07/12/11

Um bocadinho de publicidade

[Isto é um re-post sem querer. Corrigi umas coisas num post antigo e ei-lo que me aparece aqui de repente. Bom, já que aqui está, pois que fique...]

Deixo-vos aqui as primeiras 1500 palavras do primeiro conto do meu livro de contos faz de conta que histórias, a ver se acham alguma graça e ficam com vontade de ler mais. Se não, comprem na mesma...
Lindegaard, Vítor, faz de conta que histórias. Lisboa: Campo da Comunicação, 2010. ISBN: 978-972-8610-94-4

“Silêncio” (excerto)
Deus disse: «Façamos o homem à nossa imagem, segundo a nossa semelhança e que ele domine os peixes do mar, as aves do céu, os animais, toda a terra e todos os pequenos animais que se movem sobre a terra!»
Deus criou o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou; macho e fêmea o criou.
Estes versículos 26 e 27 do livro da Génese, que a tradição atribui a Moisés, tratam um mistério tão fundamental que não podem senão abrir-se generosamente a qualquer proposta de interpretação. Eis a de Venmani Tirunal Patire, o protagonista da curiosa história que vos quero dar a conhecer:
Tudo o que é exclusivamente humano foi directamente dado aos homens por Deus, ao contrário daquilo que os homens compartilham com outras criaturas, que resulta de uma evolução do mundo natural (a que Deus só não é completamente alheio porque foi Ele também que criou esse mundo natural e pôs em marcha essa evolução, mas sem que tivesse nem para as coisas da natureza nem para o desfilar dos tempos nenhum desígnio específico…). É isso que quer dizer sermos à semelhança de Deus. Misturem-se as feições de todos os humanos, existidos já ou que venham ainda a ser, e obteremos o rosto de Deus; juntem-se os nomes de todos os homens pretéritos, presentes e futuros, e o nome radioso e impronunciável que resultar é o nome verdadeiro da divindade; adicionem-se todas as qualidades e anseios dos mortais e a soma será a imortal essência divina! E a quem me peça que explique o que quero com isto dizer, respondo da forma mais clara que sei: isto quer dizer, por exemplo, que Deus sabe construir vasos e fortificações, mas não compreende as línguas da serpente ou do leopardo.
Noutros tempos e noutros espaços, esta heresia teria sido ferozmente combatida tanto pela espada como pela pena, como o foram outras semelhantes, mas as notas em que Venmani Tirunal Patire dá conta das crenças de base da sua fé foram escritas em 1732, na ecuménica cidade de Trivandrum, onde não chegou nunca a fúria da Roma, e, muito provavelmente, nunca foram sequer dadas a conhecer a ninguém.
De Venmani Tirunal Patire, pouco se sabe, e nada com absoluta certeza. Tudo leva a crer que tenha sido cristão da antiga igreja de Malabar, diz a lenda que fundada pelo apóstolo Tomás, e que, na altura em que Venmani Tirunal Patire viveu, estava oficialmente unida com o rito sírio, embora as suas notas revelem uma completa dissidência relativamente aos dogmas dos cristãos do Sul da Índia. Sabemos, porque no-lo diz, que foi estudante de música, e isso leva-nos a concluir que deve ter estudado a tradição musical carnática, que, mesmo para um cristão, era, naquele tempo, a única música que se podia estudar na região. Terá também sido, como todas as pessoas cultas daquela época e daquele lugar, senhor de alguma fortuna pessoal, pelo menos se foi mandado construir por ele o mausoléu onde foram encontradas as notas que aqui refiro e que são tudo o que dele nos chegou. O estranho mausoléu, recentemente descoberto e escavado por arqueólogos ingleses, é completamente atípico na região. Não tem, aliás, parecenças com os mausoléus de nenhuma outra tradição: é constituído por três cúpulas de pedra, semiesféricas, concêntricas e muito estanques, que se sobrepõem e que, provavelmente, eram subterrâneas quando foram construídas. Os textos, escritos numa forma ligeiramente arcaica de malaialame, encontravam-se dentro de uma caixa bem selada de madeira dura, como se lhes tivesse sido destinada a sorte que realmente tiveram, a de virem a ser achados séculos mais tarde. Junto da caixa, um esqueleto com três séculos de um homem que se supõe ser o autor das notas, o próprio Venmani Tirunal Patire. São os próprios textos que, como verão, levam a essa suposição.
Ao contrário do que possa fazer-nos esperar a nota introdutória que transcrevi acima, o resto do texto de Venmani Tirunal Patire é mais narrativo do que ensaístico. E, também ao contrário do que acontece na primeira nota, ao pé da qual há a menção clara «cidade de Trivandrum, no ano de 1732», na segunda parte do texto, que parece ter sido escrita toda na mesma altura, não há qualquer referência à data da sua redacção. Quanto ao local em que foi escrito, o texto indicia, como verão, que terá sido o próprio mausoléu em que foi encontrado. E cumprida que é a minha função de apresentador, dou a palavra a Venmani Tirunal Patire:
"Quando me surgiu pela primeira vez a questão a cuja resposta havia de dedicar o resto dos meus dias – Qual é a música de Deus? –, antes de me preocupar em clarificar a questão que se me punha, enveredei pelo caminho mais óbvio para o estudante de música que eu era: embrenhar-me nas obras dos grandes músicos, as obras escritas com Deus na alma e no coração. Tinha já a certeza, que conservo, de ser a Música um dos atributos divinos que, como a Mente, a Palavra e a Sabedoria, Deus tinha directamente oferecido aos homens para eles serem à Sua imagem e semelhança. Toda a música é, então, em certa medida, de Deus, mas, pensava eu, devia haver uma música mais divina do que todas as outras, uma música mais próxima da sua origem celestial, e essa não podia ser senão a música dos grandes mestres. Vim a decidir, no entanto, ao fim de algum tempo de intenso estudo, que assim não era – por bela que fosse, essa música era demasiado humana, sentia eu, para ser a música de Deus.
Confesso que me senti algo desesperado: a música que eu conhecia, apesar de ser a melhor de todos os tempos, era uma imagem tão distorcida do atributo divino original que o seu conhecimento me era totalmente insatisfatório. Sentia que era preciso ir mais longe, mas não sabia como. Durante muitos anos não atinei com vislumbre que fosse de resposta à questão que me obcecava. Em vez de resposta, foram mais questões que se me vieram colocar. Eu procurava a música de Deus, mas o que queria eu dizer com «a música de Deus»? Música de Deus é a música, inacessível aos ouvidos dos mortais, que d’Ele emana, como, para alguns, d’Ele emana o excedente da sua superabundante grandeza?; ou música de Deus é a música por Ele inspirada aos homens, como, para outros, foi inspirada por Ele, em sonhos ou em fugazes materializações do Seu inconhecível Ser, a palavra dos livros sagrados?; ou a música de Deus é a música que, produto de esforçados anos de estudo e entrega dos mais sábios humanos, embora de humana origem, nos dê do Ser Divino a compreensão mais exacta que a criatura possa ter do seu criador? Não sabia e não sabia a quem perguntar. O meu mais querido amigo, única pessoa com quem eu partilhava a excitação e o fracasso da minha busca, aconselhava-me a desistir dessa tarefa que, dizia ele, não estava ao alcance de nenhum ser humano. Pensar que se podia aceder à música de Deus não era, só por si, uma blasfémia? Talvez, mas eu não era suficientemente forte nem para desistir nem para encontrar uma via plausível. Pensei, como alguns correm o mundo à procura do rio que lava todos os pecados ou da fonte cuja água serve de remédio para todas as doenças, percorrer os caminhos da terra à procura de outras músicas mais divinas, que talvez existissem para além das montanhas ou do outro lado dos mares. Mas no fundo de mim duvidava, sem saber bem porquê, que pudesse vir a encontrar, noutra parte do mundo, essa música que satisfizesse a minha ânsia de perfeição, e acabei, assim, por nunca empreender tal viagem.
Foi, no entanto, uma viagem que veio revelar-me o que hoje me parece tão óbvio que custa a perceber como demorei tanto tempo a descobri-lo. Um dia recebi em minha casa dois velhos conhecidos, meus conterrâneos, que acabavam de regressar de uma viagem de vários anos aos países do Norte. Entre as várias aventuras que me contaram, prendeu-me a atenção a descrição que me fizeram da travessia do Grande Deserto de Thar.
«O que é mais difícil de imaginar a quem não tenha atravessado nunca essas infindáveis extensões de areia, mais do que o calor sufocante do dia ou a fúria assassina das tempestades de areia», explicou-me um deles no tom grave de quem recorda um perigo mortal ou uma inexplicável traição, «é o silêncio de certas noites em certos lugares.»
«Um silêncio aterrador», confirmou o outro, «um silêncio tão completo que se ouve em pormenor os ruídos todos do nosso corpo – o coração a bater, o sangue a correr, o ar a descer-nos pela garganta, os alimentos a serem digeridos no estômago. Acho que é isso, precisamente, que assusta no silêncio, essa repentina consciência de nós…»
O silêncio, é claro! De repente, como numa revelação, percebi que, fosse qual fosse a interpretação dada à expressão música de Deus, essa música tinha de ser o silêncio! (...)"

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