06/09/13

Divertimento em forma de cesto de cerejas

Há vários casos famosos de nomes de produtos que tiveram de ser alterados para serem comercializados em zonas onde o nome original não soava bem. Em Portugal, por exemplo – por poderem suscitar associações com palavras de um registo, digamos, mais familiar –, o Rexona passou a Rexina (para passar depois a Rexona, o que terá mudado entretanto?) e o Opel Ascona passou a Opel 1604 (também havia quem, sem lhe mudar o nome original, deslocasse apenas a sílaba tónica, pronunciando incorretamente [áscona]...). 

Trata-se aqui de adaptações complexas, digamos assim, do nome de um produto a uma língua, mas normalmente a adaptação é bem mais primária e mais espontânea: como qualquer palavra estrangeira, adapta-se à fonética da língua que a adota*; e, como se difunde, normalmente, por escrito, é muitas vezes lido com a lógica ortográfica dessa língua. Ou qualquer coisa que não é bem uma nem a outra: 

Se se limitasse a adaptar-se à pronúncia portuguesa o seu nome, as máquinas Singer chamar-se-iam [sínguer]; se se lesse apenas como se escreve, seriam [singer], com acento na última sílaba; mas, vá lá saber-se porquê, a marca Singer chama-se [sínger] em Portugal. Já o Tide (isto deixou de se vender em Portugal, não foi?, ou mudou de nome?) se pronunciava apenas como se lia, [tid], embora não seja estranha à estrutura fonética do português a sequência de sons [taid], que é como se chama originalmente o detergente. Na pronúncia de Palmolive, também parece ter prevalecido a leitura da palavra como se fosse portuguesa, embora se possa discutir se a acentuação original [pa(l)mólive] encaixa ou não na estrutura fonética portuguesa. A pronúncia de Colgate, em contrapartida, ignora a leitura à portuguesa e aportuguesa apenas a pronúncia original em [colgueite]. 

Parece claro, portanto, que não há aqui nada de muito claro; e que a regra parece ser que não há regra nenhuma... Um caso curioso é o de X-acto. Pronunciando-se [xis-ato] (isto é, [xizato]), como se pronuncia, anula-se completamente o jogo de palavras que funda o nome da marca: a pronúncia original [igzakto] remete para exact, “exato”, mas creio que a grande maioria dos portugueses que utilizam o instrumento não tem consciência disso. 

Fazendo agora um salto um pouco estranho dos nomes de marcas para os nomes de heróis de banda desenhada, chegamos à recordação que me deu a ideia de escrever isto. Um tipo de aportuguesamento muito curioso, que se fez a determinada altura, foi o dos nomes das personagens de banda desenhada: foram completamente alterados, substituídos por outros mais ou menos portugueses. Não é exatamente, note-se, uma originalidade portuguesa: em muitos países se alteraram completamente, nas traduções, os nomes de certas personagens de BD e de animação. Em Portugal, porém, parece que não foi apenas decisão de tradutores e editoras, à procura de nomes mais bem soantes para o público português, mas que havia de facto uma norma a cumprir, não sei se lei mesmo, se algum tipo de diretiva. Nuno Neves diz no seu blogue notas bedéfilas que “[a] censura, então vigente no nosso país, (…) [chegou] mesmo a tornar obrigatório que as personagens estrangeiras adotassem nomes portugueses”. 

E foi assim que Big Ben Bolt passou a Luís Euripo, Johnny Hazard a João Tempestade, Steve Canyon a Luís Ciclone, etc. Alguns destes aportuguesamentos tiveram mais fortuna e foram usados durante mais tempo que outros. Por exemplo, D. Enigma, Calidano, Cavaleiro Ruivo, Rúben Quirino e Roque Texas já tinham desaparecido quando eu era miúdo (eu, pelo menos, não me lembro de alguma vez os ter visto) e usavam-se os nomes originais, respectivamente Mandrake, Matt Marriott, Red Ryder, Rip Kirby e Roy Rogers. Por exemplo. 

Luís Big Ben Bolt Euripo, por John Cullen Murphy

Agora, pensei que, na era de Google, talvez encontrasse resposta à questão que algumas vezes se me pôs: Ciclone e Tempestade, a gente percebe, vá, mas porquê o Euripo de Luís Euripo? O que – ou quem – teria inspirado a escolha de nome tão invulgar? Terá havido algum Euripo pugilista? Ou de alguma forma famoso, mesmo que num meio restrito? Mas nada: pesquisa-se e fica-se a saber que Euripo, embora seja raro, existe mesmo, como nome próprio e como apelido, e só isso. Talvez a escolha tenha sido motivada pelo significado de euripo como nome comum e tenha a intenção didática de nos fazer ir ver a palavra no dicionário. Eu, pelo menos, doutra maneira não a teria ido procurar, porque nunca a encontrei em mais lado nenhum… 

Bom, mas então, onde é que eu ia? Hmmm, a propósito, vai uma cerejinha? O quê, que lhe meta um v entre o r e o e? Também pode ser! 

[Eu não queria encher isto de nomes de marcas, pois não, mas como é que escrevia isto sem eles?...] 
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* Surpreende-me, aliás, que não se tenha imposto a pronúncia /ikeia/ do nome da cadeia sueca de móveis e produtos domésticos Ikea. Seria esta a pronúncia natural em português europeu, resolvendo o encontro das vogais e e a, um encontro que não temos em posição tónica. Não é isso, porém, que eu tenho ouvido em Portugal, mas /ikêa/… Curiosamente, ouço também por vezes /ikê-á/, à francesa. 

[Texto revisto e ligeiramente alterado a 11 de julho de 2023]

 

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