Sótão da memória (cerca de 5800 ocorrências em Google) parece ser uma metáfora comum para a parte mais recôndita das nossas recordações[1], mas a verdade é que os sótãos conservam muito melhor o passado do que seja lá que parte for da memória[2].
Subi e desci umas 50 vezes a escada das traseiras do nº 15 da Brohus, em Copenhaga, onde temos um apartamento no rés do chão. A 75 degraus para cima e outros 75 para baixo, dá 7500 degraus. Em dois dias, é verdade, mas não deixa de ser um bom exercício para as pernas. Foi ir buscar o que tínhamos empacotado em regulares flytekasser, “caixas de mudança”, há 5 anos ou mais; desempacotar; seleccionar o que fazia sentido guardar; e voltar a empacotar para trazer para a nova casa em Svendborg. Agora, como disse várias vezes a minha mulher, nós sabíamos que tínhamos uma vida anterior a Moçambique, mas não sabíamos bem que vida era. E ficámos a saber. Guardadas no sótão estavam coisas como[3]:
um dicionário de expressões do Yorkshire, onde se fica a saber, por exemplo, que powfagged significa “estafado” ou que kag ‘anded (assim mesmo, sem agá) significa “canhoto” ou “desajeitado”;
um berço de vime, com uma pele de cordeiro por cima do minúsculo colchão, onde a Karen dormiu em bebé, e antes dela as irmãs mais velhas, e depois dela o irmão mais novo e todas as seis sobrinhas, e a Siri, e não sabemos a quem servirá a seguir;
uma faca da Lapónia, com cabo diz que de osso de rena, que me ofereceram uma vez pelo Natal, em Haparanda;
o Feiticeiro de Oz, em versão pop up de Robert Sabuda, comprado em Bradford pela módica quantia de 16,99 libras, porque foi impresso na Colômbia e todo montado à mão no Equador, onde o trabalho é pago a preços de miséria…;
fotocópias de uma edição bilingue da poética de Aristóteles, no original grego e em francês;
duas cadeiras malauianas de madeira apenas e várias cadeiras dinamarquesas de assentos com listas verdes e vermelhas;
um par de esquis, com as respetivas botas e os respetivos bastões;
uma máquina de coser Singer, que a minha avó – e muita gente – pronunciava com o som [Ʒ] de singelo;
uma canequinha de Coimbra, com um desenho de um gnomo montado num caracol, em que eu bebia leite em pequeno e as tigelas e pratos amarelos em que a Karen toda a infância tomou o pequeno-almoço; e
um livro de moradas que me acompanhou creio que de 1983 a 1996, cheio de endereços e números de telefones que pessoas que não faço ideia onde param, que já morreram ou que nem me lembro, nalguns casos, quem são (e que tem um desenho à largura das guardas, com o seguinte texto: “Cá ‘stou mais um vez / tomara que a derradeira / sem ter nada em que pensar / a não ser na vida inteira”).
Chiça, que tenho – temos todos – tantas coisas! … Que não servem, a maior parte delas, para coisíssima nenhuma…
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[1] A não ser que se entenda também esta preposição de como uma marca de identificação e a expressão queira dizer que a memória é que é o sótão. Como dizia, e muito bem, o Fernando Relvas, (numa explicação que ele dava – já desapareceu – , a quem não falasse português, do que significa o título do seu blogue, Urso do Relvas), este de ambíguo tanto nos pode levar a concluir que o Relvas tem um urso como que o Relvas é um urso…
[2] Continuando na maré de ambiguidades iniciada na nota de rodapé anterior, eis aqui mais um excelente exemplo de uma frase ambígua, que é algo de gosto muito (gosto muito de frases ambíguas, entenda-se, não de excelentes exemplos de frases ambíguas, embora, claro, como amante de ambiguidades não possa deixar de apreciar os excelentes exemplos das ditas …): de facto, o que eu quero dizer e espero que tenham compreendido é que os sótãos conservam melhor o passado do que a memória conserva o passado, e não que os sótãos conservam melhor o passado do que os sótãos conservam a memória… Hmmm… Enfim, eu percebo-me, como dizem os franceses.
[3] Como processo literário, o inventário (desculpem a cacofonia, sim?) é tipicamente surrealista, ou, talvez antes, tipicamente prevertiano. Poder-se-ia dizer que Prévert preverteu o inventário. Em português, só conheço os inventários de Alexandre O’Neill (por exemplo, este), que não são verdadeiros inventários surrealistas, até porque O’Neill provavelmente nunca embarcou realmente no devaneio surrealista. Outra maneira de dizer isto é que O’Neill sempre foi mais o’neillíco do que o’nírico…
Já tinha saudades dos seus posts e dos respectivos rodapés! O humor mais subtil sobre a língua portuguesa... Espero que todos estejam bem e que os meninos se estejam a adaptar ao novo país.
ResponderEliminarGràcies! Cá nos vamos adaptando, pouco-pouco, não sei o seu lado. Amanhã, começam as meninas no atelier de tempos livres, na próxima segunda começa a escola para todos. Abraçades i felicitats!
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