Zigue e zigue e zigue, mas que sarabanda! / São rodas de mortos que se dão a mão! / Zigue e zigue e zague, vejam: aqui anda / Aos pulos o rei, junto do vilão! // Mas ei-los que fogem, todos, de repente, / Que já canta o galo, surge a claridade / Que noite de festa foi p’ra toda a gente! / Viva a morte, pois, viva a igualdade!É uma tradução muito livre, para conservar ritmo e rima, das duas quadras finais de um poema de Henri Cazalis chamado “Égalité-Fraternité”, incluído em L’Illusion, de 1875*. Foi este texto que inspirou o poema sinfónico Danse Macabre, de Camille Saint-Saëns.
Não nos surpreende o remate do texto, pois não? A impressão que tenho, sem ter investigado muito o assunto, é que a ideia da morte como instituidora de igualdade é bastante comum. É perante a morte, como perante a divindade, que somos todos iguais. Consolo pouco, dirão alguns, se alguma vez o chegou a ser... Mas ideia forte – e imagem forte, também.
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Há uma frase de Søren Kierkegaard que, à primeira vista, parece desviar-se um pouco dessa ideia:Mesmo em plena contemplação grave da morte, pode sorrir-se, não da igualdade de todos, mas de haver, apesar dela, diferença.Lembro-me de que, quando conheci a frase, a interpretei como uma valorização radical da diferença: É assim a vida: às vezes nem a morte, senhor Cazalis, nos faz iguais… Costumava passear pelo Assistens Kirkegård, o mais bonito cemitério de Copenhaga, e às vezes ficava um bocado parado em frente ao jazigo da família Kierkegaard, onde o filósofo Søren se encontra sepultado. Quando escreveu isto, pensei eu, Kierkegaard não imaginava que, naquele mesmo cemitério, um dia o viriam ver turistas, estudantes e toda a classe de gente – a ele, um desconhecido famoso, de que as pessoas sabem sobretudo (é o meu caso…) que foi filósofo e que, olha, a campa dele é ali. E ele, contemplando agora a morte do lado de lá, era bem capaz de achar graça não a sermos todos iguais a ele, mas a considerarmo-lo diferente.
Mas foi porque conheci a frase descontextualizada. A verdade é que também Kierkegaard realça o papel igualizador da morte. A frase é de um texto, “No cemitério”, de 1845, em que Kierkegaard fala de passear de manhã pelo Assistens Kirkegård, precisamente, e da constatação trivial de que, nas campas, há ainda vestígios das diferenças que houve em vida entre quem as ocupa, mas diferenças que a morte reduziu a mesmo muito pouco – a meio metro, um metro que seja**...
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Não sei se sabem, mas Kierkegaard significa “cemitério” em dinamarquês. É uma grafia antiga da palavra, que se escreve atualmente kirkegård. E o significado do nome do escritor introduz muitas vezes jogos curiosos nos textos sobre ele, sobretudo se falarem de reflexões, diante da sua campa, sobre textos que ele escreveu sobre cemitérios…_______________
* Zig et zig et zag, la mort en cadence / Frappant une tombe avec son talon, / La mort à minuit joue un air de danse, / Zig et zig et zag, sur son violon. // Le vent d'hiver souffle, et la nuit est sombre, / Des gémissements sortent des tilleuls ; / Les squelettes blancs vont à travers l'ombre / Courant et sautant sous leurs grands linceuls, // Zig et zig et zag, chacun se trémousse, / On entend claquer les os des danseurs, / Un couple lascif s'assoit sur la mousse / Comme pour goûter d'anciennes douceurs. // Zig et zig et zag, la mort continue / De racler sans fin son aigre instrument. / Un voile est tombé ! La danseuse est nue ! / Son danseur la serre amoureusement. // La dame est, dit-on, marquise ou baronne. / Et le vert galant un pauvre charron – / Horreur ! Et voilà qu'elle s'abandonne / Comme si le rustre était un baron ! // Zig et zig et zig, quelle sarabande! / Quels cercles de morts se donnant la main ! / Zig et zig et zag, on voit dans la bande / Le roi gambader auprès du vilain! // Mais psit ! tout à coup on quitte la ronde, / On se pousse, on fuit, le coq a chanté / Oh ! La belle nuit pour le pauvre monde ! / Et vive la mort et l'égalité !
** Kierkegaard usa a medida escandinava alen, de cerca de 60 cm, que não sei como se traduz para outras línguas. Provavelmente, não se traduz: não há palavra, quando não há a coisa...
Confessando a minha ignorância e projectando-a no resto dos leitores deste blogue eu sugeriria outra redação para a frase sobre o kierkgaard-cemitério:
ResponderEliminarComo possivelmente saberão e no caso contrário passarão a saber,...
Muito obrigado pelo comentário. Aceito a sugestão e altero a redação.
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