19/03/10

Um infinitivo cheio de personalidade

[Depois de uns quantos posts ligeiros, volto a coisas sérias, mas coisas sérias sem importância absolutamente nenhuma: coisas de língua...]

Na sua obra O infinito flexionado português[1], o linguista brasileiro Theodoro Henrique Maurer Jr. recusa liminarmente a proposta de Richard Otto, que defendera[2] que o infinitivo flexionado galego-português podia ter surgido por se ter começado a confundir os pronomes pessoais pospostos aos verbos com desinências verbais: fazer-nos, por exemplo, acabaria por dar fazermos. Maurer não pode aceitar que o infinitivo pessoal, «um tesouro lingüístico de incalculável valor», tenha como origem um «feio solecismo».

Maurer tem toda a razão em recusar a proposta de Otto, que é a pior proposta de explicação que conheço para o surgimento do infinitivo pessoal; mas não deixa de ser curioso que argumente que a forma não poderia nunca ter surgido de um «feio solecismo», porque a própria proposta de explicação de Maurer (que é boa!) se baseia no que, a certos olhos, também pode (deve...) ter parecido um feio solecismo...

O infinitivo pessoal, como decerto saberão, é muitas vezes descrito como sendo uma grande originalidade galego-portuguesa. Por exemplo, a página “Infinitive” da Wikipédia em inglês apresenta o infinitivo português de uma maneira relativamente comum em enciclopédias: “(…) O “infinitivo flexionado” (ou “infinitivo pessoal”) que se encontra em português, em galego e em (algumas variantes de) dialectos sardos tem flexão em pessoa e número. São estas as únicas línguas indo-europeias em que os infinitivos podem ter desinências de pessoa e número”.

Existem duas teorias principais sobre o aparecimento do infinitivo pessoal em português: uma, proposta por Gamillscheg e Rodrigues, entre outros estudiosos da questão, diz que o infinitivo pessoal português deriva de uma forma verbal finita do latim, o imperfeito do conjuntivo, que tem formas semelhantes (do verbo venire, por exemplo: venirem, venires, veniret, veniremus , veniretis, venirent); outra, a tese de Leite de Vasconcelos e de muitos outros linguistas depois dele, diz que apenas se juntaram desinências ao infinitivo impessoal, que podia já, em latim tardio e nos diversos falares romances que dele derivaram, ter um sujeito próprio e pleno, com caso nominativo, exactamente como o sujeito de um verbo num tempo finito. Se a discussão continua é porque, perante uma frase como “et intrarunt in placito testimoniale pro in tertio die darent testes” (“e começaram a audiência para, no terceiro dia, providenciarem testemunhas”, o primeiro infinitivo pessoal atestado!), não se pode afirmar a superioridade de nenhuma das duas hipóteses.
Na leitura da “Teoria Vasconcelos”, o verbo darent está no infinitivo pessoal, pois sofreu um processo de “finitivização”, passando, com isso, a admitir sujeito no caso nominativo como as formas finitas. (...). Na interpretação da “Teoria Gamillscheg-Rodrigues”, a oração subordinada infinitiva [darent testes in tertio die] é, na realidade, uma oração subordinada finita, resultante da supressão da conjunção ut [ut darent testes in tertio die]: o verbo darent está no imperfeito do subjuntivo, terceira pessoa do plural (…).
Esta explicação é de Mathias Schaf Filho, na sua tese de doutoramento, Do acusativo com infinitivo latino ao nominativo com infinitivo português (Univ. de Santa Catarina, 2003), que se encontra online. Quero esclarecer aqui que fui buscar a esta obra muita informação sobre esta questão (nomeadamente a do primeiro parágrafo deste texto) e que, na secção 1.4 (“Hipóteses sobre a origem do infinitivo pessoal português”), de onde é tirada a citação do parágrafo anterior, Mathias Schaf Filho faz um excelente resumo da discussão sobre a origem do infinitivo pessoal. E quero, precisamente, aconselhar a leitura dessa secção da obra a quem queira aprofundar mais o tema, que aqui é forçosamente tratado de forma demasiado resumida (o resto da tese é de leitura mais difícil, sobretudo para quem não esteja familiarizado com a teoria generativista – ou, como dizem os brasileiros, com mais lógica do que os portugueses, gerativista).

Conheço a discussão sobre as origens do infinitivo pessoal há algum tempo e, se bem que reconheça que a discussão está longe de se poder dar por terminada, tendo mais para a tese de Leite de Vasconcelos desenvolvida por Maurer. Parece-me extremamente plausível essa lógica evolutiva (infinitivo aparece em orações introduzidas por preposição > o sujeito destas orações ganha caso nominativo > a forma verbal começa a ser entendida como finita e ganha flexão em número e pessoa > expande-se a outras construções o uso da forma, já estabilizada) e parecem-me válidos os argumentos para invalidar a teoria rival (não se vê razão para o imperfeito do conjuntivo latino, que se observa ter sido substituído pelo mais-que-perfeito, ter apenas sobrevivido, sob a nova forma de infinitivo pessoal, num conjunto de usos muito restrito e que dificilmente pode resultar apenas do apagamento de uma conjunção (ut), como propõem os defensores dessa tese).

Parece-me também argumento de muito peso a constatação da existência de variantes dialectais com outras formas não finitas flexionadas, como o gerúndio (“em chegandos lá, telefona”, é o exemplo de Ana Maria Martins[3]) e o particípio (em napolitano antigo). É verdade que, pelo menos nos exemplos que conheço, é uma flexão muito limitada, mas isso pode bem dever-se ao facto de o gerúndio não ter um modelo óbvio de onde “importar” desinências, como o infinitivo tinha no futuro do conjuntivo. Aliás, segundo o filólogo galego Francisco Gondar[4], a razão da não existência de infinitivo flexionado em castelhano é nunca ter havido coincidência entre as formas de futuro do conjuntivo e do infinitivo, porque o futuro do conjuntivo castelhano conservou sempre o -e final, o que não permitiu a “confusão” com o infinitivo e o subsequente desenvolvimento de desinências neste tempo. Aliás, já Leite de Vasconcelos afirmara que o futuro do conjuntivo teria propiciado a difusão do infinitivo pessoal.

O que é certo é que o castelhano, como muitos outros falares neolatinos, tinha herdado do latim a possibilidade de ter infinitivos com sujeito próprio em nominativo – e mantém-na até hoje. Este texto (ou melhor, o ímpeto para o escrever) nasceu esta manhã, de uma canção chilena. Estava a ouvir um disco (Salones y Chinganas del 900, de 1965) da cantora e folclorista Margot Loyola e chamou-me a atenção um refrão de uma canção chamada “Refalosa me has pedido”: «Dime si me quieres, / dime la verdad, / para yo quererte / con seguridad». Não conhecia a estrutura, nem do castelhano de Espanha nem do castelhano da Bolívia e da Argentina, que são os que conheço bem. Para mim, em espanhol, a frase só poderia ser «Dime si me quieres, / dime la verdad, / para que yo te quiera / con seguridad». Ou, se a tinha ouvido, nunca tinha reparado nela. Mas uma busca simples em Google (“para yo”, páginas em espanhol) revelou-me que a construção está longe de ser rara. Surgem milhares de frases como “Quisiera saber si hay algún curso para yo mismo instalar celdas solares en mi casa.”

A continuação da busca revelou-me que se trata de uma construção criticada. No resumo de um estudo de George De Mello[5] vejo que «o uso de preposição e sujeito com o infinitivo» é uma construção que não se costuma mencionar nas gramáticas de espanhol», mas que «é tão comum nalgumas regiões como é inaceitável noutras, uma situação que dá origem a controvérsias». E fico também a saber que «alguns linguistas crêem que esta construção ocorre mais entre pessoas com menos educação». Reflectindo melhor e chegando à conclusão que a estrutura se manteve, de facto, desde o latim tardio, diria que é uma forma tão criticada como renitente… Há muitas assim, tão fundas na língua, que não há críticas que dêem cabo delas. E que se podiam, facilmente, ver antes como um tesouro linguístico e não como um feio solecismo, se se quisesse…(Eu, provavelmente, por ser falante do português, acho mais leve a frase final criticada do que a sua correspondente com conjuntivo, que é a considerada correcta e é incomparavelmente mais comum…)

Não sei se havia quem criticasse as orações infinitivas com sujeito nominativo quando elas apareceram, mas é provável que assim fosse, porque isso ia claramente contra a construção clássica. O que é muito provável, porém (se formos, como eu, adeptos da tese de Leite de Vasconcelos e seus seguidores) é que é esse erro que vai resultar no nosso infinitivo pessoal. Ou, para o dizer mais uma vez com palavras de Mathias Schaf Filho: «(…) O infinitivo latino, embora fosse avesso à flexão número-pessoal, admitia sujeito próprio e diferente da oração regente. Essa característica permitiu, presumivelmente, criar variações no latim vulgar falado nas diferentes províncias romanas quanto ao emprego de infinitivo impessoal e pessoal. Essa “pessoalidade virtual” do infinitivo pode ter sido um dos fatores que abriu as portas para o licenciamento de sujeito nominativo, e a subseqüente oscilação entre o emprego [de concordância número-pessoal ou não] do infinitivo no latim vulgar medieval e em fases posteriores». Mas, mesmo que defendamos a derivação directa do infinitivo pessoal do imperfeito do conjuntivo latino, e que não consideremos um grande “erro” o apagamento da conjunção ut, temos de admitir que a expansão da nova forma para estruturas que lhe eram completamente estranhas pode bem (e deve) ter sido considerada um feio solecismo… Há sempre alguém, aliás, a achar que é um feio solecismo qualquer inovação introduzida numa língua, porque há, em todos os tempos, quem considere que a língua chegou à forma definitiva e não queira que ela mude mais. Deve ser tão humano como errar, porque é sempre assim…

Para terminar, um facto que eu creio que muita gente desconhece: O infinitivo pessoal não é uma originalidade apenas galego-portuguesa. Já vimos, na citação que fiz da Wikipédia, que se refere muitas vezes a existência de um infinitivo flexionado em certos dialectos sardos, mas há outros falares românicos em que se deu ou se dá o mesmo fenómeno. O mirandês, por exemplo, também o tem; Maurer refere que há documentos que provam a sua existência no napolitano do séc. XV e em romeno antigo; e Maria Cristina Egido Fernández demonstra a sua existência em leonês antigo. No seu artigo “Infinitivos conjugados en documentos leoneses del s. XIII”[6], depois de analisar 1300 documentos leoneses, sobretudo do séc. XIII, conclui que «pelo menos no antigo romance leonês se conhecia e utilizava esta forma verbal», e que «é possível admitir que o infinitivo conjugado se desenvolvesse, em épocas passadas, em todo o território do Noroeste da península, se bem que com desigual intensidade».

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[1] São Paulo: Cia. Editora Nacional-USP, 1968
[2] “Der portugiesische Infinitiv bei Camões”, in Romanische Forschungen 6, 1889
[3] “On the origin of the Portuguese inflected infinitive”, in Historical Linguistics 1999, Amsterdam: John Benjamins, 2001
[4] O infinitivo conxugado en galego, Univ. de Santiago de Compostela, 1977
[5] “Preposición + sujeto + infinitivo: "Para yo hacerlo", disponível online.
[6] In Revista Contextos, Vol. X, Universidad de León, 1992






























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