04/08/15

O passado é uma reserva de sonho [Crónicas de Svendborg #23]

Gary Snyder tem um poema chamado “Earth verse”*, que traduzo por “Estrofe da Terra”, mas é uma tradução sem grande convicção. Traduzo com a mesma falta de convicção o significado dos versos, ou alguns dos seus possíveis significados, só para quem não os consiga ler no inglês original. Tinha primeiro traduzido enough por «que chegue». Depois optei por «suficientemente», mas nenhuma das soluções me agrada, sobretudo em termos rítmicos e visuais. Paciência.
Wide enough to keep you looking
Open enough to keep you moving
Dry enough to keep you honest
Prickly enough to make you tough
Green enough to go on living
Old enough to give you dreams
Suficientemente grande para continuares à procura
Suficientemente aberta para não parares
Suficientemente seca para continuares a ser honesto
Suficientemente espinhosa para te endurecer
Suficientemente verde para continuar a viver
Suficientemente velha para te fazer sonhar 
O poema não tem nada de especial. Dos seis versos, aliás, há quatro que, sem serem feios, são semanticamente banais. Mas depois há um que é surpreendente, como devem ser os versos dos poemas: aquele que diz que a Terra é suficientemente seca para continuarmos a ser honestos. Como se deriva honestidade de secura? E há outro que diz muito bem uma verdade fundamental, pelo que também deve ser elogiado: a idade de coisas, seres e lugares, a constatação simples do tempo passado, é sempre causa de sonho, não é?

No domingo, fui visitar Skarø. A ilha, que é habitada desde o séc. XIII, tinha em 1903 cerca de 200 habitantes, que viviam da agricultura e da pesca. Agora, tem menos de 40. Mas tem turistas, que antigamente não tinha. Tem uma capela e deve ter tido escola, quase de certeza. Alguma vez terá tido médico? Uma parte da terra é salgada demais para cultivar. Havia vacas, com certeza. Veem-se campos de aveia. Que mais cultivariam? Como seria viver num espaço tão limitado e numa comunidade tão pequena, não encontrar senão gente conhecida? Invernos húmidos e frios, haviam de ser, naquelas casas provavelmente mal aquecidas. Divisões pequeninas das casas, roupas pesadas. Aos olhos de uma pessoa do Sul, Skarø não parece fundamentalmente diferente do resto do Norte. É um ambiente, uma sensação, algo que não sei bem explicar. E o devaneio de perscrutar o passado é exatamente o mesmo em Skarø ou noutro lado qualquer. Acho que é disso que se fala quando se fala de fantasmas. Todos os sítios estão cheios deles. Numa semipresença apenas adivinhada, coexistem com o nosso tempo os outros tempos todos. Skarø é só um exemplo.


Falei com a Karen da frase de Snyder, old enough to give you dreams, e deste entressonho em que se tenta escrutinar o passado. Quando cheguei a casa e decidi escrever um pequeno texto sobre isso, encontrei no computador uma nota de fevereiro de 2013, creio que uma ideia para um poema:
o passado
é uma reserva de sonho
dormido ou desperto
Não me lembro bem do que queria dizer com isto, mas parece tratar-se, pelo menos em parte, da mesma ideia.


______________

* Mountains and rivers without end. Berkeley: Counterpoint, 1996

4 comentários:

  1. Bonito texto, Vítor.
    Os meus antepassados algarvios utilizariam "avonde". Talvez resolva o problema do ritmo :-)

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  2. Obrigado, Nuno. Avonde é, de facto, muito melhor do ponto de vista da sonoridade e do ritmo (é quase igual a enough), mas não sei se, do ponto de vista da localização, como se diz agora, da "tradução cultural", seria muito correto usar uma palavra com as conotações que avonde tem para traduzir Gary Snyder...
    Um abraço!

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  3. E que tal: Grande o suficiente, aberta o suficiente......, e por aí fora? Parece soar melhor, o que achas?

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  4. Pois, Edite, também é uma possibilidade. Eu nunca uso essa estrutura, não sei porquê, é bem capaz de ser defeito meu...

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