Nos últimos meses, tenho visto em vários sítios a imagem acima. Curioso, fui pesquisar no Google images a sua origem. E descobri outras imagens do mesmo lugar. Uma delas tinha neve:
Surpreendeu-me
a neve. Por um lado, tinha entretanto descoberto que o painel era da
Universidade de Başkent em Ancara[1] e eu não sabia que nevava em Ancara. (Mas
fui informar-me e agora já sei que sim, que neva.) Por outro lado, é
simplesmente estranho para mim associar neve à Utopia. Preconceito apenas,
falta de hábito de ver lado a lado as duas coisas. O painel diz claramente que
a Utopia está a uma distância infinita e é claro que há sítios com neve a uma
distância infinita de Utopia. A Utopia é que não tem neve, não são os sítios
onde ela é indicada.
A Utopia não
tem neve? A Utopia não tem neve porquê?, há de haver quem pergunte. Não é até comum
elevar-se a ideal os países do Norte, com a sua riqueza e os seus índices de
bem-estar e felicidade? Bom, se utopia
for sinónimo de “ideal”, com certeza que há utopias com neve. E sem ela, e com todo
o tipo de climas e gentes e culturas. Eu é que me acostumei a dar à palavra utopia um sentido mais restrito e é
sempre esse sentido que me vem à mente quando a ouço:
Quando Thomas
More publicou, em 1518, o seu livro A
utopia ou tratado da melhor forma de governo, inaugurou um modelo, em parte
narrativo mas sobretudo filosófico, político e moral, que teve, durante mais de
dois séculos, uma fortuna imensa ‒ foram escritas dezenas de obras, em muitos
aspetos parecidas entre elas e com a obra de More, que constituíram um dos polos
das ideologias e dos imaginários europeus do período clássico. A história é
praticamente sempre igual: um viajante europeu chega a uma ilha, fora dos
espaços conhecidos na Europa, onde encontra uma sociedade “perfeita”. E apresenta
depois essa sociedade perfeita aos seus conterrâneos, mostrando-lhes, com a
perfeição dessa sociedade distante, as contradições e os defeitos da sua
própria sociedade. É sempre neste modelo, com ideias e imagens bem definidas,
que penso, quando penso em utopia, porque me dediquei, durante alguns anos, a
estudá-lo. E é também por isso que a palavra não tem sempre, para mim, a
conotação positiva que tem para a maior parte das pessoas: se há aspetos que me
agradam nestas utopias, há também outros que me desagradam muito…
Mas de que
ideal dão conta essas narrativas, afinal? O que têm em comum entre elas essas
sociedades ideais que os viajantes europeus encontram ao cabo de longas viagens
imaginárias? É obviamente impossível listar aqui todas as suas características,
mas podem resumir-se algumas linhas de força do ideal utópico:
Antes de mais,
a utopia é sempre uma ilha (se não literalmente, pelo menos simbolicamente), às
vezes murada, sempre de difícil acesso. Obsessivamente geométrica, é sempre uma
cidade ou um conjunto delas, construída em planícies artificiais depois de
arrasadas as primitivas florestas. É neste cenário que seres uniformizados (ao
ponto de usarem, de facto, uniformes) vivem vidas “perfeitas” porque aboliram
de vez o mal supremo da irracionalidade e as suas vidas são reguladas até ao
mínimo detalhe por leis “perfeitas” ‒ que muitas vezes lhes foram oferecidas
por um sábio legislador e que eles aceitaram de bom grado, de tão justas que
eram.
Tudo é lógico
e prático, tudo está regulamentado racionalmente. Este é, talvez, o traço mais
universal da Utopia. Até o amor e o sexo são regulados logicamente, sempre de
acordo com os interesses da comunidade. A religião também é sempre inabalável
de razão, tingida de cientismo e filosofia. E as línguas que se falam nas
utopias são, também elas, além de perfeitas na sua capacidade de fazer
coincidir a palavra com o que ela nomeia, de uma regularidade impressionante,
matemática.
Outra ideia
fundamental da utopia é a de educação. Os utopistas atribuem à
Natureza tudo o que há de mau no mundo (os sentimentos, a mentira, a inveja, o
gosto do excesso e do supérfluo, o cultivar da aparência, etc.) e é, pois,
preciso educar para a cidadania. A educação utópica é um dos seus aspetos revolucionários:
é muitas vezes universal e desde o início da infância, e é ao mesmo tempo
cívica e profissional. Mas não é só para ensinar razão e cidadania que a
educação serve ‒ serve também para ensinar a obedecer, a ser ajuizado e dócil
e... bem condicionado.
Ideal
igualitário ‒ embora as hierarquias existam sempre e sejam bem visíveis e bem
respeitadas, por “necessidade” do sistema de governo ‒, a propriedade privada
não existe na utopia, até porque não contam o privado nem o indivíduo, apenas a
sociedade.
A felicidade
próspera da utopia é reservada aos habitantes dessa ilha e os contactos com os
povos vizinhos, ameaçadores, quando os há, limitam-se a relações comerciais e à
guerra (a educação militar é, aliás, uma componente importante da educação
cívica utópica). É uma ilha, não o esqueçamos. Algures na zona quente do globo.
Estão a ver
onde é que eu queria chegar? A Utopia de Thomas More, a Nova Atlântida de Francis
Bacon, a Terra Austral de Gabriel de Foigny e outras Terras Austrais, a maioria
das utopias, enfim, não fica em zonas frias. Provavelmente, pode pensar-se,
porque os climas quentes são o ideal de todos os humanos, animais tropicais que
nós somos. É certo[2]. Mas é também porque as Utopias são, pelo menos em parte,
o Novo Mundo, os novos mundos a colonizar. Há um pormenor que me parece
fundamental no edifício utópico (ou, devo insistir, num número significativo de
utopias, já que não é um traço constante) e que tem sido muitas vezes ignorado:
é que as utopias foram erigidas a partir da dominação ou da destruição de um
povo “selvagem” que habitava anteriormente as ilhas utópicas. Não é que a
utopia apresente diretamente uma justificação, ou que faça diretamente a apologia,
da dominação, do extermínio ou da civilização dos povos “selvagens”. Mas isso
está inscrito na sua ideologia e no seu imaginário, segundo os quais o “natural”
deve ser civilizado, racionalizado.
A utopia foi,
como disse, um dos polos das ideologias e dos imaginários europeus do período
clássico. Ora o polo oposto é, precisamente, a idealização das sociedades “selvagens”,
que é a exata negação de tudo o que a utopia preconiza: o ideal primitivista funda-se
no louvor da ausência[3] de leis, de educação, de necessidade de racionalização;
no louvor, enfim, de uma “generosa ordem natural”. Há, porém, um ponto comum aos
dois ideais, uma ideia fundamental da radicalidade igualitarista do período
clássico ‒ a ausência de propriedade. Mais simpático aos olhos de muitos de nós
que a estrutura rígida, tentacular e totalitária que a utopia em grande parte é,
este ideal contrário, primitivista, é
um produto, afinal, da incapacidade de compreender o Outro (nesta época,
sobretudo o nativo americano).
A partir do
momento em que a ideia de História vem ocupar o lugar central do pensamento
europeu, a utopia vai, progressivamente, deixando de se situar numa ilha
distante para se situar num futuro mais ou menos longínquo. O “selvagem”, cada
vez menos louvado como ideal, é deslocado pelo pensamento europeu para o
extremo oposto da História: tornado “primitivo”, passa a habitar um tempo “anterior”
ao nosso e, por isso mesmo, “inferior”.
No século XX, alguns
intelectuais europeus começam a desmontar estas ideias e a utopia revela então outra
face: em textos como o famoso 1984 de
Orwell, torna-se distopia.
Mas, no fundo, a distopia não é muito diferente da utopia ‒ foi o olhar sobre a
utopia que mudou...
[Toda a
exposição atrás é demasiado breve e demasiado esquemática e faltam-lhe, por
isso, muitas nuances interessantes. Paciência. Num texto de blogue, porém, não
cabe muito mais, acho eu. Muita da informação que aqui apresento é em segunda
mão, porque eu, embora tenha lido algumas utopias, não as li em número
suficiente para tirar tão abrangentes conclusões. O modelo de oposição entre
utopia e primitivismo vem de Christian Marouby (Utopie
et primitivisme. Essai sur l’imaginaire anthropologique à l’âge classique, Paris: Seuil, 1990, uma obra que me influenciou
muito e que recomendo vivamente). Na Travessa, há um texto sobre as línguas das Utopias
aqui, e estou a pensar fazer
um texto mais desenvolvido sobre esse tema.]
_______________
[1] Não tenho
a certeza absoluta, mas tenho boas razões para acreditar que se trata de um
trabalho de Furkan Şener que se encontra (ou encontrou) na Universidade de
Başkent em Ancara (ver aqui ou aqui)
[2] Um
utopista, Robert Burton, di-lo até muito diretamente no capítulo "An Utopia of Mine
Owne" da sua Anatomia da Melancolia de 1621: Para ele,
uma má situação geográfica era um dos fatores que causava a “melancolia” dos
reinos que conhecia, pelo que a sua Utopia seria fundada num
lugar remoto ‒ na Terra Australis
Incognita, numa ilha do Pacífico Sul, no interior da América ou no Norte de
África ‒ a cerca de 45 graus de
latitude, para ter um clima temperado. 45 graus de latitude significa a utópica
mesura: exatamente a meio caminho entre o polo e o equador! Não é dos paralelos
45 reais que se trata. Robert Burton talvez nem soubesse que regiões
efetivamente atravessavam…
[3] É muito
curioso verificar que este ideal primitivista é, ao contrário, da Utopia,
construído negativamente: os povos naturais são bons porque não têm certas coisas (propriedade, hierarquias,
leis, governo, roupas, pudor, etc.), que o primitivista identifica
como culpadas do mal-estar europeu. A definição negativa do ideal não é nenhuma
inovação da literatura primitivista, mas antes retomada do motivo clássico da
Idade de Ouro, que também é sempre descrita negativamente.
Belo texto, deve ser dessas utopias que vem esse pensamento que muitas vezes é melhor não vermos os nossos desejos materializarem-se. Uma vez li uma utopia do Jonathan Swift, numa terra em que existiam uns seres com a forma de cavalos mas que falavam (ou eram telepáticos) e fiquei com receio dessa utopia. Aproveito para sugerir que enfraqueça o teste para verificar se não sou um robot porque parece tão difícil de passar que começo a pensar se afinal não serei um robot.
ResponderEliminarObrigado, caro jj.amarante.
ResponderEliminarFiquei um bocado preocupado com esse robô que decide da humanidade das pessoas. Se calhar, está a desincentivar comentários. Mas não tenho maneira de controlar o grau de dificuldade: é como um interruptor, só pode estar ligado ou desligado. Por enquanto, continua ligado, mas estou a pensar em substituí-lo por moderação de comentários. Acho que algum tipo de filtro tenho de ter, porque senão tenho a caixa de comentários cheia de spam todas as manhãs...
E sim, esses houyhnhnms de Jonathan Swift assustam um bocado, na sua perfeição. É curioso, vi há dias, precisamente, com os meus filhos, uma mini-série televisiva de 1996 que é, ao que parece, a mais fiel adaptação das Viagens de Gulliver e que foi, em grande parte, filmada em Portugal: http://www.imdb.com/title/tt0115195/. Tenho a ideia que as adaptações cinematográficas podem ser uma boa maneira de dar a conhecer os clássicos aos miúdos, pelos menos enquanto as obras são muito complicadas para eles, mas também não sei até que ponto é que o facto de terem visto o filme e conhecerem a história os desincentiva a leitura do livro...