19/10/17

Luvas, enxadas e andaimes

[Este texto é uma colagem de coisas que me vêm à cabeça a propósito de trabalho manual e de cuidados ou falta deles. Está um bocado desorganizado, sou o primeiro a reconhecer, mas acho que se percebe onde quero chegar.]

Tive um amigo que montava andaimes. Ganhava prémios por trabalhar sem cinto de segurança, porque sem cinto de segurança se trabalha muito mais depressa. E morre-se, se se cai. Não sei se a legislação permitia este incentivo ao suicídio, mas fazia-se. E havia quem fosse nisso, a troco de mais umas coroas. Quando, como o meu amigo, se é jovem e, mais que destemido, imortal, há sempre quem alinhe em qualquer tipo de comportamento, mesmo suicida, a troco de mais umas coroas…

A verdade é que, em certos trabalhos, se morre mesmo tendo cuidado. Em obras grandes, por exemplo, morrem sempre pessoas. Por exemplo, na construção da ponte do Storebælt (1991–1998), aqui relativamente perto de casa, morreram pelo menos 7 pessoas. Aliás, o trabalho na construção é sempre uma atividade de risco. Evidentemente, a situação não é tão má como já foi. Não só a legislação é agora muito mais estrita – racional, apenas, ou humana, diria eu –, como é mais eficaz a fiscalização. E é claro que devemos continuar a tentar melhorar tanto as leis de segurança no trabalho como o controlo da sua aplicação. Agora, há a lei e há os hábitos, a cultura de trabalho. A cabeça da gente, digamos assim.

Van Gogh: «Camponesa a apanhar batatas», 1985. Museu Van Gogh, Amsterdão



Traduzi o ano passado um livro sobre a cultura material de Moçambique. Num capítulo sobre «Ferramentas e alfaias agrícolas», lê-se que «gerações sucessivas de mulheres das zonas rurais reconhecerão que, de todas as tarefas femininas no cultivo da terra, capinar com um sacho é a pior e mais demorada, fonte de cansaço e de dores nas costas. Mas, paradoxalmente, está profundamente enraizada na mente das pessoas a ideia de que trabalhar com o corpo em posição vertical é sinal de preguiça. Talvez essa seja a razão por que não houve a iniciativa de introduzir ferramentas que tornassem a tarefa mais fácil», como «por exemplo, um sacho mais ergonómico que facilitasse a monda»*. Não há aqui nada de específico da cultura moçambicana. Encontrei a mesma ideia em quase todos os sítios por onde andei. É a tal ideia de que, no trabalho, não se deve procurar conforto. Nunca vivi muito tempo no campo e muito menos vivi alguma vez da agricultura, mas, em jovem, fiz muitas vezes trabalhos sazonais no campo, para financiar a minha vagabundagem. Lembro-me que não se deixava – e não só nos trabalhos do campo – trabalhar as pessoas de joelhos ou sentadas no chão. Tinham de se dobrar. Porque davam assim mais rendimento? Duvido. Mas porque «não se trabalha sentado», voilà!

Vejo muitas vezes no Facebook fotos de ferramentas, enxadas, pás, serrotes, etc., etc., com a irritante legenda «aparelhos de musculação». «Ginásio, para se manter em forma? Vá mas é trabalhar!», é obviamente a mensagem que se quer fazer passar. Mas a verdade é que o trabalho manual pesado nunca deu saúde a ninguém. Talvez desenvolva alguns músculos, não sei, mas dá cabo de muitos outros – e de tendões e ossos, e de tudo. Dá cabo da pessoa toda. Mas, enfim, trabalho é assim, e só se queixa quem não quer dar o corpo ao manifesto, como se diz. Há coisas difíceis de perceber. Nunca percebi, por exemplo, os sacos de cimento de 50 quilos. Só mesmo para dar cabo das costas dos serventes de pedreiro?

No outro dia, apanhei um texto a fazer troça do neorruralismo, seja lá isso o que for. Parece que uma das ridículas extravagâncias dos neorrurais, é «cavar a terra com luvas de jardinagem». Não sei nada dos neorrurais, nem até que ponto merecem ser objeto de chacota, mas vejo bem em que assenta a zombaria. Então, mas esses meninos não sabem que trabalhar faz calos, como diz o provérbio. E note-se que frase não quer apenas dizer que de facto os faz – trabalhar deve fazer calos! Luvas? Proteger as mãos quando se trabalha? Capacetes e cintos de segurança? Ora…

A verdade é que às vezes me esqueço de calçar luvas quando trabalho. Deve ser porque fui educado para ser um verdadeiro trabalhador… No outro dia, estava sem luvas a deitar abaixo um barracão velho, armado de martelo e pé-de-cabra, e a minha filha Joana, de 15 anos, veio logo chamar-me a atenção:
«Pai, não se trabalha sem luvas, e muito menos a fazer trabalhos desses.» 
Ao contrário do que dizem muitos pessimistas que conheço o mundo vai melhorando, acreditem.
 _______________

* A enxada é, por si, uma escolha estranha, relativamente à pá de cavar, que se usa em muitos países, e que permite o trabalho na posição vertical. Será que são as características dos solos que justificam essa escolha ou só uma ideia de como deve ser o verdadeiro trabalho?

4 comentários:

  1. Na Índia impressionou-me o uso de vassouras sem cabo e fiz este post sobre o tema:
    https://imagenscomtexto.blogspot.pt/2010/01/vassouras.html

    Agora fui à procura do texto do TIME indiano e só disponibilizam isto para não assinantes:
    «To India's 56 million untouchables, the badge of their social inferiority is often the implement of their trade—a handleless broom made by binding together a bundle of twigs. Stooped over this broom, the lowly outcast daily sweeps India's streets and village squares, its courtyards and bedrooms. Not only does this lead to agonizing backaches, spinal curvature and a characteristic cringing posture, but also years of inhaling the clouds of dust stirred up contribute to an alarming pulmonary tuberculosis rate. Yet generations of foreign travelers, "asking why India's sweepers do not use a stand-up broom with a handle, have invariably... »

    Entretanto descobri que em 2014 o Narendra Modi (PM indiano) continua a batalha a favor da vassoura com cabo (https://www.outlookindia.com/magazine/story/a-long-handle-on-the-broom/292517), censurando a falta de referência ao Nehru.

    É um caso típico de comportamento que se perpetua sem razão material para ele, arranjar um cabo de vassoura não seria difícil no campo. Nalguns casos a pobreza reside na cabeça das pessoas, existem possibilidades de melhoria ao seu alcance de que não se apercebem.

    Reparei contudo noutro dia no "AKI", uma loja de "bricolage" existente em Portugal, que existe uma grande variedade de ferramentas melhor desenhadas do que noutros tempos. Actualmente em Portugal as luvas são comuns na construção civil, coisa que nunca se via há uns anos atrás. Os sacos de 50kg de cimento devem subsistir por pura inércia. No limite servem para os homens mostrarem a sua força.

    E mesmo na ginástica existe a frase idiota anglo-saxónica "no pain, no gain". Talvez o Genesis também tenha culpa ao dizer que se ganhará o pão com o suor do rosto e bla, bla.

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  2. Pequena adenda ao meu comentário anterior: é o artigo da revista Outlook que censura ausência de referência ao Nehru e não o Narendra Modi.

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  3. Obrigado pelos seus comentários sempre pertinentes e interessantes, caro José Júlio. Nem sempre respondo, até porque nem sempre tenho muito a acrescentar, como neste caso, mas leio-os sempre com muita satisfação. E aproveito para pedir desculpa pelo atraso com que às vezes lhe respondo.

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  4. Esteja à vontade ó Vítor. Uma das grandes vantagens destas trocas de comentários é que não têm de ser síncronas como as conversas em que a resposta tem que ser quase instantânea. E como trabalhei no IST, na EDP e na REN, antes de me reformar, adaptei-me à unidade de tempo das grandes organizações nacionais que é o trimestre. Algo que demore 3 meses demorou uma unidade de tempo, o semestre são duas o ano mede-se em 4. E lembrei-me disto porque o seu comentário veio logo passada exactamnete uma unidade de tempo.

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