30/03/17

"Urge for going" – a ânsia de partir.

Joni Mitchell escreveu, provavelmente em 1966, uma canção maravilhosa chamada “Urge for going”. Embora a tenha cantado ao vivo nessa altura*, só em 1972 foi publicada uma gravação de estúdio como lado B do single “You Turn Me On, I'm a Radio”.
 
Nas duas apresentações da canção transcritas na página que lhe é dedicada no site de Joni Mitchell, a autora afirma que se trata de uma canção sobre o inverno da sua terra natal, Saskatoon, Saskatchewan:

Quando chega o inverno, chega mesmo, e a temperatura desce para 10 graus abaixo de zero. e toda a gente se farta de se queixar, mas nunca ninguém faz nada. … Só se queixam e dizem «ah, eu gostava de estar na Flórida» e os agricultores e as pessoas que têm dinheiro para isso vão mesmo até à Flórida ou a alguma ilha para passarem o inverno. Mas, então, os outros, coitados de nós, as pessoas normais, temos de nos sentar e aguentar o inverno até ao fim. E era nisto que eu estava a pensar quando escrevi esta canção, mas acho que significa coisas diferentes para cada pessoa.
É precisamente o que diz a canção (perdoem-me a tradução desajeitada, original aqui):
Quando o sol traidor se torna frio
e as árvores todas tiritam de frio em renques nus,
sinto ânsias de partir.
Mas depois não vou.
Sinto ânsias de partir,
quando a erva de prado começa a ficar castanha,
o verão se esvai e o inverno nos vai cercando. 
Mas diz mais que isso. Há quem fique, mas há quem satisfaça a ânsia de partir.
Tive um homem no verão,
de pele cor de sol quente,
e nenhuma outra moça da terra
lhe soube conquistar o coração. 
Mas quando as folhas se espalharam pelo chão,
vieram ventos fortes
e enterraram-nas na neve.
Veio-lhe a ânsia de partir
e eu tive de o deixar ir.
Veio-lhe a ânsia de partir,
quando a erva de prado começou a ficar castanha,
o verão a esvair-se e o inverno a cercar-nos.
Há um tópico, um motivo recorrente na música popular, uma linhagem de canções, digamos assim, a que chamo ramblin’ man, o «homem errante», o «vagabundo», o «vadio». Nem todas têm exatamente esse título, mas um bom exemplo desta temática é a canção que Ray Pennington gravou em 1967 e que se chama precisamente “I'm a ramblin’ man”:
Deixei uma rapariga na Virgínia Ocidental, / lá onde os campos são verdes, pois deixei. / tenho uma rapariga em Cincinnati, / à espera, ali onde passa o rio Ohio, coitada. / Sou um vadio [ramblin’ man] / Não te apaixones por um vadio. 
O ramblin’ man não pode fixar-se em lado nenhum, tem de seguir viagem. A razão não é clara nem racional, mas é apresentada como imperiosa, uma espécie de fatalidade. Como dizia Hank Williams, no seu clássico “Ramblin’ man” (1951), que gravou com o pseudónimo de Luke the Drifter, «Gosto de ti, miúda, / mas tens de perceber, / que quando Deus me fez, / fez-me vagabundo».

Quando Deus nos faz assim, não podemos ser de outra maneira – a malvada ânsia de partir. Agora, o destino de um ramblin’ man não é apenas seguir sempre em frente, é quase sempre também deixar alguém para trás. No fundo, é como a imagem conhecido dos marinheiros com um amor em cada porto. Aliás, também há canções que falam dessa errância dos marinheiros e que podem incluir-se, creio eu, na mesma grande família temática. Assim traduziu Chico de Buarque a canção “4/3/1943 (1971) de Lucio Dalla:
Ele assim como veio partiu, não se sabe p’ra onde / e deixou minha mãe com o olhar / cada dia mais longe, / esperando, parada, pregada na pedra do porto, / com seu único velho vestido, / cada dia mais curto.
Se não é a ânsia de partir, é o dever. A vida, enfim. E é uma coisa de homens, notem. Se há ramblin’ women, não se veem...

Voltemos à nossa canção. “Urge for going” inscreve-se neste modelo temático concreto, acho eu. Se o aspeto climático da canção, digamos assim, lhe dá alguma originalidade dentro do tópico, não deixa de tratar de um homem que tem de partir, por alguma razão imperiosa, e que deixa atrás de si uma mulher. Mas é uma canção que dá a volta ao tema, alterando-lhe, se não o conteúdo, pelo menos a perspectiva; e dando uma voz à mulher que fica. Ela também sente a ânsia de partir, mas acaba por ficar. As mulheres dos ramblin’ men talvez quisessem partir também, mas não as deixavam, ou elas sentiam que não deviam.

***
Também se pode ver a vadiagem dos ramblin’ men como viagem iniciática. São solitárias, não é verdade? as viagens dos monges (não monjas!) de várias religiões, que deambulam em busca da iluminação. Mas claro, para uns poderem atingir a mais alta e perfeita iluminação, outros há (outras há?) que têm de ficar a tomar conta das crianças. Bom, alguns dirão que o tao também se pode atingir mudando e lavando fraldas, mas porque não escolhem então essa via os santos e os sādhus?…
Yasodharā segura Siddhartha, Museu de Calcutá. Foto: Dharma, Penang, Malásia (daqui

No filme Samsara, de Pan Nalin (2001), a personagem principal, Tashi, é um monge que, a dada altura, renuncia à vida monástica, casa-se e tem um filho. Um dia, porém, resolve voltar à procura da iluminação e sai de casa sem dizer nada a ninguém. A sua mulher, Pema, apanha-o no caminho (a cena começa a 2:03:50, em princípio o link aponta já para esse momento):
Yasodharā...», diz-lhe ela, «Conheces Yasodharā? Toda a gente conhece Gautama, Buddha, Siddhartha, mas quantos conhecem Yasodharā? Yasodharā era esposa de Siddhartha e amava-o muito.
Pema lembra a Tashi que, para procurar a Iluminação, Siddhartha Gautama abandonou o lar à noite, quando Yasodharā e Rahul, o filho do casal, estavam a dormir – tal como ele, Tashi, acabava de fazer. E continua:
Quem sabe se Buda não lhe deve a ela [Yasodharā] a sua iluminação? Como podemos saber se ela se sentiu zangada, amargurada e só, quando Sidarta os deixou? … Como podia ela responder à eterna pergunta de Rahul “Onde está o meu pai”?
«Só um homem abandona um filho a meio da noite», diz Pema, mas isto não é de modo algum verdade. O discurso dos instintos maternos sempre foi e continua a ser o discurso dominante e uma maneira eficaz de justificar uma parte dos papéis reservados às mulheres, mas não é verdade. Uma mulher também é capaz de abandonar o filho a meio da noite, milhares, milhões de mulheres o fizeram. E porque não havia de ser capaz? E porque não havia de o fazer, se for o melhor que pode fazer?

Na primavera de 1964, Joni Mitchell ficou grávida de «um artista de Calgari», que, diz ela na canção “Little Green”, de 1971 , «foi a para a Califórnia, porque ouviu dizer que é tudo mais quente por lá». Não se pode saber se é ele o homem que a voz feminina de “Urge for going”. diz ter tido no verão, mas pode especular-se que talvez seja, que podia ser. A história pode ser lida no site de Joni Mitchell, mas também se a pode ler na letra de “Little Green”:
Escreves-lhe uma carta a dizer a dizer que ela [o bebé] tem olhos azuis. Ele manda-te um poema. E ela está perdida para ti. Uma criança com uma criança, a fingir. Estás farta das mentiras que mandas p’ra casa. Assinas todos os papéis em nome da família. Estás triste, lamentas, mas não te envergonhas.
É claro que não tem se envergonhar. Envergonhar-se de quê? De ter cedido ela também à ânsia de partir, quando partir foi o melhor que, nas circunstâncias, podia fazer?
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* Por exemplo na televisão, a 17 de agosto de 66 e a 24 de outubro de 66; e ao vivo no Second Fret, a 6 november 1966. Cliquem nos links e vejam/oiçam os vídeos, porque vale mesmo a pena.

Entretanto, a canção foi gravada por várias pessoas e teve algum sucesso na sua primeira gravação, por Tom Rush (1966, uma grande versão, por tal sinal), e na terceira, por George Hamilton IV (1967). O site Second Hand Songs lista apenas 23 versões da canção, mas o site de Joni Mitchel lista 93 versões.

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