[Pequena
contribuição para a História das Forças Armadas em Portugal]
Devo estar a
ficar velho, porque me vêm muitas vezes à memória episódios da minha juventude... Sou do segundo turno
de setenta e nove. Tinha asma, nessa altura, e esperava ficar livre da tropa,
mas tinha sido dado como apto na inspeção e tinham-me posto em infantaria
mecanizada em Santa Margarida. A asma, tinha-me explicado o médico na inspeção,
só se pode detetar durante um ataque (uma crise, disse ele, porque é assim que
costumavam dizer os médicos), de maneira que, para ficar livre, tinha de
arranjar maneira de algum médico militar me constatar a doença no período de
serviço.
E eu não queria
mesmo fazer a tropa. Só de pensar em mim soldado ficava transtornado, nervoso,
muito infeliz… Tinha mesmo de arranjar uma maneira de me safar àquilo. A
objeção de consciência, porém, parecia-me fora de questão. Era uma
possibilidade tão nova que não se devia esperar muito dela – se chegasse a ser
levada a sério. Além disso, eu não podia, sem mentir, invocar as razões
comummente invocadas para recusar a instituição militar. Agora sou pacifista,
mas nessa altura não professava nenhuma filosofia nem religião que me proibisse
o uso da violência, mesmo fora de situações de autodefesa. De maneira que
apareci em Santa Margarida na data marcada, com a esperança de vir a ter, mais
cedo ou mais tarde, um ataque grande asma que me valesse ficar livre daquele
pesadelo.
Ao fim de um dia
apenas, perguntaram aos recrutas quem queria ir ao médico, que fazia serviço na
unidade de xis em xis dias, e eu quis. Queixei-me de asma, mas o médico não me
encontrou asma nenhuma. O que ele me encontrou e que achou que merecia ser
analisado foi um coração a bater quase ao dobro do andamento normal: em vez do
adagio que é costume, o meu coração adiantava-se, em repouso, para um allegro
vivace.
Guia de marcha na
mão, saí de Santa Margarida nessa mesma tarde, rumo ao Hospital de Estrela,
mais dois colegas recrutas transmontanos, que não me lembro de que padeciam.
Chegámos a Lisboa à noite e, para não passarmos a noite em claro numa estação
de comboios ou às voltas pela cidade, convidei os meus colegas a virem dormir a
minha casa à Rinchoa. A minha avó (só ela me viu nessa noite, o resto da
família não deu pela minha chegada) ficou muito surpreendida de me ver aparecer
à meia-noite acompanhado de dois desconhecidos, que ficaram a dormir no chão,
porque não havia camas para eles.
No dia seguinte,
lá estávamos nós na Estrela, ao abrir das consultas externas. Com os vinte anos
que tinha, sabia já muitas coisas, entre as quais que i) não tinha nada no
coração a não ser a ânsia que me causava a tropa e que ii) era em infetocontagiosas, na Boa Hora, e não ali em cardiologia, que eu tinha
possibilidades de ser declarado inapto. De maneira que (até aqui era
introdução, a história que queria contar começa agora), quando apresentei a
minha credencial ao enfermeiro de serviço, lhe disse que, pelos vistos, tinha
havido engano:
«Pois, isto é
engano. Não sei como aconteceu, mas é engano. Eu era para ir para
infetocontagiosas, porque o que eu tenho é asma.»
E se eu fosse de
generalizações, que não sou, dizia-vos que era assim, caríssimas leitoras e
caríssimos leitores, que funcionavam os serviços médicos das
Forças Armadas em 1979… Mas enfim, que é uma história engraçada, é: o
enfermeiro não teve dúvidas em confiar mais em mim que na credencial
assinada pelo médico de Santa Margarida e passou-me nova credencial para a Boa
Hora. Fui lá internado daí a umas horas e, ao cabo de dois meses e meio que
passei a fumar e a jogar à lerpa, concluíram que eu era efetivamente asmático.
E foi assim que a tropa se livrou de mim.
Memórias ainda vivas, e que sabe bem ler.
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