09/05/11

Teoria e prática, ciência e técnica, reflexão e acção

Veio-me à memória, no outro dia, uma conversa com um cooperante dinamarquês meu conhecido, em Tete, há muitos anos[1]. Queixava-se ele de que, no trabalho de desenvolvimento, havia que deixar-se de discussões e passar antes à acção. Acho que quando uma pessoa diz uma frase assim, conta, à partida, com todo o apoio do interlocutor. É como quando alguém diz que os políticos só querem é encher-se ou que as pessoas são cada vez mais individualistas ou coisas assim desse género – espera-se, como resposta standard, um enfático assentimento, “não tenha dúvidas, meu amigo, não tenha dúvidas…”, e fica-se normalmente surpreendido, às vezes quase chocado, quando a resposta é, como a minha foi, a expressão de um completo desacordo[2]:

«Penso exactamente o contrário», expliquei eu ao meu conhecido. «O mal do trabalho de desenvolvimento é fazer-se muita coisa sem se pensar muito bem sobre o que se está a fazer ou sobre o que se vai fazer».

Em parte, foi por provocação que lhe respondi assim: não há, de modo algum, excesso de reflexão no trabalho de desenvolvimento, mas há efectivamente um excesso de reformas metodológicas, de elaboração de princípios e políticas, de avaliações e monitorias que nunca vêm a ter nenhuma utilidade… Mas isso é uma conversa muito comprida, que merece um texto específico. Aqui trata-se de várias formas da dicotomia reflexão versus acção e a minha provocação tinha uma base ideológica: é que discordo da tão costumeira desvalorização daquela relativamente a esta.
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A ideia de que a acção vale mais do que a reflexão é uma ideia bastante difundida. E uma variante também muito divulgada dessa ideia é a que valoriza a reflexão para a acção em relação à reflexão para a interpretação apenas. Nas Teses sobre Feuerbach (1845), Marx tem uma frase famosa (tese 11), Die Philosophen haben die Welt nur verschieden interpretiert; es kommt aber darauf an, sie zu verändern, que tem sido interpretada de diversas maneiras e, se calhar, nalguns casos muito transformada (aqui têm um exemplo de coincidência de interpretação e transformação, smile, smile…), mas que se pode traduzir – e se traduz – desta maneira: Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de diversas maneiras; mas o que importa [ou a questão ou o que conta…] é transformá-lo.
Deixo para os estudiosos de Marx a discussão de significado e sentido exactos da 11ª tese sobre Feuerbach. O que eu quero aqui dizer é que, independentemente de qual seja o real sentido da frase de Marx, não me parece correcto afirmar, como se afirma muitas vezes, que o que importa é transformar o mundo. O que importa é compreender o mundo (sempre) e transformar o mundo quando não concordarmos com o seu estado actual. E o filósofo pode, se quiser, ser um homem de acção; pode, mesmo sem ser um homem de acção, contribuir pela sua reflexão para a transformação do mundo; mas o papel do filósofo não é, enquanto filósofo, transformar o mundo, mas sim tentar contribuir para chegar à verdade sobre o mundo – e o que lhe fica ao redor (depende muito, claro está, do que se considere o mundo…).
Nesse aspecto, o filósofo não é, aliás, fundamentalmente diferente do cientista: Para o dizer com a elegância de Tchekhov – ou melhor, de uma sua personagem –­, “cada ciência no mundo deve ter sempre um único passaporte, que é sempre o mesmo e sem o qual ela não faz sentido – deve aspirar à verdade[3]”. Como não é ao filósofo que cabe agir sobre o mundo, também não é ao biólogo nem ao químico nem ao linguista que cabe agir sobre ele. Não cabe ao cientista transformar o mundo e é erradamente que se imputa muitas vezes à ciência acções negativas sobre a realidade. A ciência apenas explica o mundo; dos males que advenham da utilização do conhecimento para intervir no mundo acusem a técnica, não a ciência; mas, quando a utilização do conhecimento teve bons resultados, dêem à técnica apenas uma parte dos louvores, reservando o resto dos elogios para a ciência que produziu esse conhecimento.
Parece-vos que temos aqui parcialidade, não é? Então, quando a técnica faz mal com o conhecimento que a ciência produziu, culpamo-la só a ela; e quando a técnica faz bem com o conhecimento que a ciência produziu, louvamo-la a ela e à ciência que produziu o conhecimento por ela utilizado? Mas não, não há aqui nada de errado, se pressupusermos, como eu pressuponho, que a produção de conhecimento é sempre e só positiva e que o que pode ser positivo ou negativo é a aplicação desse conhecimento[4].
Quanto a transformar o mundo, é dever de todos os que acharem que ele deve ser transformado (todos os não conservadores, portanto) e, por conseguinte, também de quem se especializou em filosofia, biologia, química, serralharia, contabilidade ou gastronomia, não na sua qualidade de filósofo, biólogo, químico, serralheiro, contabilista ou cozinheiro, mas enquanto membro de uma comunidade, cidadão, ser político – e isso somos todos nós, sem necessidade de nenhuma especialização em nenhuma área do saber ou da técnica.
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Maldita tendência para a excursão. Voltemos à conversa com o meu conhecido em Tete. Não é só o trabalho de desenvolvimento a enfermar de ânsia de fazer desprezando a vontade de reflectir – estou convencido de que o mundo em geral sofre mais de excesso de acção pouco reflectida que de excesso de discussão teórica relativamente à prática. E mesmo a vida emotiva de cada um. No outro dia, encontrei no Facebook a sedutora frase (traduzo eu da frase original em inglês) “Podes passar minutos, horas, dias, semanas ou até meses a sobreanalisar uma situação, tentando juntar as peças, justificando o que podia ter acontecido, o que teria acontecido – ou podes deixar apenas as peças no chão e ala!, seguir em frente”. Não sei o que significa ao certo sobreanalisar e a ideia com que fico é que o prefixo sobre- foi colado ao verbo apenas para conotar negativamente a tentativa de análise. Tirando isso, é claro que se pode, pode sempre seguir-se em frente desistindo de perceber o que se passou ou o que se está a passar. Mas é aconselhável?
Encontrei várias vezes na internet, em várias línguas e com pequenas variações de forma, a frase “um grama de acção vale mais do que uma tonelada de teoria”[5]. Para mim, é quase ao contrário. Não é bem ao contrário, porque não vejo grande sentido em afirmar que um grama de teoria vale mais do que uma tonelada de acção. Mas uma tonelada de acção, se tiver para a sustentar apenas um grama de reflexão, tem quase cem por cento de probabilidades de vir a dar buraco…
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[1] Para ele ser cooperante em vez de assessor, bem podem ver há quanto tempo não foi…
[2] E também o teria sido se ele me tivesse dito que os políticos só se querem é encher ou que as pessoas são cada vez mais individualistas…
[3] No conto “On the way”, Selected Stories. Ware: Wordsworth, 1996. Traduzo eu.  
[4] Do que se pode concluir – com alguma boa vontade, talvez… – que a teoria vale, em abstracto, mais que a prática. Mas eu já nem quero ir por aí…
[5] A frase é, o mais das vezes, atribuída a Friedrich Engels, mas é duvidoso que seja de facto uma frase de Engels. Eu, pelo menos, não o consegui confirmar. Também é às vezes atribuída a Ralph Waldo Emerson ou a Lenine, ou é ainda apresentada com um provérbio. Há uma página de Snopes.com em que se discute, precisamente, a autoria da frase. Mas a autoria da frase é completamente irrelevante para a sua discussão, pelo menos no presente contexto.

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