Em geral, procura-se uma nova lei pelo seguinte processo: começamos com uma conjetura; depois, calculamos as consequências dessa conjetura para vermos as implicações da lei, se estivesse correta; depois ainda, comparamos o resultado do cálculo com a Natureza por meio da experiência ou da experimentação. A comparação é efetuada diretamente com as observações para vermos se a lei funciona. Se não concordar com a experiência, está errada. Nesta simples afirmação reside a chave da ciência. Não importa a beleza da nossa suposição. Não importa a nossa inteligência ou a reputação de quem fez a conjetura − se a lei não concordar com a experiência está errada. E é tudo[1].Tomando a expressão lei científica em sentido lato, referindo-se, sei lá..., tanto às leis da termodinâmica como à aquisição da pronúncia da língua materna, poderia dizer-se que, neste resumo, Feynman descreve de facto todo o processo científico; mas seria uma grande injustiça para todos os que, pacientemente, vão apenas recolhendo informação, sem por isso proporem quaisquer leis. É essencial em ciência o papel das bases de dados (não forçosamente no sentido informático da expressão, claro), ou seja, do conjunto de descrições da realidade que nos permitem, precisamente, aferir a validade de qualquer lei ou teoria.
Como interagem a formulação de hipóteses e os dados recolhidos é uma questão interessante. No outro dia, comprei em segunda mão uma edição ilustrada das quatro novelas de Sherlock Holmes. Nunca tinha lido nenhuma história de Sherlock Holmes, vejam lá. Tinha lido coisas de Conan Doyle e até já falei aqui dele, mas não eram aventuras de Sherlock Holmes. Na primeira novela, o célebre investigador adverte para o perigo de formular hipóteses antes de ter recolhido os dados. Diz ele (e traduzo eu):
É um erro enorme teorizar antes de ter os indícios todos. Faz-nos ser tendenciosos.[2]Descobri depois, na Wikipédia, que Holmes repete a mesma ideia em As aventuras de Sherlock Holmes:
É um erro enorme teorizar antes de ter dados. Sem o sentir, uma pessoa começa a distorcer os factos para os fazer corresponder às teorias, em vez de fazer teorias que correspondam aos factos.[3]
Exame do crânio de Piltdown. John Cooke, 1915 (de Wikimedia Commons) Na história verídica do Homem de Piltdown juntam-se a aventura de detetives e a investigação científica (e talvez também Conan Doyle, mas isso é só uma conjetura… |
Dito isto, e por fundamentados que sejam os receios de Sherlock Holmes relativamente à tendência de confirmar na observação aquilo em que se acredita à partida, é importante realçar que o controlo da validade das conclusões de uma investigação não é apenas pessoal, interior: vai haver (devia sempre haver…) outras pessoas a julgar as provas e as deduções do detetive e do historiador, e a refazer os cálculos e as experiências do cientista, e é assim que se certifica que os dados não foram escolhidos a dedo ou torturados até dizerem o que o investigador queria que eles dissessem.
Se continuarmos a seguir a aula de Feynman atrás referida, vemos que não é qualquer palpite que serve de ponto de partida ao trabalho científico, mas que deverá ser, é claro, uma conjetura abalizada[4]. Não basta “montar um grande computador com uma roda que faz uma sucessão de conjeturas” ao acaso e testá-las todas, quanto mais melhor. Quer dizer, se não forem possibilidades realmente intestáveis e que, por isso, não podem aspirar ao estatuto de observáveis, sobre, por exemplo, o que sentiram os americanos originais quando viram chegar os primeiros europeus, a reprodução das sereias ou a alma das nações, podem de facto verificar-se até hipóteses mesmo muito disparatadas, mas não há razão nenhuma para se gastar tempo e dinheiro para o boneco (a não ser em casos em que se pretende justamente desmantelar uma hipótese disparatada que alguém insista em considerar “um facto”, como certos postulados das pseudociências...).
Fazer uma boa conjetura é, pois, uma parte importante do trabalho. Tão importante que, se a hipótese for boa, recorda-nos Priyamvada Natarajan numa conversa recente no site Edge, ninguém passa a considerar menos o seu autor quando ela se revela falsa. A beleza da ciência, diz ela, é poder provar-se que uma pessoa tem ou não razão. Uma das belezas, sem dúvida. Outra é essa de ninguém perder valor por não ter razão, se tiver feito devidamente o seu trabalho. Notem que não é de modo nenhum de astrofísica que aqui se trata, até porque não é assunto sobre o qual me sinta com capacidade de escrever seja lá o que for, pelo que salto a explicação das teorias que ela descreve e que poderão conhecer, se for do vosso interesse, seguindo a link atrás. Notem também como este processo segue rigorosamente a descrição de Feynman: há um fenómeno que não se sabe explicar, pelo que é necessário uma lei nova; aventa-se uma proposta de explicação; calculam-se as consequências que essa lei teria, a ser verdadeira; e verifica-se se essas consequências se observam ou não na realidade. Traduzo eu:
Propusemos [a] ideia dos Buracos Negros de Colapso Direto que são muito maciços e se formam muito cedo no universo […]. Claro, há consequências da formação de buracos negros, ou de uma população deles, desta maneira, em vez de ser por meio de estrelas. A principal previsão deste cenário é que se devem ver quasares muito brilhantes muito mais cedo no universo […] É uma previsão que será testada pelo Telescópio Espacial James Webb, que esperamos que seja inaugurado em 2018.Eu sei o que estão a pensar: que este tipo de reconhecimento não é de modo algum exclusivo da ciência, que há muito quem continue a ser admirado depois de se provar que não tinha razão – e não só por familiares e amigos. É certo. Quando, porém, se trata de formas de “conhecimento” não sujeitas à confrontação com a observação e ao escrutínio de outros especialistas, sejam elas religiosas, pseudofilosóficas ou pseudocientíficas, o mais normal é nunca se provar que alguém não tem razão, simplesmente porque não há nada a provar, é tudo só uma questão de crer[4]...
Vai ser muito emocionante provar-se se temos razão ou não. É essa a beleza da ciência. Uma pessoa poder sentar-se no seu escritoriozinho em New Haven e fazer um cálculo que uma comunidade leva suficientemente a sério para o testar, e é fantástico que o façam num prazo de dez, quinze anos […]. É claro, seria bom ter razão.
A questão de se provar várias vezes que uma pessoa está errada e essa pessoa ser, ainda assim, uma cientista respeitada é uma excelente questão. Tem havido muitos casos em que houve grandes espíritos que propuseram ideias fortes, muitas das quais se tem provado que estão erradas, e eles são considerados, ainda assim, os mais brilhantes astrofísicos.
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[1] Richard Feynman, O que é uma Lei Física, Lisboa: Gradiva, 1989. Tradução de Carlos Fiolhais. No vídeo da aula de Feynman de que é tirado o texto,os alunos riem-se quando ele diz “First, you guess”, o que não aconteceria, penso eu, se alguém dissesse, em português, “começamos com uma conjetura”. Isto tem a ver com o leque mais amplo de significados da palavra guess, mas não me parece que a tradução seja incorreta, parece-me até muito acertada.
[2] “A Study in Scarlet” in Sherlock Holmes, The Complete Illustrated Novels, Londres: Bounty Books, 2005: “It is a capital mistake to theorize before you have all the evidence. It biases the judgment.”
[3] “A Scandal in Bohemia”, in The Adventures of Sherlock Holmes, Londres: George Newnes, 1892: “It is a capital mistake to theorize before one has data. Insensibly one begins to twist facts to suit theories, instead of theories to suit facts.” Uma coisa que me veio logo à cabeça, quando li estas sentenças de Sherlock Holmes (não me atrevo a sugerir que se deve ler nas afirmações do investigador a opinião do seu autor…), foi que, em abstrato, pode também pensar-se exatamente o contrário: que basear-se sempre em dados previamente recolhidos pode influenciar a formulação da hipótese, limitando-a. Por cercear a imaginação, digamos assim. É-me difícil, porém, pensar em exemplos concretos dessa possível limitação.
[4] E depois, mas isso é outra história, há os casos de vários guias espirituais de todo o tipo que, depois de serem desmascaradas as suas fraudes ou as enormes incoerências entre o que pregam e o que fazem, não perdem a legião de discípulos e admiradores – os discípulos não reconhecem que o seu mentor espiritual estava errado, nem sequer, muitas vezes, aceitam as críticas que lhe fazem, sobretudo porque, se o fizessem, teriam de aceitar o seu próprio equívoco… Como me sugeriu j.j.amarante, esta referência a guias espirituais deve também incluir políticos.
Na nota [4], usar a palavra "guias espirituais", embora num sentido lato possa incluir os políticos, na prática tende a excluí-los desta frase. Uma vez que os líderes políticos têm ultimamente ficado cada vez mais parecidos a guias espirituais charlatães preferiria usar em vez de "guias espituais" o termo "guias espituais e/ou políticos".
ResponderEliminarConcordo, José Júlio, vou fazer a alteração que me propõe.
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