30/08/11

O rosto de Deus

Reciclo um excerto de um texto de há três anos, para servir de introdução a este de hoje (que é um desenvolvimento do outro, noutra direção…):
Lembrei-me no outro dia de uma conversa com uma colega da faculdade depois de uma aula que ela teve sobre uma famosa experiência sobre dilatação de pupilas que Eckhard Hess e James Polt fizeram em 1959 (traduzo o resumo que dela faz Jason Waite): «(...) Hess e Polt apresentaram a um grupo de 20 homens duas fotos idênticas de uma mulher, que diferiam num único aspeto. Numa, as pupilas da mulher tinham sido muito ampliadas, ao passo que, na outra, as pupilas eram extremamente pequenas. Em média, [a dilatação das pupilas] nos homens em resposta à fotografia com as pupilas aumentadas era duas vezes maior do que em fotografia com as pupilas pequenas. Após a experiência, pediu-se aos homens que comentassem as fotografias e a maior parte disse que eram idênticas. Entre os pouco que não disseram que as fotos eram iguais, alguns afirmaram que numa a mulher [com as pupilas dilatadas, entenda-se] era “mais bonita” ou “mais feminina”. Nenhum dos participantes no teste tinha notado a diferença de tamanho das pupilas da mulher da fotografia».
“Ficou tudo histérico na aula, quando o professor aventou a possibilidade de a nossa conceção de beleza ser determinada por mecanismos fisiológicos primários. Houve mesmo quem reagisse mal. A própria ideia de que se façam estudos puramente etológicos de seres humanos é chocante para muitos dos meus colegas.”
Está bem que eram estudantes de Humanidades, mas mesmo assim… A reação é típica: ninguém quer ser considerado um animal, quanto mais uma máquina…
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Referia aqui no outro dia, sem o questionar, o famoso adágio “A beleza está nos olhos de quem olha”. Este tipo de relativismos, porém, sempre me levantou muitas dúvidas. Tendo em conta apenas a minha experiência de vida, a minha tendência é rejeitá-lo, que as coisas não são bem assim. Lembro-me da passagem do filme The crying game em que um dos protagonistas do filme mostra ao outro a fotografia da sua namorada, comentando que ela é o seu ideal de mulher. “Acho que deve ser o ideal de mulher de qualquer homem”, responde o outro. E é isso que tenho observado quase sempre na vida – que, no que diz respeito a beleza, que é o que está aqui em causa, porque numa fotografia só se vê a cara sem ver o coração, o ideal de mulher de um homem é o ideal de mulher de quase todos; e o ideal de homem de uma mulher é o ideal de quase todas. Sempre tenho visto, de facto, um muito grande consenso quanto à beleza – e à fealdade – dos seres humanos.
É certo que isto são só impressões, que é coisa mais para encher conversa do que para a adiantar. Mas Adam Rubinstein, Judith Langlois e Lori Raggman, que estudam de forma sistemática a perceção da beleza, confirmam a minha impressão: no que toca aos rostos humanos, pelo menos, há muita evidência empírica que mostra claramente que a ideia da subjetividade do conceito de beleza é falsa; que há, pelo contrário, grande universalidade no julgamento de atratividade: “(…) Examinámos 130 amostras de classificações de atratividade de 94 estudos da literatura sobre perceção do rosto. Esta meta-análise avaliava quantitativamente o acordo (ou desacordo) de milhares de pessoas, jovens e velhas, homens e mulheres. (…) Contrariamente ao que diz o adágio, os resultados indicavam um grande acordo sobre atratividade, mesmo de tipos de entrevistados muito diferentes.”
Poupo-vos pormenores técnicos, mas os resultados obtidos, tanto para classificações de atratividade de rostos de adultos como de rostos de crianças, e incluindo classificações interétnicas (classificações de vários grupos étnicos por entrevistados vivendo na mesma cultura) e interculturais (classificações de vários grupos étnicos por entrevistados de culturas diferentes) são altamente fiáveis do ponto de vista estatístico e “mostram um acordo consistente entre entrevistados, independentemente da sua experiência particular com diversos tipos de rostos”.
“A nossa meta-análise”, prosseguem os autores, também examinou variáveis que podem moderar o acordo, como sejam o ano de publicação, tamanho da amostra, género da pessoa avaliada e situação em que a pessoa foi avaliada (por exemplo, avaliação de fotografias ou avaliação in situ). Um pouco para nossa surpresa, nenhum moderador teve efeitos constantes ou substanciais nos níveis de acordo. Se bem que se pudesse pressupor que as diferenças metodológicas ou a pertença a um grupo pudesse influenciar as classificações de atratividade, o que se constata é antes que há uma característica fundamental do rosto humano responsável pelo consenso relativamente à atratividade dos rostos.”
“Estes resultados indicam que a beleza não está apenas nos olhos de quem olha”, concluem os autores do trabalho*.
Que caraterística é esta? Há mais consenso em dar-se por factual a universalidade do conceito de beleza de um rosto do que em explicar em que traços se centra esse conceito que todos temos interiorizado sem saber. Segundo os autores, as experiências mostram que quanto mais um rosto se aproximar da média de todos os rostos, mais atraente é considerado. Com técnica modernas de processamento de imagem, fazem-se rostos que são a média exata de vários rostos; e quanto mais rostos constituírem a informação de que é feita a média, mais consenso há sobre a sua beleza. Há várias críticas à conclusão de Rubenstein, Langlois e Roggman, algumas delas pertinentes; e é também aceitável e relativamente minuciosa a sua defesa. Como acontece sempre em ciência, a discussão continua.
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Tudo isto me faz lembrar um texto de Venmani Tirunal Patire, protagonista do meu conto “O silêncio”:
Tudo o que é exclusivamente humano foi diretamente dado aos homens por Deus, ao contrário daquilo que os homens compartilham com outras criaturas, que resulta de uma evolução do mundo natural (a que Deus só não é completamente alheio porque foi Ele também que criou esse mundo natural e pôs em marcha essa evolução, mas sem que tivesse nem para as coisas da natureza nem para o desfilar dos tempos nenhum desígnio específico…). É isso que quer dizer sermos à semelhança de Deus. Misturem-se as feições de todos os humanos, existidos já ou que venham ainda a ser, e obteremos o rosto de Deus; juntem-se os nomes de todos os homens pretéritos, presentes e futuros, e o nome radioso e impronunciável que resultar é o nome verdadeiro da divindade; adicionem-se todas as qualidades e anseios dos mortais e a soma será a imortal essência divina!
Algum tempo depois de escrever este texto, Venmani Tirunal Patire veio a concluir que, afinal, não se podia deduzir Deus da soma dos seres por Ele criados. Para chegar a Deus, havia antes que subtrair sistematicamente tudo de tudo, porque Ele não podia ser senão a matriz vazia onde coubessem todas as coisas, criadas já ou ainda por criar. Se a hipótese de Rubenstein, Langlois e Roggman estiver certa, Venmani Patire tem razão: a soma de todos os rostos não é o rosto de Deus – é apenas o rosto essencial da Humanidade, aquele que todos nós achamos atraente!
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* Rubenstein, A.J., Langlois, J.H., & Roggman, L.A. (2002). “What makes a face attractive and why: The role of averageness in defining facial beauty”. In G. Rhodes & L.A. Zebrowitz (Eds.), Facial attractiveness: Evolutionary, cognitive, and social perspectives. Ablex: Westport, CT. PDF Version (9.5 MB) © Ablex. Este e muitos outros estudos sobre a perceção de rostos estão disponíveis em formato PDF no site da Universidade do Texas.

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