23/10/18

«E tu, tu que pensavas?»

Se não escrevo aqui sobre a atualidade política, não é de modo nenhum por desinteresse, mas sobretudo porque, não tendo um conhecimento aprofundado da maior parte das questões que me importam, não creio, sinceramente, ter nada interessante a acrescentar a muito do que leio nos meios de comunicação e nas redes sociais. Abro hoje uma exceção. Preocupa-me muito a evolução política dos últimos anos, com o surgimento, o avanço ou a consolidação de neofascismos em vários países – a perspetiva da eleição de Bolsonaro é aterradora para qualquer pessoa de bom senso – e quero insistir em algumas ideias que, por banais que possam ser, quero repetir, mesmo sem acreditar que tenham qualquer efeito...

Uma é que é preciso lembrarmo-nos constantemente de que a democracia é uma instituição naturalmente frágil. Por muito que tenhamos agora a ilusão de que a democracia é «o normal» – o que não seja democracia até nos parece aberrante, contra natura –, a democracia é, de facto, uma ideia de organização social materializada apenas em muitos poucos tempos e lugares, e está constantemente em perigo. Tem de se fazer alguma coisa para ela ser preservada. Quem vive numa democracia estável, e, nalguns casos, até já muito longa tende muitas vezes a pensar que nunca o seu país aceitará, ou voltará a aceitar, um fascismo.... Mas é pecar por excesso de otimismo. Em muitos países com tradições democráticas surgiram ditaduras em certos períodos históricos. Porque não voltariam a surgir outra vez? As ditaduras não foram banidas de vez, nem nunca serão.
E tu, tu que pensavas?
Que eram tudo águas passadas?
Que esta trágica e mísera história
não se repetiria mais?


Brunori Sas, "L'uomo nero", 2017, ao vivo em 2018

Outra é que às vezes é importante pensar democracia definindo-a pela negativa – uma ausência de ditadura. Se pensarmos na democracia como possibilidade de igual participação de todos na definição de regras e políticas que governam uma sociedade, o que mais importa assegurar constantemente não é que todos participem dessa maneira, mas que ninguém seja excluído dessa participação e que ninguém se dê a si próprio ou a um grupo de pessoas mais prerrogativas que a outros – ou seja, que a possibilidade de participar nunca seja retirada, seja ela usada ou não. É de sublinhar que, dando prioridade à recusa da ditadura, podemos e devemos conservar, como bússola, moral, a ideia do tipo de democracia, de governo, de Estado, que queremos (como muito bem no-lo lembra Eliana Brum
Como resistir em tempos brutos. Um manual para enfrentar as próximas três semanas e transformar luto em verbo», El País, 9.10.2018):
Em momentos de tanta gravidade, como já viveram outros países ao longo da história, tudo o que se pode fazer é ser contra. Contra o autoritarismo. Contra a opressão. Contra a ameaça da ditadura. Contra o extermínio das minorias. Contra o sequestro da liberdade. Mas, mesmo fazendo campanha e votando contra, é preciso jamais perder de vista do que somos a favor.
«Insegurança» e «imigração» são palavras-chave da ascensão dos fascismos. Creio que nisso podemos assentar, como também podemos assentar em que as dimensões reais destes fenómenos variam muito de país para país e em muitos lugares não são problemas reais, mas apenas fantasmas de que a propaganda neofascista se serve – e há sempre muita gente, de várias classes sociais e tradições políticas, a responder bem à retórica do «perigo» que correm o «povo» e a «nação». Ora, os culpados de um problema, real ou inexistente, são sempre os outros. Se o estrangeiro não for suficientemente visível, acusam-se os opositores de estarem ao serviço de potências, de ideologias e de maneiras de viver «estrangeiras», de serem traidores dos «valores essenciais» da pátria – cola-se a etiqueta de uma alteridade criminosa a todos os opositores. Que acabam às vezes por a assumir para se demarcar da conceção de nação e nacionalismo que lhes querem impor. O sufoco que se sente na garganta quando se lê uma frase como a que escreveu uma amiga minha húngara quando se soube o resultado das últimas eleições legislativas no seu país!...
A Hungria é húngara, diz Orbán. Mas minha já não é.
Não se pode abdicar da discussão. Sei bem que é difícil, senão impossível, tentar argumentar com quem não está disposto a aceitar nem argumentos nem factos. Uma pessoa desiste, muitas vezes, antes de começar, só de imaginar a dimensão e a inutilidade da discussão. Por mim falo – ou contra mim, se preferirem. Mas história recente dos avanços de todo o tipo de populismo, sobretudo dos nacionalismos xenófobos, mostra que eles se dão muito bem com a ausência de confronto direto. Não debater com os seus defensores, «para não lhes dar mais visibilidade mediática» ou «para não descer ao seu nível» acaba por resultar em que a mentira e a irracionalidade raivosa se espalhem sem que ninguém as contrarie. Agora, mais difícil que dar permanentemente resposta à desinformação e à incoerência populistas e xenófobas é fazê-lo num tom sereno e o mais cordato possível (como ter uma atitude calma perante a fúria de todas as intolerâncias?), mas é essa a única maneira de se poder ganhar alguma coisa com a discussão. Responder a insulto contra insulto pode ser inevitável em certas ocasiões, mas tem normalmente o efeito perverso de tornar mais empedernido na sua raiva quem acha que o mal do mundo são estrangeiros, homossexuais, feministas, intelectuais e, em geral, quem defenda uma sociedade aberta e tolerante – democrática.

E também não se pode abdicar do direito a criticar governos ou candidatos fascistas ou fascizantes, ou qualquer tipo de totalitarismo, para, como alguns querem, não interferir nas questões internas de um determinado país. A ideia de que cada país tem o governo que quer, ou porque o elegeu ou porque não o depõe, coisa que poderia sempre fazer, é de um simplismo irrazoável que todos os ditadores agradecem – e deixa fundamentalmente de lado, no caso dos ditadores eleitos, o facto de que, ao contrário do que acontece quando não há ditadura, os eleitores não poderem mudar de opinião nas eleições seguintes ou castigarem os eleitos, se estes se desviarem do que defenderam nas suas campanhas. Mas a moral – e, dentro dela, a política – não tem fronteiras territoriais.

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