Uma ideia em que passo a vida a tropeçar é de que se está a verificar um empobrecimento da expressão em português, de que os portugueses agora falam e escrevem pior do que antigamente. Podia dar muitos exemplos de variações sobre esse tema catastrofista, que se reproduz em animadas conversas de amigos e artigos de opinião na imprensa, mas dou, precisamente para não particularizar a crítica. É a ideia em si, que me parece, no mínimo, bastante estranha.
Talvez deva começar por dizer que nunca vi ninguém apresentar nada que se pareça com provas dessa pretensa degradação. Afirma-se que existe uma deterioração da qualidade do português falado e escrito com base apenas numa impressão. Ora, tratando-se de um assunto onde há tanta paixão empenhada, não convém mesmo nada abordá-lo a partir de impressões. Uma regra simples do bom senso é, como dizia Bertand Russel, não acreditar numa proposição quando não há qualquer razão para supor que é verdadeira. Ora, (e é por isso que eu digo que tudo isto me parece, no mínimo, muito estranho…), não há qualquer boa razão para supor que uma tal deterioração da expressão possa acontecer subitamente no momento histórico actual. Eu, pelo menos, não vislumbro que razão possa ser. (Aliás, seriam precisas circunstâncias muito especiais para que sucedesse algo assim…)
Curiosamente, parece, à partida, mais plausível o contrário, se bem que o próprio conceito de qualidade de expressão precise de ser definido com clareza: se se partir do princípio de que há alguma relação entre o nível de educação formal e a riqueza da expressão de um falante (acho que é uma hipótese de difícil confirmação, mas já se parece, pelo menos, com uma hipótese racional), deve haver melhoria da expressão dos portugueses em geral porque eles têm hoje um nível de educação formal muito mais elevado do que há bem pouco tempo atrás. Os professores também têm mais formação… Que estranha razão poderá então haver para que o português se esteja a deteriorar?
O meu amigo Nuno comentava uma vez aqui na Travessa que as pessoas têm uma forte tendência a lembrar-se só do bom e a esquecer o mau. Talvez o mito da Idade de Ouro nasça efectivamente dessa obliteração das memórias negativas. Eu, porém, quando me lembro da minha educação primária e secundária, não consigo, nem com muito boa vontade, dourar os contornos dessas memórias: aquilo de que eu me lembro é um ensino desadaptado e desmotivante, sem uma pontinha que fosse de eficácia. Da meia centena de colegas que tinha na escola primária, contam-se certamente pelos dedos de uma mão os que chegaram a saber escrever alguma coisa minimamente articulada. Saber exprimir-se, isso sabiam, como sabe toda a gente no meio a que pertence e nas situações de comunicação que lhe são familiares, e muitos deles dariam grande bailaricos a muitos doutores, com o grande parlapié que eles tinham, uma retórica afinadíssima mas provavelmente desvalorizada por quem critica a pobreza do português actual… Agora um texto de opinião escorreito ou um relatório, não. E têm também provavelmente, dificuldade em ler muitos artigos dos jornais, já para não falar de obras científicas ou literárias. Quem seriam esses portugueses que antigamente se exprimiam bem? Conheci muito poucos.
Outra ideia que costuma andar de mão dadas com esta é a ideia de que o pretenso empobrecimento da expressão se pode resolver com a exposição às obras dos mestres da língua. Mais uma vez, trata-se de uma afirmação por provar. Ler Tolentino, Camilo ou Aquilino Ribeiro ajuda, com certeza, quem queira ler ou escrever um determinado tipo de literatura, mas não é essa a necessidade de expressão da maior parte dos portugueses nem é nesse tipo de textos que os queixosos da degradação da língua lhes apanham os erros. E pode bem ser ao contrário, avento eu: ao insistir em dar às novas gerações uma cultura desadaptada da sua realidade, assente apenas na pretensa superioridade de uma expressão linguística de outrora, provavelmente não estamos a ajudar nada. Não é disso que as novas gerações precisam para exprimirem bem o que precisam de exprimir.
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