13/05/15

Passar de é a deve ser

Pode ser que uma parte de valores e comportamentos sociais que temos tendência a considerar essencialmente culturais tenha origem em estruturas primitivas inatas, em lugares fundo das pessoas. Pode ser ou pode não ser, as discussões sobre o tema estão muito longe de ser conclusivas. E isto aplica-se tanto às atitudes que louvamos (a solidariedade, por exemplo) como às que criticamos (por exemplo, a discriminação). Talvez algumas das discriminações tenham até origem nos mecanismos que fundam também a solidariedade. O reconhecimento de parentesco, por exemplo, se de facto existir, é um mecanismo egoísta para os nossos genes se protegerem a si próprios em que pode assentar originalmente a criação de círculos de identidade e pertença («sou deste grupo»), que resulta forçosamente no reconhecimento simples da diferença («X não é deste grupo») que modela a discriminação. Tor Nørretranders (de quem já aqui falei) explora muito a noção de egoísmo como base do altruísmo e defende que é a vontade de se valorizar para seduzir os outros que nos leva a fazer coisas por eles, para eles. Pode dizer-se que, nesta perspetiva, há uma profunda relação entre dois sentidos comuns da expressão ser bom: «ser capaz, habilidoso, competente» e «ser bondoso».

Tirando a elegante formulação da questão que proponho na frase anterior, acabadinha de descobrir, não disse ainda, neste texto, nada que não tenha já dito noutros textos deste blogue. Não é, porém, para apresentar a minha descoberta retórica que escrevo, mas para sublinhar que, mesmo que acreditemos que estão assim fundamente ancorados em nós, que são tão naturais como inevitáveis, os vários mecanismos que fundam provavelmente todas as morais, não devemos perder de vista que esses mecanismos são moralmente contraditórios e nem por obsessão de realismo, portanto, a discussão ética se pode centrar na constatação do que é, do como somos – a constatação duma pretensa natureza humana. É que do que é, mesmo havendo sobre ele um consenso que atualmente não há, não pode fazer derivar-se direta e univocamente um deve ser – mas antes muitos, muitos!...

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