11/02/11

Erskine Caldwell, nota de releitura


Um escritor de que gostei muito na minha juventude foi Erskine Caldwell. Lembro-me de que o primeiro livro que li dele foi Georgia Boy (1943), numa edição portuguesa chamada Um Rapaz da Geórgia, com tradução e prefácio de Jorge de Sena e maravilhosas ilustrações do sueco Birger Lundquist*.
Depois, li A estrada do tabaco (Tobacco Road, 1932), A jeira de Deus (God's Little Acre, 1933) e O pregador (Journeyman, 1935). Até reler agora há pouco tempo os dois primeiros, lembrava-me de que tinham sido dois livros de que tinha gostado muito, mas não me lembrava das histórias que contavam nem por que tinha gostado deles. [Lembrava-me bem da famosa cena do início de Tobacco road, em que Lov Bensoy vai a casa do sogro queixar-se de que a sua mulher não lhe fala nem quer dormir com ele e o sogro lhe responde que não se deve preocupar, porque a mulher dele e mãe da rapariga tinha tido muito tempo a mesma atitude, e acaba depois por roubar a Lov o saco de nabos que este levava.] Agora, depois de os reler, fiquei a saber as histórias, mas continuo sem saber por que razão tinha gostado tanto deles.
Não se deve revisitar os lugares onde se foi feliz, não é verdade? Porque, como nem os lugares nem os olhos são os mesmos e, além disso, guardamos melhor do passado as imagens bonitas que as feias, as revisitas ao passado são muitas vezes decepção. Não que tenha achado os livros maus. Houve coisas que me agradaram mais, outras menos, outras das quais não sei bem o que pensar (a imagem da mulher, por exemplo); mas não vejo agora razão nenhuma para ter gostado tanto de Caldwell como gostei, sinceramente. Ainda assim, deixo-vos aqui uma nota que fiz, quando o reli, sobre uma das principais características do seu estilo: o uso (abuso, dirão alguns) de repetições**. Para alguns, estas repetições são um sinal de simplismo estilístico ou uma marca da cultura de massas; para outros, são uma forma de criar humor, como os bordões da revista e do vaudeville, ou de construir a exaustão física e a degradação psíquica das personagens. Tudo isso é possível, mas quero propor outra perspectiva:
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O projecto de “novela proletária” de Caldwell era obviamente realista. Embora muitas das suas personagens sejam tão caricaturais que custa às vezes ao leitor aceitar esse projecto, o realismo não deixa nunca de estar presente, não só na temática como também no discurso das personagens. Como se encaixa a repetição neste projecto?
Tomemos, por exemplo, a primeira cena de Tobacco Road, que dura os primeiros quatro capítulos, em que a repetição é muito evidente. Lester Jeeter diz que não vai sair daquela terra; que não tem dinheiro nem sabe onde o arranjar; que não pode semear algodão porque ninguém lhe fia semente nem estrume; que os nabos que tem comido estão todos cheios de bicho; e que, por isso mesmo, quer os nabos de Lov Bensoy – e diz cada uma destas coisas uma quantidade enorme de vezes. E não é isso mesmo que faria um Lester Jeeter que, em vez de ser uma personagem de Erskine Caldwell, fosse um miserável camponês sem grande educação escolar do Sul dos Estados Unidos?
É muitas vezes intenção clara da literatura realista apresentar o discurso das suas personagens como ele seria na realidade: construções típicas da oralidade, transcrições de pronúncias regionais, léxico regional, hesitações e frases incompletas, etc. Ainda assim, omite-se sempre a redundância do discurso oral; e omite-se sobretudo – e é isso que não acontece nesta passagem de Tobacco Road e em muitas outras das obras de Caldwell que li – a repetição de frases e ideias que é típica da grande maioria das conversas reais.
A verdade é que a narrativa, por mais realista que se queira e seja ela escrita ou visual, abomina certas partes da realidade. Tende a excluir, por perda de tempo para o que de facto “interessa na história”, repetições de conteúdos nas conversas ou pormenores banais da rotina quotidiana, por exemplo. Lembro-me, a propósito, de que me chamaram a atenção no filme Vincent, de Maurice Pialat (1991), as sequências mostrando apenas actividades do dia-a-dia sem relevância para o desenvolvimento da trama narrativa. E creio bem que não fui o único a notar no filme estes pormenores realistas pouco habituais ao contar uma história. Diz o crítico Desson Howe no Washington Post de 01-01-1993 [sublinho e traduzo (não muito bem…)]: "Van Gogh recusa-nos o destaque do conhecido, mantém-nos afastados do cotovelo em actividade e evita aquela coisa da orelha. Mas mostra a matéria quotidiana que há no meio de tudo isto. Trata-se aqui da história de um artista a ser humano.”
Provavelmente, deve entender-se “humano” como opondo-se a “personagem de narrativa”… As repetições de Caldwell funcionam um pouco como os “desnecessários” pormenores quotidianos de Pialat, proponho eu: servem para dizer que quem ali está são mesmo pessoas e não personagens limpas do que se omite, por aborrecido, quando se conta uma história. Não chega para construir realismo, é certo, porque outras características do estilo e do enredo parecem ir no sentido contrário. Mas não consigo ver o uso da repetição como um dos possíveis defeitos de Caldwell. É antes, na minha opinião, um dos charmes da sua escrita.
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* Não encontro online estas ilustrações, que bem gostaria de aqui vos mostrar. Quanto ao livro, que era do meu pai, não sei que será feito dele. E o que eu gostava de o reaver. Deixei de guardar livros que não sejam de consulta, mas há meia dúzia deles de que, por razões afectivas, como se costuma dizer, não me quero desfazer. Esta edição de Um Rapaz da Geórgia seria, sem dúvida, um livro que guardaria, se o tivesse.
** A repetição é tão evidente na escrita de Caldwell que mesmo o leitor mais despreocupado a nota. Vejam, por exemplo, como a repetição é frequentemente referida nestas críticas de leitores a A Jeira de Deus no site Goodreads.

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