22/08/20

Da etnicidade de corpos e almas


Há uma dezena de anos, fiz uma viagem de carro de Maputo a Joanesburgo, na companhia de um enfermeiro sul africano. Era um homem mais ou menos da minha idade, nascido e crescido, portanto, no regime de apartheid; e gostava de se queixar da desgraça a que o regime pós-94 tinha levado o país – sem se atrever, ainda assim, a louvar abertamente o regime anterior. E, se ele tinha a cautela de deixar subentendida a sua posição política, eu tinha também a cautela de não confrontar com demasiada veemência o que ele deixava subentendido, para não tornar insuportáveis as muitas horas de viagem que tínhamos de partilhar.
– Você não imagina o conservadorismo da África do Sul antigamente – disse o meu companheiro a certa altura. É a parte da conversa de que lembro melhor. – O corpo era tabu. Não passavam nos cinemas filmes com cenas de nudez e nem uma mulher de bikini se via em revistas e os jornais. Pornografia, então, era impossível de encontrar. Éramos uns frustrados. Os rapazes da minha geração nunca tinham visto um corpo de mulher nu antes de irem para a cama com uma mulher pela primeira vez – quase sempre na noite de núpcias, porque não havia sexo antes do casamento.
Eu, por acaso, nem precisava imaginar – tinha conhecido uma sociedade em muitos aspetos parecida, o Portugal onde eu tinha crescido. Também tinha certeza de que as coisas não tinham sido para todos os sul-africanos como ele agora as descrevia, mas não duvidava de tivessem sido assim na comunidade africânder onde ele tinha crescido.
– O que a gente não dava só para ver as mamas de uma mulher… Bom, tínhamos todos vistos muitas mamas étnicas na televisão e em revistas, mas isso para nós não contava, era outra coisa. E a gente não se excitava com as africanas. 
Há quem diga que, mais que lutar contra o racismo através de leis e práticas institucionais, importa – e custa – tirá-lo das mentes. E há quem diga que, como em todas as questões morais, não se pode exigir de ninguém que mude de sentimentos, conquanto que, sinta o que sentir, não aja de forma discriminatória. Não cabe neste texto a longa e complexa discussão das estratégias, prioridades e alvos preferenciais do trabalho antirracista. Onde esta história quer chegar é que não é só nas mentes que o preconceito se instala, mas no corpo também. Não é que toda a gente tenha de se sentir atraída por toda a gente. As pessoas podem, naturalmente, sentir-se mais ou menos atraídas por determinados tipos físicos. Mas o que está aqui em causa é outra coisa. Ouvi mais histórias como esta, de pessoas que têm entranhado na carne o desprezo do Outro. Alguns religiosos ou místicos dirão que a carne mata o espírito; e eu constato que o contrário também é verdadeiro.
Agora, é claro, se a completa ausência de desejo pelas pessoas de outros grupos étnicos ou de outros tipos físicos (cheguei a ouvir falar de «nojo» do corpo das pessoas racializadas) revela uma forma profunda de racismo, nunca o desejo – ou até a preferência – de um tipo físico diferente é, por si só, sinal de ausência de racismo. Pode discutir-se o que desumaniza mais o Outro: não servir nem para o sexo ou só servir para o sexo…
A recordação da conversa na viagem a Joanesburgo e a ideia deste texto surgiram deste quadro de 1800, que conheci há uns meses no Tout ceci est magnifique. O Retrato de uma negra, que no ano passado se passou a chamar Retrato de Madeleine, é uma obra pouco canónica de Marie-Guilhelmine Benoist, que tem merecido análises interessantes (ver aqui e aqui, por exemplo).

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