19/10/13

Terra roubada ao mar

No romance As duas baronesas (1848), escreve H. C. Andersen (traduzo eu):
Compreendo alemão”, gritou a pequena Elisabeth, quando, na paragem seguinte da carruagem, ouviu as crianças falarem. “Compreendo as palavras quase todas”. E compreendia mesmo, pois era dinamarquês que ouvia. Aqui, em toda a faixa que vai de Flensburgo ao Mar do Norte, alternam alemão, dinamarquês e frísio. As três línguas entrelaçam-se umas nas outras. O frísio domina nas terras alagadiças da costa, onde vivem os frísios, esse povo antiquíssimo, já referido por Heródoto e Xenofonte como originário da Pérsia.
Nem Heródoto nem Xenofonte podem ter falado de frísios, porque são ambos muito anteriores às primeiras referências a este povo, e H. C. Andersen está muito provavelmente a confundir os frísios com outro povo qualquer. A ideia de que os frísios sejam originários da Pérsia é também muito estranha… Quanto ao resto, a descrição é correta e as coisas não mudaram muito deste meados do século XIX – frísio, alemão e dinamarquês ainda coexistem na zona, além do baixo-alemão que certamente também ali existia já no tempo de H. C. Andersen.

A cultura das terras baixas, que começa imediatamente a norte da fronteira entre a Dinamarca e a Alemanha e, a sul, se prolonga até à Bélgica, é uma cultura fascinante. Nas fotos abaixo, tiradas na ilha dinamarquesa de Mandø, não se percebe bem onde acaba a terra e começa o mar e isso parece-me, justamente, uma boa imagem dessa cultura: uma cultura onde são vagos e/ou volúveis os limites entre terra e mar.


Roubar terra ao mar é tarefa árdua e lenta. Construir, durante séculos a fio, diques e canais, montar filas de estacas que retenham a areia. Não sei o que ganhou diretamente cada um dos construtores destas terras, mas não me surpreenderia que fosse tarefa maior que o seu interesse direto. Por causa da terra roubada ao mar, pus-me a pensar em tantos esforços de que não se esperam resultados a curto prazo – ou de que quem os faz não espera, muitas vezes, ver resultados em vida. É certo que, do trabalho que se faz para os outros todos, algum proveito nos vem, sob a forma de consideração, de prestígio – e, portanto, de poder. Mas vai dar ao mesmo: se me disserem que as pessoas são naturalmente egoístas, falo-vos do impulso que todos temos de valorizar quem faz coisas que não são apenas para si, mas também para outros que, às vezes, não sabe quem são, quem serão.

6 comentários:

  1. Belas fotografias!
    Essa reflexão sobre o egoísmo lembrou-me os plantadores de sobreiros. Mais um caso de pessoas que trabalham para que alguém no futuro tire daí proveito.
    Será que são movidos por uma espécie de amor desmesurado ao mundo deles, que querem que vá além da sua morte?

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  2. Essa pode ser uma explicação. Ou um sentido de que "é assim que se faz", porque assim se viu fazer. Mas, como eu digo no texto (só lhe dou uma volta retórica...), o mecanismo que é normalmente invocado para explicar este tipo de ações é a chamada reciprocidade indireta: se eu for ao funeral de muita gente, muitas gente há de vir ao meu funeral, por muito que não sejam aqueles a cujos funerais eu fui :) Também se fala de "sinalização dispendiosa" (não sei mesmo como se diz isto em português...): se eu consigo fazer algo que, em princípio, não me traz vantagens e me sai caro em esforço ou exposição ao perigo (um handicap), estou a mostrar que sou forte (o que me dá vantagens em termos de seleção sexual...).

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  3. É a primeira vez que me ocorre que quem não tem six pack pode impressionar as mocinhas plantando sobreiros...
    ;-)

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  4. E falando em árvores, lembrei-me de uma boa história (muito possivelmente apócrifa) que ouvi aqui há uns tempos: http://tinyurl.com/pvje3f5

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  5. Ah, e em relação aos Frísios "povo antiquíssimo", pode ser que o H.C. Andersen os tenha confundido com os Frígios. Esses sim viviam lá para os lados do Xenofonte.

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  6. Boa história, Nuno. A ideia de que tem de se preparar alguma coisa para os que vêm depois de nós é muito mais antiga que as modernas ideias ambientalistas. Quanto aos frígios, foi isso mesmo que eu pensei; eram eles o "outro povo qualquer" que tinha em mente. Sei que Heródoto fala deles (mas acho que não diz que vêm da Pérsia).

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