11/04/19

Sobre a idade de ouro da língua e um pouco mais

A minha amiga Catarina mostrou-me há pouco tempo um excerto de William Labov, um dos nomes maiores da sociolinguística (é uma passagem conhecida, que eu traduzo e cuja versão original pode encontrar-se, por exemplo, na Wikipédia):
Diferentes comunidades estigmatizam mais ou menos as novas formas da língua, mas nunca conheci ninguém que as recebesse com aplausos. Alguns cidadãos mais velhos recebem bem as novas músicas e danças, os novos dispositivos electrónicos e computadores. Mas se ouviu ninguém: «É maravilhoso como os jovens falam hoje em dia. É muito melhor que a maneira como falávamos quando eu era criança». (...) A crença mais geral e mais profundamente enraizada sobre a língua é o Princípio da Idade do Ouro: Houve um determinado momento do passado em que a língua estava num estado de perfeição. Parte-se do princípio que, nesse estado, todos os sons eram corretos e belos, e todas as palavras e expressões eram genuínas, precisas e apropriadas. Além disso, o declínio desse estado tem sido regular e persistente, de modo que cada mudança representa um afastamento da idade de ouro e nunca um retorno a ela. Todos os sons novos soarão feios e todas as novas expressões soarão impróprias, imprecisas e inapropriadas. Tendo em conta este princípio, é óbvio que a mudança linguística deve ser interpretada como inconformidade com as normas estabelecidas e que as pessoas rejeitarão mudanças na estrutura da língua quando delas se tornam conscientes. 
(in Principles of Linguistic Change, Vol. 2: Social Factors (2001), p. 51) 
Esta ideia da Idade de Ouro e da degenerescência forçosa das coisas humanas está longe de se aplicar apenas à língua—aplica-se a tudo o que é humano e foi já aqui referida no blogue algumas vezes a propósito de outras coisas (é até uma etiqueta do blogue). Muitos concordarão que Labov tem razão. E eu também, mas parece-me que há que dar conta de algumas exceções sistemáticas a esta regra geral.

A minha experiência é que, quando, numa determinada região, as novas gerações—normalmente através da escolarização—se aproximam de uma variante de maior prestígio, as reações à mudança podem não ser exatamente como Labov as descreve no excerto acima. Ouvi muitas vezes a pessoas sem educação formal de zonas rurais que não sabem mesmo falar o correto, que só falam assim à maneira delas, que é uma maneira de falar bruta ou errada… E ouvi dessas pessoas coisas como «Ah, ele (por exemplo, um filho educado de alguém da aldeia) já não fala como à gente, que ele tem estudos e aprendeu mesmo o português correto.» Em variantes de pouco prestígio, a ideia do falar perfeito ancestral esbate-se muito ou assume outros contornos. As pessoas podem achar que é pena já ninguém falar a variante à maneira antiga, que era tão expressiva ou tão engraçada, mas não pensam nela como mais próxima da perfeição, simplesmente porque desvalorizam o seu próprio falar.

E é curioso que a palavra dialeto, que significa, em princípio, «variante de uma língua falada numa determinada região», sem qualquer julgamento de valor implícito («os dialetos setentrionais», «o dialeto de Lisboa/ da zona da Lousã», etc.), é usado muitas vezes, mesmo para referir a sua própria variante ou até a sua própria língua, com o significado de «falar imperfeito, incorreto, de menos valor que a variante de prestígio ou a língua oficial».


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