A minha figura que passava – não me lembro de o fazer conscientemente, mas posso agora constatá-lo – inspirava-se seguramente no icónico «Just passin’ thru», de Robert Crumb.
Não é preciso acreditar que há alguma coisa depois da morte para pôr as coisas nestes termos: estar de passagem – ou passar apenas, até – é uma excelente metáfora da vida. E acho que era isso, mais que a descrição da minha condição de vagabundo, que me fascinava na tão repetida figura que apenas passa.
2. Se é verdade que, como postulam alguns e a mim me parece fazer todo o sentido, os sistemas nervosos dos animais se desenvolveram para controlar movimento e que continua a ser essa uma das suas funções principais, não é de surpreender que as noções espaciais estejam na base de todas as noções abstratas com que raciocinamos, em que encaixamos o mundo.
Pasar é, diz o dicionário da Real Academia Espanhola, «cruzar de una parte a otra» ou «ir más allá de un punto limitado o determinado». Tem mais 62 aceções, mas creio que decorrem todas destas duas, que, bem vistas as coisas, são afinal uma única: «mover-se em direção a X, seja X um ponto ou um espaço, e continuar a mover-se depois de ter atingido X».
É o que fazemos toda a vida, como dizia e bem Antonio Machado:
Todo pasa y todo queda, / pero lo nuestro es pasar, / pasar haciendo caminos, / caminos sobre la mar.
«Proverbios y cantares XLIV», in Campos de Castilla, 1917)
3. Podemos sempre perguntar «O que se passa?» ou «O que se passou?» e todos os acontecimentos servem de resposta a esta pergunta. De cada vez que atingimos o tal X – e estamos sempre a atingi-lo – o que percorremos já é o passado, claro está. Um dia, passa a vida por nós e somos nós passado.
Agostinho de Hipona:
O que é, pois, o tempo? Se ninguém mo pergunta, sei o que é; mas se quero explicá-lo a quem mo pergunta, não sei: no entanto, digo com segurança que sei que, se nada passasse, não existiria o tempo passado, e, se nada adviesse, não existiria o tempo futuro, e, se nada existisse, não existiria o tempo presente. De que modo existem, pois, esses dois tempos, o passado e o futuro, uma vez que, por um lado, o passado já não existe, por outro, o futuro ainda não existe? Quanto ao presente, se fosse sempre presente, e não passasse a passado, já não seria tempo, mas eternidade. Logo, se o presente, para ser tempo, só passa a existir porque se torna passado, como é que dizemos que existe também este, cuja causa de existir é aquela por que não existirá, ou seja, não podemos dizer com verdade que o tempo existe senão porque ele tende para o não existir?
4. Para Agostinho de Hipona, o passado só existe por estar presente – ou talvez melhor, por ser presente – na memória:
Se existem coisas futuras e passadas, quero saber onde estão. Mas (…), onde quer que estejam, aí não são futuras nem passadas, mas presentes. (…) Até a minha infância, que já não existe, existe no tempo passado, que já não existe; mas vejo a sua imagem no tempo presente, quando a evoco e descrevo, porque ainda está na minha memória. (Ibid, XVIII. 23)
Existem na minha alma estas três espécies de tempo e não as vejo em outro lugar: memória presente respeitante às coisas passadas, visão presente respeitante às coisas presentes, expectação presente respeitante às coisas futuras. (Ibid. XX. 26)
A obra de Agostinho de Hipona é um clássico, como é clássica a sua reflexão sobre o tempo. Os «Proverbios y cantares» de Machado também são já um clássico, e creio que se pode dizer que o Mr. Natural de Crumb também já o é. Perenes, provavelmente não são, mas resistem bem a passar apenas.
É possível alguém permanecer em vez de estar só de passagem? Ficar para sempre presente nalguma memória, se soube ganhar a fama e a glória? Qual! Figura de estilo apenas, ou então ilusão: se tivermos feito obras valerosíssimas, quem se liberta da morte são as obras, que não nós. Ao fim de uma ou duas gerações, já não existimos na memória de ninguém.
É possível alguém permanecer em vez de estar só de passagem? Ficar para sempre presente nalguma memória, se soube ganhar a fama e a glória? Qual! Figura de estilo apenas, ou então ilusão: se tivermos feito obras valerosíssimas, quem se liberta da morte são as obras, que não nós. Ao fim de uma ou duas gerações, já não existimos na memória de ninguém.
Uma vez fiz um post (http://imagenscomtexto.blogspot.pt/2016/01/teorias-de-tudo-por-john-d-barrow.html) sobre um livro (Teorias de Tudo de John D.Barrow) de que cito:
ResponderEliminar«...
Prossegue (o autor do livro) depois sobre o tema do Tempo, citando
- este graffiti de um anónimo no Texas:
«O tempo é o modo como Deus evita que as coisas aconteçam todas ao mesmo tempo»;
- Bernard Shaw:
«Os ingleses não são um povo muito espiritual. Então, inventaram o críquete que lhes dá alguma noção de eternidade»;
- e “A Cidade de Deus” de Santo Agostinho:
«O mundo foi então seguramente feito, não no tempo, mas simultaneamente com o tempo. Porque aquilo que é feito no tempo é feito tanto antes como depois de algum tempo – depois disso, que é passado, e antes disso, que é futuro. Mas então nada podia ser passado, pois não existia nenhuma criatura cujos movimentos pudessem ser medidos para determinar a sua duração. Mas simultaneamente com o tempo o mundo foi criado.».
considerando que esta visão da simultaneidade da criação do Universo e do tempo é a opinião dominante dos cientistas de hoje, que corresponde à opinião de Santo Agostinho, manifestada no século V.
...»
Bons aforismos! É de facto de uma surpreendente modernidade, o filósofo Agostinho. Eu lembro-me de que o conheci (e concretamente estes textos das Confissões que cito) quando comecei a estudar tempo nas línguas naturais, que foi um assunto a que me dediquei muito, há muitos anos. Agostinho concebe Deus (que tem o exclusivo da eternidade, que não pode ser unidirecional) como estando fora do tempo – não posso dizer "como sendo anterior ao tempo", porque, nesta perspetiva, isso seria uma contradição.
ResponderEliminar