02/10/21

Cabeça de porco

Uma vez, no Alto Molócuè, em Moçambique, fiz uma cabeça de xara que ninguém conseguiu comer. A receita era boa. Tinha-ma mandado por carta um amigo meu, porque nessa altura ainda não havia telefone no Alto Molócuè, de maneira que nem pensar em e-mail — que ainda era, aliás, uma coisa rara nessa altura… A receita era boa, dizia eu, mas a carne de porco era tão má, tão má, com um sabor tão forte a bicho, que tivemos de deitar fora a cabeça de xara. Uma pena, enfim, depois do trabalho que me deu...

No ano passado, comprámos meio porco e eu, claro, tinha aproveitar a meia cabeça que ali tinha, mas pensei em fazer desta vez um fromage de tête ou pâté de tête, que é uma cabeça de xara francesa. Não há grande diferença no processo nem no aspeto – até porque o aspeto pode variar muito de uma cabeça de xara para a outra e de um pâté de tête para o outroOs temperos, porém, são diferentes. Aliás, este prato existe em toda a Europa e um pouco por todo o mundo, mas, claro, os ingredientes podem variar de sítio para sítio.

Mais uma excursão, peço desculpa. Voltemos à vaca fria. Ou ao porco frio, seja... Decidi então fazer um fromage de tête, mas apeteceu-me cortar na gordura e à gelatina, e fiz uma coisa praticamente só com carninha. Ficou bem bom, por tal sinal, mas, de aspeto, em vez de pâté de tête, parecia mais rillettes — que não se fazem da cabeça... Com base numa receita do blogue La Bonne Bouffe à Sam, fiz assim: 

Agarrei em meia cabeça de porco limpa e escaldada, salguei-a bem salgada e deixei-a um dia com sal no frigorífico. Depois, passei-a por água para lhe tirar o sal que não tinha sido absorvido, e fervi-a com pouca água, só o suficiente para cobrir a cabeça e os temperos que lhe juntei: uma cenoura, uma cebola, um bocado de rama de alho francês, um talo de aipo, um bolbo de funcho, tudo cortado aos bocados grosseiramente, cerca de um decilitro de vinagre (normalmente, põe-se mais, mas o resto da a malta cá de casa não gosta de coisas avinagradas…) e pimenta, uns cravinhos, salsa e três estrelas de anis – ou três anises-estrelados, que deve ser mais correto. Gostei mesmo muito do conspícuo sabor anisado do pâté, se é que conspícuo de pode usar para sabores, mas também percebe que pode desagradar a muita gente. Vocês verão que temperos querem pôr no caldo…

Depois é deixar cozer muito tempo, juntando água se se tiver evaporado demasiado líquido. Está pronto quando a carne se separar dos ossos. E pronto, passa-se tudo pelo passador, escolhe-se que carne, gorduras e cartilagens se quer aproveitar, cortam-se aos bocados (o tamanho é ao gosto de cada um) e depois põe-se num recipiente e cobre-se com o caldo de cozer, que, entretanto, se reduziu, fervendo-o, pelo menos para metade do que tinha ficado. Este caldo há-se tornar-se geleia depois de arrefecer umas horas num lugar frio (o frigorífico, creio, para a maior parte das pessoas que me leem). Há muitas receitas em que, em vez de se envolver apenas a carne com geleia, se a comprime com um pano. Também fica ao critério de cada um.

Na Dinamarca, o que corresponde à cabeça de xara e ao fromage de tête é uma coisa que se chama sylte. É também parecido no aspeto com as variantes latinas, mas é normalmente mais avinagrado. Aqui perto, há um talho que faz uma sylte deliciosa, que em 2015 ganhou o prémio de melhor sylte da Dinamarca. A sylte deles, curiosamente, também é só carninha, como o meu pâté.

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