29/10/12

Do que eu me fui agora lembrar...



[Pequena contribuição para a História das Forças Armadas em Portugal]
Devo estar a ficar velho, porque me vêm muitas vezes à memória episódios da minha juventude... Sou do segundo turno de setenta e nove. Tinha asma, nessa altura, e esperava ficar livre da tropa, mas tinha sido dado como apto na inspeção e tinham-me posto em infantaria mecanizada em Santa Margarida. A asma, tinha-me explicado o médico na inspeção, só se pode detetar durante um ataque (uma crise, disse ele, porque é assim que costumavam dizer os médicos), de maneira que, para ficar livre, tinha de arranjar maneira de algum médico militar me constatar a doença no período de serviço.
E eu não queria mesmo fazer a tropa. Só de pensar em mim soldado ficava transtornado, nervoso, muito infeliz… Tinha mesmo de arranjar uma maneira de me safar àquilo. A objeção de consciência, porém, parecia-me fora de questão. Era uma possibilidade tão nova que não se devia esperar muito dela – se chegasse a ser levada a sério. Além disso, eu não podia, sem mentir, invocar as razões comummente invocadas para recusar a instituição militar. Agora sou pacifista, mas nessa altura não professava nenhuma filosofia nem religião que me proibisse o uso da violência, mesmo fora de situações de autodefesa. De maneira que apareci em Santa Margarida na data marcada, com a esperança de vir a ter, mais cedo ou mais tarde, um ataque grande asma que me valesse ficar livre daquele pesadelo.
Ao fim de um dia apenas, perguntaram aos recrutas quem queria ir ao médico, que fazia serviço na unidade de xis em xis dias, e eu quis. Queixei-me de asma, mas o médico não me encontrou asma nenhuma. O que ele me encontrou e que achou que merecia ser analisado foi um coração a bater quase ao dobro do andamento normal: em vez do adagio que é costume, o meu coração adiantava-se, em repouso, para um allegro vivace.
Guia de marcha na mão, saí de Santa Margarida nessa mesma tarde, rumo ao Hospital de Estrela, mais dois colegas recrutas transmontanos, que não me lembro de que padeciam. Chegámos a Lisboa à noite e, para não passarmos a noite em claro numa estação de comboios ou às voltas pela cidade, convidei os meus colegas a virem dormir a minha casa à Rinchoa. A minha avó (só ela me viu nessa noite, o resto da família não deu pela minha chegada) ficou muito surpreendida de me ver aparecer à meia-noite acompanhado de dois desconhecidos, que ficaram a dormir no chão, porque não havia camas para eles.
No dia seguinte, lá estávamos nós na Estrela, ao abrir das consultas externas. Com os vinte anos que tinha, sabia já muitas coisas, entre as quais que i) não tinha nada no coração a não ser a ânsia que me causava a tropa e que ii) era em infetocontagiosas, na Boa Hora, e não ali em cardiologia, que eu tinha possibilidades de ser declarado inapto. De maneira que (até aqui era introdução, a história que queria contar começa agora), quando apresentei a minha credencial ao enfermeiro de serviço, lhe disse que, pelos vistos, tinha havido engano:
«Pois, isto é engano. Não sei como aconteceu, mas é engano. Eu era para ir para infetocontagiosas, porque o que eu tenho é asma.»
E se eu fosse de generalizações, que não sou, dizia-vos que era assim, caríssimas leitoras e caríssimos leitores, que funcionavam os serviços médicos das Forças Armadas em 1979… Mas enfim, que é uma história engraçada, é: o enfermeiro não teve dúvidas em confiar mais em mim que na credencial assinada pelo médico de Santa Margarida e passou-me nova credencial para a Boa Hora. Fui lá internado daí a umas horas e, ao cabo de dois meses e meio que passei a fumar e a jogar à lerpa, concluíram que eu era efetivamente asmático. E foi assim que a tropa se livrou de mim.

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