13/09/21

Chalado

E a palavra chalado, que origem tem? 

Conheço desde miúdo o termo de calão chalar-se, com o sentido de «ir-se embora» e tinha há já muitos anos a hipótese de que chalado viesse dessa palavra: chalado seria originalmente «ido» – uma pessoa que perdeu o tino «foi-se». E tinha também outra hipótese: a de que chalar fosse um cognato do castelhano jalar, «puxar», porque entre «puxar» e «ir» a distância semântica não é longa, sobretudo se pensarmos nas ideias intermédias de «tirar» e «sair» – puxar(-se) => tirar(-se)=> sair=> ir(-se), movimentos espaciais básicos. Veja-se, por exemplo que o francês tirer, «puxar», se usa reflexivamente como forma popular para «ir-se embora». Enfim, tinha estas hipóteses todas, mas nunca tinha investigado a sua plausibilidade.

Um dia destes, porém, fui ao parar à entrada chalado do Dicionário da Porto Editora em linha, que define o termo como «1. coloquial amalucado, adoidado; 2. coloquial sem graça; pouco interessante; 3. (água) misturado com infusão de chá» e que propõe para o termo uma etimologia bastante estranha: «Do alemão schal, “insípido” +-ado».

Uma etimologia assim precisa de uma explicação muito detalhada: se o significado 2. de «sem graça; pouco interessante» decorre bem da ideia de insipidez, já o significado 1. de «amalucado, adoidado» não decorre diretamente da mesma noção. Com alguma boa vontade, porém, consegue encontrar-se alguma relação – sobretudo se se tiver em conta (se não é ir longe demais…) o significado de «secar» do étimo proto-indo-europeu (s)kelh₁, que dá, por exemplo em sueco, o adjetivo skäll, «delgado, débil». O que é mais difícil é explicar como é que uma palavra alemã entra assim no português. Por um termo intermédio numa língua intermédia? Mas qual?

Quanto ao significado 3 (que bem pode derivar apenas de chá, com influência de chalado 1.), se temos água chalada com o significado de «chá muito diluído com água» talvez seja melhor procurar aí a origem do significado 2. de «sem graça; pouco interessante» que num termo alemão.

Achei também estranho que o mesmo dicionário, embora registe chalar com o significado de «fugir», dê o termo como «intransitivo» e «popular», quando eu sempre o ouvi reflexivo («chala-te, pá!» e não «chala, pá!») e apenas como termo do calão restrito da malandragem.
Enfim, tudo isto me incitou a aprofundar a questão. E eis os resultados da minha pesquisa:
Segundo o DRAE (Dicionário da Real Academia Espanhola), jalar vem de halar, que vem, por sua vez, do francês haler – a minha hipótese de relação entre o português chalar e o castelhano jalar não presta.
Chalar também existe em castelhano, mas com o sentido de «adoidar, enlouquecer». Está assim explicada a origem natural de chalado como «amalucado», tanto em castelhano como em português. A minha primeira conclusão foi que ou o termo português foi importado do castelhano ou o verbo chalar existiu também em português com o mesmo significado do chalar espanhol. E encontrei, nessa mesma entrada do DRAE, uma etimologia para o termo de calão português chalar: o dicionário dá o caló chalar («ir; andar») como origem do chalar castelhano. Que um termo de calão português tenha origem num termo caló é perfeitamente normal, há várias nessas condições[1]. Não é por acaso, aliás, que a palavrão calão vem da palavra caló (sorriso). E a minha hipótese de que chalado como «amalucado» decorre de chalar no sentido de «ir» parecia boa.
Diz o mesmo Valentín Anders no seu site, que, pelo menos no que toca a etimologias (nunca explorei o resto), é sempre sensato (escuso-me a traduzir o castelhano, que creio que os meus leitores compreendem sem problemas):
La palabra chalado es término caló, la lengua patrimonial de los gitanos españoles. Viene del verbo chalar, que en caló significa “ir”, como ilustra esta copla flamenca en este peculiar idioma, que tiene la estructura gramatical morfológica y sintáctica del español pero está enjoyado de léxico de procedencia romaní:
Chalo para mi quer,
[Yendo para mi casa,]
me topé con el meripé;
[me topé con la muerte;]
me penó, “¿a dónde chalas?”,
[me dijo: “¿a dónde vas?”,]
le pené “para mi quer”.
[le dije: “para mi casa'] 
Del significado de “ir” viene el sentido de “loco”, pues al loco se le llama “ido”, como si dijéramos que se le ha ido la cabeza y no está en sus cabales. Así es como se han aceptado en español los tres gitanismos chalado, sinónimo de “ido” y participio del verbo chalar, y el nombre de la acción chaladura. Luego en español las tres palabras han derivado hasta significar “enamorado”, “enamorar” y “enamoramiento”, pues ya se sabe que el amor y la locura no andan lejos.
E dizem o mesmo vários outros estudiosos (as citações que faço a seguir vêm de uma longa e interessante discussão no fórum do Word Reference sobre o uso e a etimologia de chalado em castelhano):
María Inés Chamorro  defende que chalar, proveniente «[d]e la germanía chalán, que viene del fr[ancés] chaland “que trata en compra y venta”, ha pasado a la jerga actual. En gitano chalar “ir, andar, caminar” > cat[alán] atxalar “ir”, xalar “huir, ir deprisa”; en Andalucía “hacer huir a otro” y chalárselas “huir, desaparecer de un sitio”. Hubo un cambio semántico y pasó de “ido” a “enajenado, loco”.[2]»
O mesmo diz Joan Coromines, apoiando-se em Carlos Clavería[3] e Max Leopold Wagner[4], que «[recuerda] que guillarse y pirar (propiamente “marcharse”) también tomaron el sentido de “volverse loco” (…) . El transitivo chalar “enloquecer” [...] debe de ser una creación secundaria; también lo es el paso de “enloquecer” a “enamorar”. No es cierto que tengan igual origen jalar y chalar “enamorar”, como sugiere G[arcía] de Diego.[5]»
O que não é certo, e me parece até improvável, é a complicada origem franco-germânica do termo caló chalar, de que derivam as formas de calão nas línguas peninsulares. É que Géraldine Moureau indica antes a forma do sânscrito džala como origem do chalado caló, o que faz mais sentido, já que o romani, fonte do léxico caló, é uma língua de origem indiana. Javier Fuentes Cañizares refere, aliás, o termo romaní džal, «ir» como origem imediata do caló chalar[6]. A origem indiana é também defendida por Francisco Coelho[7], citando Franz von Miklosich[8].
Quando aqui chegamos, parece-me que reunimos boas e suficientes explicações para a etimologia de chalar e chalado e termos relacionados, nas várias aceções que têm nos falares ibéricos. Quero só fazer três comentários finais.
Achei curiosa a referência de Coromines ao pirar castelhano, que também tem os mesmos significados em português: «ir-se embora» e «enlouquecer». É certo que com o significado de «ir-se embora», o pirar português é sempre reflexivo, mas isso explica-se pela analogia com «ir-se embora», precisamente. É provavelmente a mesma analogia, aliás, que está na origem da reflexivização de chalar com esse mesmo significado em português.
Achei também curioso que Vicente García de Diego tenha tido a mesma intuição que eu, a da origem comum de jalar e chalar – que, como já referido acima, a Academia Espanhola desqualifica – e de que Coromines duvida[9].
Finalmente, há que dar conta dos desacordos. Como sempre nestas coisas, não há consenso entre filólogos. Eis duas propostas etimológicas alternativas, ambas com mais de um século: Adolfo de Castro[10] e Luis Montotoy Rautenstrauch[11]  propõem uma origem hebraica, respetivamente chisla e chirla, variações apenas de um mesmo termo com o significado de «estultícia ou insensatez»; e, para Matías Calandrelli[12], chalado é uma corruptela de chiflado. Cabe a cada um analisar os argumentos apresentados e decidir depois, destas propostas, quais as plausíveis e quais as… chaladas.

Notas:
[1] Ver, por exemplo, a dissertação de Mestrado em Estudos Ibéricos de Géraldine Chantal Moureau, Influência do calão cigano nas línguas portuguesa e castelhana em contextos de comunicação de massa, Universidade da Beira Interior, 2010, disponível em linha aqui 
[2] Chamorro Fernández, María Inés. Tesoro de villanos. Lengua de jacarandina: rufos, mandiles, galloferos, viltrotonas, zurrapas, carcaveras, murcios, floraineros y otras gentes de la carda. Barcelona: Herder, 2002
[3] Clavería, Carlos. “Estudios sobre los gitanismos del español” in Revista de Filología Española, anejo LIII. Madrid, 1951
[4] Wagner, Max Leopold. Notes linguistiques sur l’argot barcelonais. Barcelona: Institut d’estudis catalans, 1924 
[5] Coromines, Joan. Diccionario crítico etimológico de la lengua castellana. Berna: Editorial Francke, 1954
[6] Fuentes Cañizares, Javier. “Fuentes literarias para el estudio del caló en el siglo XVIII” (in Ivo Buzek (coord.).Interacciones entre el caló y el español : historia, relaciones y fuentes. Brno : Filozofická fakulta, Masarykova univerzita, 2016, disponível em linha aqui 
[7] Coelho, Francisco Adolfo. Os ciganos de Portugal. Lisboa: Imprensa Nacional, 1892, disponível em linha aqui 
[8] Miklosich, Franz von. Über die Mundarten und die Wanderungen der Zigeuner Europa’s. Viena, 1872, disponível em linha aqui 
[9] García de Diego, Vicente. “Dialectalismos” in Revista de Filología Española, tomo III, 1916, disponível em linha aqui
[10] Castro, Adolfo de. Estudios prácticos de buen decir y de arcanidades del habla española. Cádiz: Imp. de la Revista Médica, de D. Federico Joly, 1880, disponível em linha aqui
[11] Montoto y Rautenstrauch, Luis. Un paquete de cartas: de modismos, locuciones, frases hechas, frases proverbiales y frases familiares. Sevilha: [Oficina Tipográfica,] 1888, disponível em linha aqui
[12] Calandrelli, Matías. Diccionario filológico-comparado de la lengua castellana. Buenos Aires: Impr. de M. Biedma é hijo, 1907, disponível em linha aqui

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