Ora é precisamente em termos negativos que sempre foi definida a Idade de Ouro ou a primordial barbárie humana. Conforme se valoriza ou não as ausências “constatadas”, os outros são idealizados ou demonizados: ou são felizes porque não têm leis, roupa e propriedade ou são brutos selvagens porque não têm leis, roupa e propriedade. Quando se pensa que são as leis, o dinheiro, as hierarquias, a arquitetura, etc., que corrompem a natural felicidade e bondade humana, temos o ideal que designei como primitivista. E é curioso como, em muito do etno-romantismo[3] que por aí anda, se mantém essa definição negativa do Outro.
Esta imagem foi partilhada por amigos meus no Facebook. A foto de homens iáguas do Peru é de Chany Cristal, embora, como é costume, não seja referida a autoria[4]. Explica Chany que, “se lhes pediam, faziam com todo o gosto espetáculos para os turistas, nestes trajes tradicionais – como forma de fazer algum dinheiro e divulgar o seu antigo modo de vida. Aqui, estão a ensinar a usar uma zarabatana.”
Não sei se pensam que a zarabatana sempre se utilizou apenas para matar animais, mas não é bem assim. A ideia de que não há crimes entre os iáguas deve radicar na ideia de que não têm leis ou então na ideia que todos as cumprem – duas ideias estranhas...
É evidente que as sociedades tribais da Amazónia têm algumas coisas que a imagem diz não terem. Nem todas, é certo, mas a terra onde eu vivo também não as tem todas. Não digo que não possamos ter perdido, nas sociedades desenvolvidas, algo que a “idade de ouro” pré-desenvolvimento mantém nas sociedades mais atrasadas. É bem possível que haja sempre algo a perder com o desenvolvimento, mas o que o ideal primitivista se esquece muitas vezes de fazer é equacionar ponderadamente o que se tem a perder e a ganhar com esse mesmo desenvolvimento.
Para não entrar em discussões estéreis, vejamos o que as pessoas querem. E o que as pessoas querem em todo o mundo é a vida menos trabalhosa e mais segura, para elas e para os seus filhos. Agora, claro, só pode escolher de facto quem conhece, não é verdade? É isso que torna difícil a discussão. Poucas são as pessoas que conhecem os dois mundos em oposição, para os comparar. Tenho a impressão que são bem mais os que, depois de viverem em sociedades pré-modernas, voltam à sua modernidade original que os que, depois de experimentarem as terríveis sociedades modernas, decidem voltar ao seu primitivo paraíso. Mas é só uma impressão, não tenho maneira nenhuma de o provar...
Seja o for que os povos da Amazónia tenham de bom que nós já não temos, o certo é têm também muitas coisas más que já não temos e ainda bem que já não as temos e é uma pena eles terem-nas ainda. Cada um leva até onde quer a idealização das sociedades tribais de que a imagem que motivou este texto pretende ser exemplo, mas há que ter cuidado para não ir demasiado longe nessa idealização e não propor como ideal uma vida que, entre as muitas coisas boas que há de ter, é infelizmente muito mais breve que a nossa e se caracteriza também por muito mais escassez, doença, perigo e violência. É que, senão, parece que se está a fazer pouco da miséria, como dizia a minha avó.
Não sei se pensam que a zarabatana sempre se utilizou apenas para matar animais, mas não é bem assim. A ideia de que não há crimes entre os iáguas deve radicar na ideia de que não têm leis ou então na ideia que todos as cumprem – duas ideias estranhas...
É evidente que as sociedades tribais da Amazónia têm algumas coisas que a imagem diz não terem. Nem todas, é certo, mas a terra onde eu vivo também não as tem todas. Não digo que não possamos ter perdido, nas sociedades desenvolvidas, algo que a “idade de ouro” pré-desenvolvimento mantém nas sociedades mais atrasadas. É bem possível que haja sempre algo a perder com o desenvolvimento, mas o que o ideal primitivista se esquece muitas vezes de fazer é equacionar ponderadamente o que se tem a perder e a ganhar com esse mesmo desenvolvimento.
Para não entrar em discussões estéreis, vejamos o que as pessoas querem. E o que as pessoas querem em todo o mundo é a vida menos trabalhosa e mais segura, para elas e para os seus filhos. Agora, claro, só pode escolher de facto quem conhece, não é verdade? É isso que torna difícil a discussão. Poucas são as pessoas que conhecem os dois mundos em oposição, para os comparar. Tenho a impressão que são bem mais os que, depois de viverem em sociedades pré-modernas, voltam à sua modernidade original que os que, depois de experimentarem as terríveis sociedades modernas, decidem voltar ao seu primitivo paraíso. Mas é só uma impressão, não tenho maneira nenhuma de o provar...
Seja o for que os povos da Amazónia tenham de bom que nós já não temos, o certo é têm também muitas coisas más que já não temos e ainda bem que já não as temos e é uma pena eles terem-nas ainda. Cada um leva até onde quer a idealização das sociedades tribais de que a imagem que motivou este texto pretende ser exemplo, mas há que ter cuidado para não ir demasiado longe nessa idealização e não propor como ideal uma vida que, entre as muitas coisas boas que há de ter, é infelizmente muito mais breve que a nossa e se caracteriza também por muito mais escassez, doença, perigo e violência. É que, senão, parece que se está a fazer pouco da miséria, como dizia a minha avó.
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Nota final: Quero salientar que, nos comentários ao post no Facebook, há, naturalmente, quem se insurja contra este tipo de afirmações. Por exemplo, um comentador lista algumas das coisas que as comunidades tribais amazónicas têm e ele não queria ter (e que correspondem, em grande medida, ao que eu refiro no texto como “muitas coisas más que já não temos e ainda bem que já não as temos e é uma pena eles terem-nas ainda”): vermes, parasitas e fungos de todos o tipo, alta suscetibilidade a todo o tipo de doenças invalidantes e fatais, graves problemas dentais, péssimos hábitos higiénicos, uma esperança de vida de 35-40 anos, um dia de trabalho de 12 a 14 horas, um sistema patriarcal brutal em que as mulheres são consideradas propriedade, uma mortalidade infantil elevadíssima e tendência a matar ou abandonar as crianças que nascem com deficiência congénitas. A lista podia é claro, ser maior e mais bem organizada, mas não é essa intenção deste texto. Outro comentário, realçando também a elevadíssima mortalidade de crianças e de todos os mais fracos, desafia quem concorde com esta visão idílica da vida das comunidades tribais amazónicas a passar dez anos entre elas. Lê-se ainda, num comentário, que “esta imagem … é insultuosa para a maior parte das tribos que ainda existem, porque menospreza os seus problemas”.
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[1] Para não me afastar do assunto central do texto, deixo aqui por explicar o quero dizer com ideal utópico, remetendo antes o leitor para os textos anteriores sobre esse tema.
[2] Não há razão para os europeus se autoflagelarem por isso, como às vezes fazem. É apenas o resultado forçoso das circunstâncias históricas, já que não havia, nesta altura, nenhuma possibilidade de compreender a alteridade como a compreendemos hoje e esta incompreensão estava longe de ser apenas dos povos da Europa.
[3] Pequena nota ortográfica: Surgiu-me agora a dúvida de que seja esta a grafia correta, mas, enquanto não reflito mais sobre a questão, continuo a usá-la.
[4] De certa maneira, este post é uma continuação do post anterior, sobre a leviandade do click&share nas redes sociais. Mas é mais que isso: é a continuação de uma reflexão antiga sobre primitivismo/etno-romantismo e as relações com a alteridade em geral.
Talvez já tenha enviado este link sobre ilhas desertas, o paraíso misantrópico: http://imagenscomtexto.blogspot.pt/2009/01/ilha-deserta.html
ResponderEliminarP.S. agora neste blogue ficou muito fácil provar que não se é um robot!
Ainda bem que é agora mais fácil dar provas de humanidade à entrada dos comentários. Não, ainda não tinha visto o seu texto sobre o Robinson Crusoe. Concordo com o que lá diz, claro (e muito com a questão dos cuidados dentários!), mas acho que um aspeto sedutor do Robinson Crusoe é ser também uma espécie de manual de desenrascanço.
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