20/02/10

Uma conversa sobre advérbios (1)

Tinha prometido num post anterior que havia de aqui falar de advérbios. E fiz mesmo dois pequenos textos sobre o assunto, este e outro que há-de aparecer aqui muito em breve.

O advérbio é definido de um modo geral como sendo uma palavra invariável que modifica um adjectivo, um verbo ou outro advérbio, e que expressa relações de lugar, tempo, modo, causa, grau, etc. Admite-se nalgumas definições considerar o advérbio não uma palavra mas antes um sintagma e que possa também ser um modificador de frase. Uma das perguntas que podemos fazer-nos sobre a categoria advérbio é se é uma categoria morfológica, sintáctica ou semântica. Normalmente, o advérbio é considerado uma “parte do discurso”, ou uma “classe de palavras”, ao mesmo nível que artigo, nome, adjectivo, verbo, preposição, conjunção, pronome, numeral e interjeição.

Esta tipologia clássica tem sido muito discutida, nomeadamente quanto à pertinência de categorias como pronome, advérbio e interjeição e um das afinações mais comuns que lhe é proposta consiste em juntar numa categoria única (determinante) os artigos, os numerais, uma parte do que são tradicionalmente considerados, às vezes, pronomes e, outras vezes, adjectivos, e ainda uma parte dos advérbios clássicos (quantificadores). A hipótese de que não haja, de facto, advérbios, enquanto categoria morfológica, e de que a categoria advérbio seja apenas sintáctico-semântica, por muito que possa chocar algumas pessoas e seja, claro está, muito polémica, não se pode considerar desarrazoada, tendo em conta não só propostas menos tradicionais de tipologia morfológica, mas também outras evidências triviais, como o facto de haver línguas em que a distinção entre advérbio e adjectivo não é marcada morfologicamente (não é preciso ir muito longe, o neerlandês é uma delas), ou o facto de serem muitas vezes usados sintagmas preposicionais e até mesmo adjectivos com uma função tipicamente adverbial.

Não é essa hipótese, porém, que quero discutir neste pequeno texto. Não pretendo, de modo algum, recusar a existência do advérbio enquanto classe de palavras, mas discutir a pertinência de classificar como advérbios determinadas expressões. Parece-me que estamos, muitas vezes, perante locuções prepositivas (com funções adverbiais, seja, mas locuções prepositivas) que só a tradição ortográfica, ao unificá-las como “palavras”, nos leva a encarar como unidades morfológicas.

Há casos óbvios e casos menos óbvios. Entre os casos óbvios, temos o caso de DEMAIS, que não é de facto senão DE MAIS. Por vezes, diz-se que DEMAIS “advérbio” se escreve junto por oposição a DE + MAIS + nome, sintagma preposicional, e dá-se como truque prático para reconhecer facilmente a diferença entre os dois casos a possibilidade de opor DE MAIS a DE MENOS no mesmo contexto (“Eu gosto de mais sal na comida”, “Eu gosto de menos sal na comida”). Ora, não só o truque prático funciona mal para o caso de DE + MAIS + nome, por exemplo quando MAIS signfica “outros” (“Eu sei de mais sítios onde há este tipo de planta”, *Eu sei de menos sítios onde há este tipo de planta.”), como a oposição a DE MENOS constitui, precisamente, um argumento forte a favor da não existência de nenhum DEMAIS que seja uma unidade morfológica indivisível: é que DEMAIS pode sempre opor-se a DE MENOS, que nunca ninguém achou que se devesse escrever *demenos…: “Ele come demais e é por isso que é tão gordo”, “Ele come de menos e é por isso que é tão magro”.

Evidentemente, é possível argumentar que não há possibilidade de inserir entre o DE e o MAIS de DEMAIS nenhum outro elemento: Diz-se “Eu gosto de muito mais sal na comida” e “Eu sei de muitos mais sítios onde há este tipo de planta”, mas não se pode dizer “*Ele come de muito mais e é por isso que é tão gordo”. Mas é de notar que se passa o mesmo com DE MENOS nas mesmas circunstâncias: “Eu gosto de muito menos sal na comida” funciona, mas “*Ele come de muito menos e é por isso que é tão magro” já não.

De facto, o “advérbio” DEMAIS e a “locução” DE MENOS devem ser encarados como fazendo parte de um paradigma de sintagmas preposicionais de que também fazem parte (pelo menos) A MAIS e A MENOS, que não aceitam quantificadores entre a preposição e o “advérbio”, mas que podem, nalguns casos raros, aceitar certos tipo de qualificação/quantificação exteriores ao sintagma. Diz-se “Isto está aqui a mais”, mas nunca “*Isto está aqui a muito mais.” Aceita-se, porém “Isto está aqui claramente a mais, acredita, é um exagero!” e muitas pessoas aceitarão também “Isto está aqui bem a mais, acredita, é um exagero!”

Evidentemente, resultaria daqui propor que DEMAIS se escreva sempre DE MAIS, para criar coerência com DE MENOS, A MAIS e A MENOS...

Não é muito diferente a questão relativamente a alguns outros “advérbios”. Vejamos mais um exemplo, o caso de DEPRESSA e DEVAGAR. Também aqui me parece que só a convenção ortográfica junta numa única “unidade lexical” uma preposição e um nome. É verdade que, mais uma vez, o teste de quantificação do advérbio nos mostra, no entanto, que a preposição não se pode separar do nome, mas isso é o mesmo que se passa com À PRESSA: Diz-se “Ele fez o trabalho depressa”, mas não se pode dizer “*Ele fez o trabalho de muita/grande pressa”. E diz-se também “Ele fez o trabalho à pressa”, mas também não se pode dizer “*Ele fez o trabalho a muita/grande pressa”. Já com outros sintagmas do mesmo paradigma (COM PRESSA, SEM PRESSA, COM VAGAR, SEM VAGAR) as coisas se passam doutra forma: tanto se diz “Ele fez o trabalho sem pressa” como “Ele fez o trabalho sem muita/grande pressa”.

Nas minha opinião, a indivisibilidade dos sintagmas DEPRESSA e DEVAGAR pode e deve ser explicada a partir das suas características semânticas, sem postular, de uma forma que me parece simplista, que DEPRESSA e DEVAGAR constituem uma unidade lexical – isso não explica, por exemplo, a indivisibilidade de À PRESSA. Ou então, se acharmos que é esse, precisamente, o critério para a classificação do sintagma como um advérbio, devia escrever-se também APRESSA… Digamos que cada uma das locuções tem características sintáctico-semânticas diferentes. Note-se, por exemplo, que SEM admite facilmente a pluralização de PRESSA, ao passo que o seu aparente oposto directo, COM, não a admite: “Ele fez o trabalho sem pressas, no seu ripanço...” está bem, mas “*Ele fez o trabalho com pressas, queria era despachar-se...” não está…

Vejamos agora a questão de uma grande parte dos advérbios, os que têm o traço morfológico comum da terminação em -mente. O que eu proponho aqui é que os advérbios em -mente também não constituem unidades morfológicas de base, mas que se trata antes de sintagmas preposicionais “[semi]cristalizados”: RAPIDAMENTE = (DE) RAPIDA MENTE.

Se digo “semicristalizado” é porque há o desaparecimento da preposição DE (que, numa fase anterior da língua, justificava a forma do sintagma), mas não a fusão do adjectivo e do nome, ao contrário do que pretende a morfologia tradicional. Encontro evidência trivial para justificar este postulado no facto de o pretenso “sufixo” se separar do adjectivo, o que não poderia acontecer se fosse um verdadeiro sufixo, isto é, um morfema preso: do ponto de vista morfológico, PURA E SIMPLESMENTE porta-se como PURA E SIMPLES VERDADE, e não como PURISTA E SIMPLISTA. Além disso, é dificilmente explicável, a partir da proposta clássica o facto de o pretenso sufixo se juntar à forma feminina do adjectivo, o que não acontece com nenhum outro sufixo. A explicação segundo a qual a fusão dos morfemas se deu numa fase anterior da língua parece não ser muito válida, porque continua a haver a possibilidade de criar novos “advérbios de modo em -mente”, mesmo com adjectivos surgidos na língua depois dessa pretensa fusão. Note-se que a classificação proposta (sintagma preposicional cristalizado) pode aplicar-se a outras expressões, como EMBORA.

E por hoje, é esta conversa sobre advérbios. Mas continua em breve.

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