17/02/15

O tempo e a sua falta

Sempre me custou perceber a afirmação, tantas vezes repetida, de que o tempo não tem realidade, que é só ilusão que criámos e veneramos. Nunca tal se diz do espaço, porque será?, só do tempo – como se se pudesse ficar nalgum lado ou ir a algum lado sem que passe tempo. Existir no espaço sem tempo e no tempo sem espaço é atributo de ubíquas e eternas divindades, nada que os animais conheçam. O que os animais conhecem é o que lhes dizem os sentidos. E eu e o meu cão, os tordos e as abelhas, todos sentimos o tempo passar. E ainda bem que assim é. Tentem conceber alguém que não tivesse a capacidade de sentir o tempo, para quem não houvesse antes e depois. Não conseguem, pois não?, é-vos tão impossível conceber tal coisa como conceber alguém para quem o mundo não tivesse profundidade e vivesse apenas dentro de uma imagem plana.

Ilusão, o tempo? Criação nossa apenas, ficção? Ora, haverá no mundo alguma coisa em que esbarremos mais que no tempo, outra coisa que tenha uma tão cruel materialidade? Ah, porque se pode perceber de maneiras várias, porque uma hora com uma rapariga bonita é mais curta que um minuto sentado em cima do bico aceso de um fogão*… Claro, como tudo o que existe. Mas isso só mostra bem que existe fora da maneira como cada um o percebe, senão como poderia ser percebido por cada um de maneira diferente?

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Às vezes, uma pessoa esforça-se tanto por dizer coisas novas que acaba por dizer coisas que têm pouca ou nenhuma relação com a realidade. E está muito bem assim. Outras vezes, quer mesmo falar do que acha importante e não tem remédio senão repetir o que já disseram milhares de pessoas antes dela, porque o que é importante para cada um de nós foi e continua a ser importante para muitos outros em muitos tempo e lugares. Escrevi muitos textos sobre tempo, quase todos a rimar. Falam do contra-senso que encerra a expressão matar o tempo, que é coisa que não se pode (pois se é o tempo que nos vai matando a nós!); falam de envelhecimento como consciência cada vez mais aguda de que um dia tudo se acaba. Que pode haver de mais importante e de mais banal que isto?

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Quando era rapaz novo, impressionava-me a deslumbrada ânsia de viver de Dean Moriarty, personagem de On the road de Jack Kerouac, e o seu “conhecimento do tempo”. “Nós conhecemos o tempo”, repete ele várias vezes no livro. Para Dean, conhecer o tempo é ser capaz de o desacelerar e curtir a vida, e, para isso, é preciso deixar de tomar decisões, de querer decidir o futuro, deixar-se ir apenas – atrás da vida, para onde ela o chamar. E eu e os meus amigos, aspirantes a beatnicks que éramos, tentávamos convencer-nos mutuamente da validade dessa fascinante ideia e de que tínhamos essa superior capacidade. “Nós conhecemos o tempo!”, repetíamos nós, “Nós conhecemos o tempo!”

A personagem de Dean Moriarty é inspirada numa pessoa concreta, Neal Cassady. Em The First Third, um texto autobiográfico, Neal Cassady conta que o seu irmão Jimmy o fechava numa cama embutida na parede, às vezes horas a fio. Neal diz que, literalmente emparedado, sentia que o tempo “ia acelerando até atingir o triplo da sua velocidade normal”. E ele, horrorizado, com medo de se mexer e de gastar a sua reserva de oxigénio, aprendeu a “viajar no tempo”, deixando-se, às vezes, ir na corrente do tempo e transformando-a, outras vezes, numa enxurrada. A única maneira de resistir ao pânico, ao mais absoluto desespero, era aprender a “conhecer o tempo”, a modelar a perceção que dele tinha. Que mais pode fazer – se o conseguir… – quem deixa literalmente de ter tempo, quem não vê, depois deste agora que está a chegar ao fim, nem um bocadinho de futuro?

Não é dar o dito por não dito, não é isso. É dar conta de dor, de impotência. É certo – pode ser certo – que, às vezes, o tempo não existe. Falta-nos, não há. Se for só para acabar de pintar a cave ou para dar forma definitiva a um texto de blogue ou para ler aquele livro que queríamos mesmo ler, ainda é como o outro… Que nos falte, não há problema. Mas pode-se, aos 28 anos, por exemplo, não ter já tempo para nada a não ser sofrer dores e a angústia da morte iminente. Um mês mais, mais seis meses? Uma vez, ouvi alguém desimportantizar um anúncio de morte: “Morte anunciada, como na crónica do outro, o que é isso?” A morte, dizia essa pessoa, é-nos anunciada a todos em criança. É uma afirmação insuportavelmente cruel para aqueles a quem tenha sido anunciado que não lhes resta já muito tempo. E é assim também, não é?, a asserção ligeira de que “o tempo, isso não existe, nós é que o fazemos, o tempo”, para uma pessoa que não pode fazer – nem desfazer – tempo nenhum...


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* Esta explicação que Einstein deu da relatividade mostra que nem ele a consegue explicar de maneira simples – é que esta explicação não explica nada, convenhamos… (Mas desta vez, é mesmo dele, vá lá, são referidas em três obras formulações ligeiramente diferentes da mesma ideia: James B. Simpson:1957; William Hermanns:1983; Alice Calaprice: 2005)

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