a música, mas também sei que quem se interessa por música não consegue nunca deixar de espiolhar um bocadinho a vida de quem a faz. Ora a vida de Prokofiev tem mistérios que cheguem para inspirar muitas novelas; e mistérios que não o são só para amadores como eu – mesmo os grandes estudiosos de Prokofiev confessam-se incapazes de afirmar com o mínimo de certeza que as coisas se passaram assim ou assado, e por esta ou por aquela razão. Por que voltou Prokofiev à Rússia, se não tinha disso nenhuma necessidade, bem pelo contrário? Ninguém compreende. E por que aceitou com aparente docilidade as imposições do Partido? Que sinceridade havia, se havia alguma, na retractação pública em que se humilha a si próprio em 1948? É quase standard, nas biografias de Prokofiev, descrevê-lo na sua juventude como um enfant terrible. Prokofiev não era propriamente uma pessoa submissa, mas, quando lemos a carta que escreve em 1948 à Assembleia-geral dos Compositores Soviéticos, a que a doença o impede de assistir, ficamos sem saber o que pensar. Eis um excerto:
No que me diz respeito, a minha obra caracterizou-se por elementos de formalismo até há 15 ou 20 anos. Pelos vistos, apanhei a infecção através do contacto com algumas ideias ocidentais. Quando foram denunciados no Pravda erros formalistas na ópera Lady Macbeth do Distrito de Mtsensk, de Shostakovitch, pensei muito nos mecanismos criativos da minha própria música e cheguei à conclusão de que tal método de composição estava errado.O facto é que, nas obras que Prokofiev refere, escritas depois de ele “renunciar” ao “formalismo pequeno-burguês”, por muito que mais “melódicas” ou menos “modernas”, se continua a sentir o fogo de artifício prokofieviano, que é único. Mais “russa” ou menos “russa”, mais “popular” ou mais “burguesa”, a música de Prokofiev continua a ser genial. Mas o mais interessante é que a História de um Homem a Sério, a ópera em que ele estava a trabalhar na altura, foi recusada e proibida pelo Sindicato dos Compositores, por muito que, na referida carta à Assembleia-geral dos Compositores Soviéticos, Prokofiev desse conta da intenção de “introduzir trios e duetos, coros desenvolvidos em contraponto, para os quais [usaria] algumas melodias folclóricas interessantes do Norte da Rússia”, acrescentando que os elementos que pretendia usar nessa ópera eram “uma melodia lúcida e, tanto quanto possível, uma linguagem harmónica simples”. O que prova que, quando se é Prokofiev, não vale a pena tentar ser outro compositor que não se é…
Por conseguinte, comecei a procurar uma linguagem mais clara e com mais significado. Em várias das minhas obras posteriores (Alexander Nevsky, Um brinde a Estaline, Romeu e Julieta, Quinta Sinfonia) esforcei-me por me libertar de elementos de formalismo e parece-me que, em certa medida, o consegui. A existência de formalismo nalgumas das minhas obras explica-se, provavelmente, por uma certa complacência e por não me ter dado suficientemente conta de que ele é completamente rejeitado pelo nosso povo.
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* O texto de Sarah Lenton encontrava-se em http://www.eno.org/src/Salome.pdf, visto a 18 de Outubro de 2009
15/10/09
E onde estão, pobres de nós, as doces neves de antanho?
Eu espanto-me e é provável que vos aconteça o mesmo: A cada passo tropeço em queixas de que nunca houve, como agora, tanta solidão, tanta violência, tanto medo, tanta intolerância, tanto individualismo, tanto desinteresse no social, tanta uniformização do pensamento… Etc.
E então eu espanto-me e é provável que vos aconteça o mesmo: Nunca ninguém apresenta quaisquer provas do que diz… Mas deixá-lo… Nem sonhem que vou agora aqui argumentar que, se se substituir o tanto por tão pouco, então sim, temos alguma possibilidade de ter razão. Podia fazê-lo, e apresentar números e tudo, mas isso fica adiado, porque agora não me apetece. O que eu quero dizer aqui hoje é outra coisa:
Podem querer acusar-me, e aos outros críticos deste milenarismo de bicha da caixa, de uma contradição fundamental: «Então, tu estás a fazer o mesmo que aqueles que criticas, não vês? Estás a dizer: “Valha-nos Santa Ifigénia, que nunca houve tanta gente a queixar-se como agora!”»
Mas é uma acusação infundada, porque eu não disse isso. Disse só que me espanto, mais nada. Tenho plena consciência de que dizer que «isto nunca esteve tão mau como agora» é comum a todos os tempos e a todos os lugares. Há milhares de anos que isso se diz…
E então eu espanto-me e é provável que vos aconteça o mesmo: Nunca ninguém apresenta quaisquer provas do que diz… Mas deixá-lo… Nem sonhem que vou agora aqui argumentar que, se se substituir o tanto por tão pouco, então sim, temos alguma possibilidade de ter razão. Podia fazê-lo, e apresentar números e tudo, mas isso fica adiado, porque agora não me apetece. O que eu quero dizer aqui hoje é outra coisa:
Podem querer acusar-me, e aos outros críticos deste milenarismo de bicha da caixa, de uma contradição fundamental: «Então, tu estás a fazer o mesmo que aqueles que criticas, não vês? Estás a dizer: “Valha-nos Santa Ifigénia, que nunca houve tanta gente a queixar-se como agora!”»
Mas é uma acusação infundada, porque eu não disse isso. Disse só que me espanto, mais nada. Tenho plena consciência de que dizer que «isto nunca esteve tão mau como agora» é comum a todos os tempos e a todos os lugares. Há milhares de anos que isso se diz…
Isso sim, maridinho!
Já terão visto, com certeza, que às vezes aparece “tradicional” no sítio onde devia estar o nome da autora ou do autor de uma composição. É esquisito, porque tradicional não é o nome de ninguém; e todas as composições têm uma autora ou um autor – forçosamente.
É verdade que agora já há muitas vezes mais rigor na referência da autoria e que se escreve às vezes “domínio público” ou “autor desconhecido”. Mas só a última possibilidade me satisfaz, porque do domínio público são todas as obras cujos direitos de autor tenham caducado, mesmo que se saiba quem as escreveu. Autor tradicional não há, portanto – há é autores desconhecidos.
A ideia de que uma obra de arte possa vir do povo como entidade abstracta é uma estapafúrdia ideia romântica que teve – e tem ainda – muita fortuna. Da mesma forma que os historiadores românticos explicavam a evolução histórica a partir de ideias metafísicas como a alma dos povos, também muitos intelectuais, e mesmo musicólogos, acreditaram na criação musical e lírica colectiva das obras tradicionais. “Grande poeta é o povo”, diz o provérbio, como poderia dizer “Grande compositor é o povo”. Mas é mentira*, além de ser uma falta de respeito por um certo tipo de autores: discute-se muitas vezes a autoria de muitas obras de “grande” música ou literatura, quando não se a pode dar por certa, porque uma obra assim tem de ter um autor; mas uma canção popular já não – pode ter sido construída por todos e por ninguém em particular… Não quero dizer com isto que a música dita “tradicional”, por não ser escrita, não esteja mais sujeita a contínuas alterações do que a música dita erudita. Mas alterações são sempre alterações a alguma coisa e por baixo das alterações há uma canção que uma pessoa concreta criou num determinado momento.
Agora, o que eu gostava de ter sido folclorista, na altura em que os havia a sério! E não só pelos queijos e pelos enchidos que vão sendo oferecidos aos misteriosos académicos de visita, que são com certeza uma das partes mais gratificantes da recolha folclórica, mas também pelo prazer do trabalho de detective que é. Surdo que sou para a música, teria é, claro, que me limitar ao trabalho com as letras, mas o fascínio da arqueologia lírica não é menor do que o da arqueologia musical. Ai, quem de dera, de gravador na mão, a acompanhar Ralph Vaughan Williams pelas charnecas da velha Albion à procura da versão original de “John Barleycorn”, provavelmente sob a forma de uma cerveja muito local…
Isto é tudo a propósito de ter encontrado algures na Internet** (ou seja, sem ter tido direito a queijo nem a enchidos…) duas versões alternativas da letra de uma canção “tradicional” que eu conheço e toda a gente conhece. Eis aqui as três versões da letra da canção. Começo pela que, com um ou outra variaçãozita no número de estrofes e sua na ordem, todos conhecemos e a que eu chamo aqui Versão A:
- Ó mulher, eu compro-te umas meias (bis).
- Isso, não, maridinho, isso não, isso não, / Que me faz as pernas feias. / Compra-me um litro de vinho, / Água fria faz-me mal, isso sim maridinho (bis).
- Ó mulher, eu compro-te umas chancas (bis).
- Isso, não, maridinho, isso não, isso não, / Que me faz as pernas mancas. / Compra-me um litro de vinho, etc.
- Ó mulher, eu compro-te umas botas (bis).
- Isso, não, maridinho, isso não, isso não, / Que me faz as pernas tortas. / Compra-me um litro de vinho, etc.
- Ó mulher, eu compro-te um burrinho (bis).
- Isso sim, maridinho, isso sim, isso sim, / Que dum lado vai o pão. / Doutro lado vai o vinho, / E eu também vou no burrinho. / Compra-me um litro, / Água fria faz-me mal, isso sim maridinho (bis).
E agora, as outras duas versões que eu encontrei, designadas aqui B e C:
Versão B:
- Oh mulher, eu comprava-te umas botas (bis)
- Isso não, maridinho não, / que me faz as pernas tortas; / bom frumento e bom vinho, / boa carne e melhor toucinho.
- Oh mulher, eu comprava-te uns sapatos (bis)
- Isso não, maridinho não, / que me faz andar aos saltos; / bom frumento e bom vinho, / boa carne e melhor toucinho.
- Oh mulher, eu comprava-te um burrinho (bis)
- Isso sim, maridinho sim, / que o burro leva o odre; / o odre leva o vinho, / boa carne e melhor toucinho.
Versão C:
- Oh mulher, oh mulher, / eu comprava-te umas botas.
- Isso não, marido não, / que me faz as pernas tortas. / Compra-me antes um vinhinho / p'ra regar o meu peitinho. / Tu sabes bem maridinho / que a água me faz bem mal.
- Oh mulher, oh mulher, / eu comprava-te uns sapatos.
- Isso não, marido não, / que me faz andar aos saltos. / Compra-me antes um vinhinho, etc.
- Oh mulher, oh mulher, / eu comprava-te um saiote.
- Isso não, marido não, / que fico como um pipote. / Compra-me antes um vinhinho, etc.
- Oh mulher, oh mulher, / eu comprava-te um gibão.
- Isso não, marido não, / que me oprime o coração./ Compra-me antes um vinhinho, etc.
- Oh mulher, oh mulher, / eu comprava-te um pente.
- Isso não, marido não, / que arranha a cabeça à gente./ Compra-me antes um vinhinho, etc..
Qual é a original, ou a mais antiga, e quais são as alterações posteriores? E qual é a liricamente mais rica ou mais original? É impossível dizer. Podemos constatar objectivamente que as várias versões têm de se cantar com melodias diferentes, mas o resto é muito uma questão de gosto. A versão mais conhecida tem uma coisa de que eu gosto, que é ter a estrofe-conclusão mais comprida do que as outras, o que obriga a melodia a marcar passo, mas que, por outro lado, a frase “bom frumento e bom vinho, boa carne e melhor toucinho” da versão B, é muito boa, como é boa também a frase “Tu sabes bem maridinho / que a água me faz bem mal”, da versão C, com o sofisticado jogo de bem e mal.
O que me parece (e foi por isso que aqui a trouxe) é que é uma canção surpreendente:
Há uma maneira, e uma maneira única, penso eu, de a fazer encaixar na mentalidade falocrata dominante (mais ainda na altura em que a canção foi escrita…): é considerar que a mulher bêbeda é um elemento humorístico da cultura machista, ao mesmo nível que o homossexual ou o marido atraiçoado – e que essas personagens são caricatas, aos olhos do homem tradicional, por serem contra o que ele considera natural, por virem baralhar o que é, para ele, “a ordem normal das coisas”, por serem o que uma mulher ou um homem “não deveriam nunca ser”. (Há quem afirme que é muitas vezes a alteração da ordem que é entendida como natural que faz rir uma pessoa, desde que essa pessoa não perceba nessa alteração gravidade ou ameaça.)
É uma perspectiva possível, e não me custa mesmo nada aceitá-la. Se olharmos para a canção de outro ângulo, porém, pode antes parecer-nos que ela faz a apologia de algo tão fora dos valores dominantes que chega a ser uma canção subversiva: O homem oferece à mulher (como, segundo os valores tradicionais, lhe compete) vestuário, calçado e objectos de toilette, para ela ficar mais bonita e lhe agradar mais. A mulher, porém, recusa ver-se reduzida a objecto estético, manda às urtigas roupas e sapatos, e reivindica antes para si os prazeres em princípio reservados aos homens, sobretudo o direito a estados alterados de consciência. Que tal?
___________________
* E um exercício de des-localizada presunção: “Se eu disser de mim que sou / um poeta fabuloso, / não faltará quem me acuse / – com razão! – de presunçoso! // Mas se o povo diz que grande / poeta é o povo, então, / não há ninguém que lhe aponte / essa grande presunção...”
** Não vos dou o link, só para não serem tentados a lá ir, porque, ao que diz um Malware Warning de Google, o site que é está agora cheio de bichezas esquisitas que se metem pelos computadores adentro…
É verdade que agora já há muitas vezes mais rigor na referência da autoria e que se escreve às vezes “domínio público” ou “autor desconhecido”. Mas só a última possibilidade me satisfaz, porque do domínio público são todas as obras cujos direitos de autor tenham caducado, mesmo que se saiba quem as escreveu. Autor tradicional não há, portanto – há é autores desconhecidos.
A ideia de que uma obra de arte possa vir do povo como entidade abstracta é uma estapafúrdia ideia romântica que teve – e tem ainda – muita fortuna. Da mesma forma que os historiadores românticos explicavam a evolução histórica a partir de ideias metafísicas como a alma dos povos, também muitos intelectuais, e mesmo musicólogos, acreditaram na criação musical e lírica colectiva das obras tradicionais. “Grande poeta é o povo”, diz o provérbio, como poderia dizer “Grande compositor é o povo”. Mas é mentira*, além de ser uma falta de respeito por um certo tipo de autores: discute-se muitas vezes a autoria de muitas obras de “grande” música ou literatura, quando não se a pode dar por certa, porque uma obra assim tem de ter um autor; mas uma canção popular já não – pode ter sido construída por todos e por ninguém em particular… Não quero dizer com isto que a música dita “tradicional”, por não ser escrita, não esteja mais sujeita a contínuas alterações do que a música dita erudita. Mas alterações são sempre alterações a alguma coisa e por baixo das alterações há uma canção que uma pessoa concreta criou num determinado momento.
Agora, o que eu gostava de ter sido folclorista, na altura em que os havia a sério! E não só pelos queijos e pelos enchidos que vão sendo oferecidos aos misteriosos académicos de visita, que são com certeza uma das partes mais gratificantes da recolha folclórica, mas também pelo prazer do trabalho de detective que é. Surdo que sou para a música, teria é, claro, que me limitar ao trabalho com as letras, mas o fascínio da arqueologia lírica não é menor do que o da arqueologia musical. Ai, quem de dera, de gravador na mão, a acompanhar Ralph Vaughan Williams pelas charnecas da velha Albion à procura da versão original de “John Barleycorn”, provavelmente sob a forma de uma cerveja muito local…
Isto é tudo a propósito de ter encontrado algures na Internet** (ou seja, sem ter tido direito a queijo nem a enchidos…) duas versões alternativas da letra de uma canção “tradicional” que eu conheço e toda a gente conhece. Eis aqui as três versões da letra da canção. Começo pela que, com um ou outra variaçãozita no número de estrofes e sua na ordem, todos conhecemos e a que eu chamo aqui Versão A:
- Ó mulher, eu compro-te umas meias (bis).
- Isso, não, maridinho, isso não, isso não, / Que me faz as pernas feias. / Compra-me um litro de vinho, / Água fria faz-me mal, isso sim maridinho (bis).
- Ó mulher, eu compro-te umas chancas (bis).
- Isso, não, maridinho, isso não, isso não, / Que me faz as pernas mancas. / Compra-me um litro de vinho, etc.
- Ó mulher, eu compro-te umas botas (bis).
- Isso, não, maridinho, isso não, isso não, / Que me faz as pernas tortas. / Compra-me um litro de vinho, etc.
- Ó mulher, eu compro-te um burrinho (bis).
- Isso sim, maridinho, isso sim, isso sim, / Que dum lado vai o pão. / Doutro lado vai o vinho, / E eu também vou no burrinho. / Compra-me um litro, / Água fria faz-me mal, isso sim maridinho (bis).
E agora, as outras duas versões que eu encontrei, designadas aqui B e C:
Versão B:
- Oh mulher, eu comprava-te umas botas (bis)
- Isso não, maridinho não, / que me faz as pernas tortas; / bom frumento e bom vinho, / boa carne e melhor toucinho.
- Oh mulher, eu comprava-te uns sapatos (bis)
- Isso não, maridinho não, / que me faz andar aos saltos; / bom frumento e bom vinho, / boa carne e melhor toucinho.
- Oh mulher, eu comprava-te um burrinho (bis)
- Isso sim, maridinho sim, / que o burro leva o odre; / o odre leva o vinho, / boa carne e melhor toucinho.
Versão C:
- Oh mulher, oh mulher, / eu comprava-te umas botas.
- Isso não, marido não, / que me faz as pernas tortas. / Compra-me antes um vinhinho / p'ra regar o meu peitinho. / Tu sabes bem maridinho / que a água me faz bem mal.
- Oh mulher, oh mulher, / eu comprava-te uns sapatos.
- Isso não, marido não, / que me faz andar aos saltos. / Compra-me antes um vinhinho, etc.
- Oh mulher, oh mulher, / eu comprava-te um saiote.
- Isso não, marido não, / que fico como um pipote. / Compra-me antes um vinhinho, etc.
- Oh mulher, oh mulher, / eu comprava-te um gibão.
- Isso não, marido não, / que me oprime o coração./ Compra-me antes um vinhinho, etc.
- Oh mulher, oh mulher, / eu comprava-te um pente.
- Isso não, marido não, / que arranha a cabeça à gente./ Compra-me antes um vinhinho, etc..
Qual é a original, ou a mais antiga, e quais são as alterações posteriores? E qual é a liricamente mais rica ou mais original? É impossível dizer. Podemos constatar objectivamente que as várias versões têm de se cantar com melodias diferentes, mas o resto é muito uma questão de gosto. A versão mais conhecida tem uma coisa de que eu gosto, que é ter a estrofe-conclusão mais comprida do que as outras, o que obriga a melodia a marcar passo, mas que, por outro lado, a frase “bom frumento e bom vinho, boa carne e melhor toucinho” da versão B, é muito boa, como é boa também a frase “Tu sabes bem maridinho / que a água me faz bem mal”, da versão C, com o sofisticado jogo de bem e mal.
O que me parece (e foi por isso que aqui a trouxe) é que é uma canção surpreendente:
Há uma maneira, e uma maneira única, penso eu, de a fazer encaixar na mentalidade falocrata dominante (mais ainda na altura em que a canção foi escrita…): é considerar que a mulher bêbeda é um elemento humorístico da cultura machista, ao mesmo nível que o homossexual ou o marido atraiçoado – e que essas personagens são caricatas, aos olhos do homem tradicional, por serem contra o que ele considera natural, por virem baralhar o que é, para ele, “a ordem normal das coisas”, por serem o que uma mulher ou um homem “não deveriam nunca ser”. (Há quem afirme que é muitas vezes a alteração da ordem que é entendida como natural que faz rir uma pessoa, desde que essa pessoa não perceba nessa alteração gravidade ou ameaça.)
É uma perspectiva possível, e não me custa mesmo nada aceitá-la. Se olharmos para a canção de outro ângulo, porém, pode antes parecer-nos que ela faz a apologia de algo tão fora dos valores dominantes que chega a ser uma canção subversiva: O homem oferece à mulher (como, segundo os valores tradicionais, lhe compete) vestuário, calçado e objectos de toilette, para ela ficar mais bonita e lhe agradar mais. A mulher, porém, recusa ver-se reduzida a objecto estético, manda às urtigas roupas e sapatos, e reivindica antes para si os prazeres em princípio reservados aos homens, sobretudo o direito a estados alterados de consciência. Que tal?
___________________
* E um exercício de des-localizada presunção: “Se eu disser de mim que sou / um poeta fabuloso, / não faltará quem me acuse / – com razão! – de presunçoso! // Mas se o povo diz que grande / poeta é o povo, então, / não há ninguém que lhe aponte / essa grande presunção...”
** Não vos dou o link, só para não serem tentados a lá ir, porque, ao que diz um Malware Warning de Google, o site que é está agora cheio de bichezas esquisitas que se metem pelos computadores adentro…
06/10/09
Os ossos deste ofício (a morte em imagens)
imaginem a morte
como imagem monumental
– Évora, Hallstatt, Kutná Hora –,
em memória
dos ossos nossos de cada dia
em espera penitente
de todos os outros ossos
que se lhes hão-de ir juntando,
pelos séculos dos séculos.
imaginem a morte
monstro sem lugar
nas tipologias dos bichos,
inclassificável de feio,
sem hábitos nem habitat,
com esqueleto
por dentro
e por fora.
ou imaginem a morte
como vaga figura narrativa,
talvez com rosto revelado de gente,
talvez escondendo-o debaixo
de um franciscano capuz.
imaginem a morte barqueiro soturno,
misterioso cavaleiro, faz de conta que viajante
à procura de abrigo para a noite.
ou então, imaginem a morte
como gaia ilustração,
um monte de ossos vivaço
a bater o fandango
na folga da monda d’almas
em que sem descanso s’empenha.
se a imaginarem assim
imaginem-na
a estender-vos sorrindo a mão descarnada
e a convidar-vos, gozosa,
com voz de falsete:
“venham de lá esses ossos!”
os ossos
pois,
os meus,
os teus,
os nossos,
os ossos
deste ofício
de estar vivo
[Imagem do Tarot Visconti, Beinecke Rare Book and Manuscript Library, Yale University, New Haven, Connecticut, tirada da Wikipedia]
Existe uma canção feminista feminina?
Mais um texto originalmente publicado a 29 de Outubro de 2008 no extinto blogue Rádio Sim Carolina. Fala dessa letrista singular que é Dory Previn e levanta uma questão que já foi muitas mais vezes levantada do que respondida: a escrita (neste caso, na canção) terá género?
Tenho a sensação de que as canções feministas escritas por homens são, no geral, relativamente previsíveis e panfletárias. É verdade que também há canções feministas previsíveis e panfletárias escritas por mulheres, e canções feministas menos estereotípicas escritas por homens. Mas todas as canções feministas mais directas, mais virulentas, mais provocadoras, mais eficazes que conheço foram escritas por mulheres – e, provavelmente, só poderiam ter sido escritas por mulheres.
Dory Previn, uma cantautora por cujas letras tenho uma admiração especial, é, nesta questão (como em muitas outras!), um caso à parte. Coexistem nela a canção feminista tradicional, a tal que podia ter sido escrita por qualquer pessoa, com a canção do subversivo feminismo feminino. Ou do seu – só dela – único e subversivo feminismo, talvez…
Tomemos a canção “When a Man Wants a Woman”, de Reflections in a Mud Puddle, 1971 (as traduções das canções que aqui aparecem são minhas, que me desculpem os leitores do blogue e sobretudo Dory Previn...):
«Quando um homem quer uma mulher, / diz que é um elogio, / diz que está apenas a tentar / capturá-la, / reclamá-la, / domá-la; / quando quer tudo, tudo dela, / a alma, o amor, / a vida, para sempre, e mais, / diz que a está a persuadir, / diz que anda atrás dela. // Mas quando uma mulher quer um homem, / ele diz que ela o ameaça, / diz que ela está só a montar-lhe uma armadilha, / a aliciá-lo, / a acorrentá-lo, / quando ela quer algo dele, seja lá o que for, / um olhar, um toque, / um bocadinho do seu tempo, / ele diz que ela está a ser exigente, / assegura que ela o está a destruir. // Por que é que / quando um homem quer uma mulher / lhe chamam caçador, / mas quando uma mulher quer um homem / lhe chamam predadora?»
Alguém se surpreenderia se lhe dissessem que a canção tinha sido escrita por um homem? Não sei. Creio que não. Caso bem diferente é o das duas canções que transcrevo a seguir. “Twenty-Mile Zone”, de On my way to where, 1970, e “Starlet Starlet on the Screen Who Will Follow Norma Jean?”, de Reflections in a Mud Puddle, 1971:
«Ia eu a guiar o meu carro, / a gritar à noite, / a gritar à noite, / a gritar ao medo. / Não estava a fazer nada, / só a dar uma volta de carro, / a gritar ao escuro, / a deitar tudo cá para fora. / Era só isso que eu estava a fazer, / só a deitar tudo cá para fora. // Bem, de repente aparece uma mota, / para minha surpresa. / Disse eu: “Sr. Agente, ia em excesso de velocidade?”/ Não lhe via os olhos./ Disse ele: “Não, não ia em excesso de velocidade”. / Pôs a mão na pistola que tinha pendurada / e disse: “Minha senhora, a senhora ia a gritar / a plenos pulmões! / Ia a gritar sozinha! / A senhora ia a gritar no seu carro, / numa zona de velocidade reduzida.” // “E que mal tem gritar? / Vocês não gritam nos vossos jogos, / quando o três-quartos-ponta parte o cotovelo, / quando o pugilista ataca e mutila?»
«Hollywood! / Com quem tem de se foder / para entrar neste filme? / Como se transforma um vício numa virtude? / Com quem tem de se foder / para ser bem tratada? // Levam-nos como se leva um animal para o matadouro, / inspeccionam-nos, classificam-nos, põem-nos um carimbo a dizer se somos de tipo corrente ou de primeira categoria. / Penduram-nos num gancho de carne, e ali ficamos a envelhecer. / Mas a carne de fêmea não melhora com o tempo. / Cortam-nos às peças e tiram a parte mais tenra. / E quando acabam, / o que resta de nós / é rijo, é duro. / Se é essa a ideia que alguém faz do Paraíso, / com quem tem de se foder / para ir para o Inferno? / Viva Hollywood!»
Algum homem escreveria canções assim?
Tenho a sensação de que as canções feministas escritas por homens são, no geral, relativamente previsíveis e panfletárias. É verdade que também há canções feministas previsíveis e panfletárias escritas por mulheres, e canções feministas menos estereotípicas escritas por homens. Mas todas as canções feministas mais directas, mais virulentas, mais provocadoras, mais eficazes que conheço foram escritas por mulheres – e, provavelmente, só poderiam ter sido escritas por mulheres.
Dory Previn, uma cantautora por cujas letras tenho uma admiração especial, é, nesta questão (como em muitas outras!), um caso à parte. Coexistem nela a canção feminista tradicional, a tal que podia ter sido escrita por qualquer pessoa, com a canção do subversivo feminismo feminino. Ou do seu – só dela – único e subversivo feminismo, talvez…
Tomemos a canção “When a Man Wants a Woman”, de Reflections in a Mud Puddle, 1971 (as traduções das canções que aqui aparecem são minhas, que me desculpem os leitores do blogue e sobretudo Dory Previn...):
«Quando um homem quer uma mulher, / diz que é um elogio, / diz que está apenas a tentar / capturá-la, / reclamá-la, / domá-la; / quando quer tudo, tudo dela, / a alma, o amor, / a vida, para sempre, e mais, / diz que a está a persuadir, / diz que anda atrás dela. // Mas quando uma mulher quer um homem, / ele diz que ela o ameaça, / diz que ela está só a montar-lhe uma armadilha, / a aliciá-lo, / a acorrentá-lo, / quando ela quer algo dele, seja lá o que for, / um olhar, um toque, / um bocadinho do seu tempo, / ele diz que ela está a ser exigente, / assegura que ela o está a destruir. // Por que é que / quando um homem quer uma mulher / lhe chamam caçador, / mas quando uma mulher quer um homem / lhe chamam predadora?»
Alguém se surpreenderia se lhe dissessem que a canção tinha sido escrita por um homem? Não sei. Creio que não. Caso bem diferente é o das duas canções que transcrevo a seguir. “Twenty-Mile Zone”, de On my way to where, 1970, e “Starlet Starlet on the Screen Who Will Follow Norma Jean?”, de Reflections in a Mud Puddle, 1971:
«Ia eu a guiar o meu carro, / a gritar à noite, / a gritar à noite, / a gritar ao medo. / Não estava a fazer nada, / só a dar uma volta de carro, / a gritar ao escuro, / a deitar tudo cá para fora. / Era só isso que eu estava a fazer, / só a deitar tudo cá para fora. // Bem, de repente aparece uma mota, / para minha surpresa. / Disse eu: “Sr. Agente, ia em excesso de velocidade?”/ Não lhe via os olhos./ Disse ele: “Não, não ia em excesso de velocidade”. / Pôs a mão na pistola que tinha pendurada / e disse: “Minha senhora, a senhora ia a gritar / a plenos pulmões! / Ia a gritar sozinha! / A senhora ia a gritar no seu carro, / numa zona de velocidade reduzida.” // “E que mal tem gritar? / Vocês não gritam nos vossos jogos, / quando o três-quartos-ponta parte o cotovelo, / quando o pugilista ataca e mutila?»
«Hollywood! / Com quem tem de se foder / para entrar neste filme? / Como se transforma um vício numa virtude? / Com quem tem de se foder / para ser bem tratada? // Levam-nos como se leva um animal para o matadouro, / inspeccionam-nos, classificam-nos, põem-nos um carimbo a dizer se somos de tipo corrente ou de primeira categoria. / Penduram-nos num gancho de carne, e ali ficamos a envelhecer. / Mas a carne de fêmea não melhora com o tempo. / Cortam-nos às peças e tiram a parte mais tenra. / E quando acabam, / o que resta de nós / é rijo, é duro. / Se é essa a ideia que alguém faz do Paraíso, / com quem tem de se foder / para ir para o Inferno? / Viva Hollywood!»
Algum homem escreveria canções assim?
05/10/09
O tempo, mais uma vez
O tempo passa por nós, então, ou nós andamos por ele afora. Muita gente o tem constatado: é assim, com imagens de movimento, umas vezes nosso, outras vezes do próprio tempo, que a gente diz essa perturbadora dimensão do mundo. Agora, por muito que as metáforas espaciais, como se lhes chama, nos possam ajudar a falar do tempo, a (tentar) fazer perceber ao nosso interlocutor como se organizam ocorrências e situações umas em relação às outras e em relação a ao eterno presente em que as dizemos, é verdade é que elas não nos servem para sentir a passagem do tempo.
[A parte séria (credo…) termina aqui, e o que se segue, terão de mo perdoar…, é mais delírio, desregramento do raciocínio...] Costumo viver o tempo da seguinte forma: às vezes, acumulam-se num mesmo espaço imagens de vários tempos; outras vezes, em vez de se acumularem, sucedem-se essas imagens de tempos diferentes. Mas vai tudo dar ao mesmo: a visão de qualquer coisa (um lugar, uma pessoa…) traz-me à consciência o arquivo de imagens dessa mesma coisa. A marca da passagem do tempo é o conjunto de diferenças visíveis entre as diversas imagens mentais, entre as que foram armazenadas em tempos diferentes e entre todas essas e a que tenho na altura diante de mim. Os tempos mudam-se, como as vontades, mas o tempo nunca muda, só as coisas é que mudam nele. Há até outra maneira, mais cruel mas também mais verdadeira, sinto eu, de dizer as coisas: Nem sequer são as coisas que mudam no tempo, o tempo é precisamente a mudança das coisas. Para visualizar o tempo como o sinto, acho mais eficaz do que uma seta ou um caminho a imagem da tinta que cobre uma parede. Que vai perdendo cor até começar a escamar, até cair por completo. Como eu vejo as coisas, a ideia mais forte que resulta da comparação de imagens de tempos diferentes é decomposição, desgaste, deterioração.
Sentir passar o tempo seria deprimente, acho eu, se não houvesse a morte. Mas assim não: o cronómetro é reposto a zero e adia-se constantemente, na vida que recomeça, a decadência do mundo.
[A parte séria (credo…) termina aqui, e o que se segue, terão de mo perdoar…, é mais delírio, desregramento do raciocínio...] Costumo viver o tempo da seguinte forma: às vezes, acumulam-se num mesmo espaço imagens de vários tempos; outras vezes, em vez de se acumularem, sucedem-se essas imagens de tempos diferentes. Mas vai tudo dar ao mesmo: a visão de qualquer coisa (um lugar, uma pessoa…) traz-me à consciência o arquivo de imagens dessa mesma coisa. A marca da passagem do tempo é o conjunto de diferenças visíveis entre as diversas imagens mentais, entre as que foram armazenadas em tempos diferentes e entre todas essas e a que tenho na altura diante de mim. Os tempos mudam-se, como as vontades, mas o tempo nunca muda, só as coisas é que mudam nele. Há até outra maneira, mais cruel mas também mais verdadeira, sinto eu, de dizer as coisas: Nem sequer são as coisas que mudam no tempo, o tempo é precisamente a mudança das coisas. Para visualizar o tempo como o sinto, acho mais eficaz do que uma seta ou um caminho a imagem da tinta que cobre uma parede. Que vai perdendo cor até começar a escamar, até cair por completo. Como eu vejo as coisas, a ideia mais forte que resulta da comparação de imagens de tempos diferentes é decomposição, desgaste, deterioração.
Sentir passar o tempo seria deprimente, acho eu, se não houvesse a morte. Mas assim não: o cronómetro é reposto a zero e adia-se constantemente, na vida que recomeça, a decadência do mundo.