30/11/23

Dos anos que passam

Já há muito que se diz que «velhos são os trapos». Dizem-no pessoas que não são consideradas idosas a outras que o são, como forma de exprimir — ou exigir — respeito pelos mais velhos.  

Ouve-se e lê-se também muito, atualmente (e não só dos que não são considerados idosos, mas também dos que o são), que anos são só números e que não tiram a ninguém capacidade e valor; que o que se perdeu, talvez, em genica e agilidade facilmente se compensa com o conhecimento e a sageza que se foi acumulando; que é inadmissível conceber que alguém seja menos capaz, só porque tem muitos anos. Não é para ser desmancha-prazeres, mas essas enlevadas afirmações parecem-me amiúde pouco realistas. 

Christian Seybold, autoretrato aos 66 anos (pormenor), 1761.
Museu do Liechtenstein, daqui
Entro para o mês que vem na idade que, para arrumar legislação e estatísticas, se chama agora terceira: os 65; e o que vejo, em mim e nas pessoas da minha idade ou mais velhas, não são capacidades intactas — nem que só as mentais —, mas antes o inelutável declínio que o tempo traz a todos os bichos — essa necessária decadência que, para bem das espécies e mal dos indivíduos, propicia a morte. 

Sejamos claros: não há atividade mental fora de circuitos nervosos que são tão materiais como músculos, ossos e veias. A partir de um auge breve das capacidades do indivíduo, que se segue à adolescência, tudo no corpo começa lentamente a decair. É um processo lento e não se notam óbvias perdas de capacidade nas quatro décadas seguintes. Depois, sim, essas perdas tornam-se visíveis para quem estiver atento a elas. Podia fazer uma lista detalhada de tudo o que, com a idade, se altera em todos os órgãos, incluindo os do sistema nervoso, mas isso seria para outro tipo de texto e é, além do mais, informação facilmente acessível. Digamos, de uma forma exageradamente simplificada, que o corpo mirra e seca e com ele a mente, que é uma parte desse corpo. 

Pode ser que, nalguns casos, o que se adquiriu de conhecimento de experiência consiga, de facto, cobrir o que se perdeu de agilidade mental e de capacidade de ação e inovação; mas não me parece que o conhecimento se armazene apenas, como se de um tesouro se tratasse, que se possa concluir que quanto mais conhecimento se adquiriu já, mais rica a mente. Uma grande parte do conhecimento é circunstancial e deixa de ter utilidade ou de poder ser aplicado quando mudam as circunstâncias, porque diz respeito a coisas que já não se usam ou já nem existem. Algum conhecimento mais abstrato sem aplicação prática, que tinha a utilidade fundamental de granjear a quem o possuía simpatia, respeito, admiração, ou seja, a criar uma posição na comunidade ou na sociedade, com o que isso implica de poder, perde a sua importância quando essa inserção social está terminada. Evidentemente, pode continuar a funcionar-se relativamente bem nas suas áreas de especialidade, quer se trate de gastronomia, reparação de móveis ou investigação em diabetes. Mas, na grande maioria dos casos, não se deve esperar desse trabalho que, por causa da tal acumulação de experiências e conhecimentos, seja a grande obra da sua vida. 

Adquiriu-se, é verdade, um maior conhecimento dos humanos em geral, que pode servir em muitas ocasiões, mas só conta verdadeiramente aqui como vantagem da experiência a parte desse conhecimento que não implica a cultura, aquilo que dos humanos é determinado por circunstâncias históricas. Porque a diferença de cultura entre pessoas de tempos diferentes é tão grande como a diferença entre pessoas de lugares diferentes — e as gerações mais novas e o seu mundo podem ser estranhos, se não «estrangeiros», para os mais idosos. Para uma grande parte das tarefas da nossa vida, não se pode usar a experiência e o saber adquiridos, mas é antes necessário aprender sempre coisas novas — e aprender é, justamente, uma coisa que um cérebro jovem faz muito melhor.  

Comecei em 2016, com quase 59 anos, um curso de design multimedia. Correu tudo mal e desisti ao fim de um semestre. Evidentemente, era uma área nova para mim e não era «nativo digital» como os meus colegas, que tinham vinte e poucos anos. Mas — não sei se o reconheci na altura, mas é hoje óbvio para mim — também não tinha já a capacidade de aprendizagem e de trabalho que eles tinham. Dois anos depois, comecei o curso de Assistente Social e de Saúde, uma profissão sem correspondência em Portugal — nem em mais nenhum país que conheça —, mas que, para a explicar rapidamente, fica abaixo de enfermeiro e cobre um leque de atividades muito maior, em termos de cuidados, e menor em termos de práticas médicas. Somos, para simplificar, o nível mais baixo de pessoal autorizado de saúde. Aqui sim, tornou-se claro para mim que a minha capacidade de aprendizagem era bem menor do que havia sido. E o mais evidente nem era não me lembrar do que tinha ouvido ou estudado, era a pouca capacidade de aprendizagem de gestos precisos ou rotinas gestuais. Comecei a trabalhar na minha nova profissão aos 63 anos. Espero ser um profissional de saúde razoável, não cometer muitos erros, cumprir os meus deveres. Mas comecei velho demais para poder ser um bom profissional de saúde. 

Uma grande parte da nossa atividade mental é controlo de movimento, não o esqueçamos. (Aliás, é muito provável que os sistemas nervosos se tenham desenvolvido para controlar movimento, antes de mais, e que a sua posterior sofisticação decorra dessa função primária.) E, com o avançar da idade, até coisas aparentemente tão simples como andar, mastigar ou sacudir um pano, que aprendemos a fazer há muito anos e consideramos aprendidas de vez, têm de se reaprender quando se alteram no corpo os músculos, os ossos e o sistema nervoso — e é frequente resultarem problemas, às vezes acidentes graves, da insistência em fazer as coisas como as costumávamos fazer, em vez de aprender novas formas de usar o corpo, que agora é outro.  

O mesmo a mente. Não só temos de fazer listas de compras quando vamos ao supermercado, também pensamos mais devagar e de forma menos eficiente. E como poderia ser de outra maneira?

É certo que, por razões várias, que se prendem com a grandes melhorias das condições de vida (trabalho, alimentação, higiene, etc.), uma grande parte das pessoas da minha idade não estão tão gastas aos 65 anos como estavam as pessoas da mesma idade há 50, 100 ou 500 anos. Mas não deixa de ser verdade, por isso, que qualquer pessoa nessa idade perdeu já uma parte das suas capacidades, como é natural.  

É óbvio que ninguém deve ser maltratado ou rebaixado por causa disso, até porque, na minha perspetiva ética, competências ou capacidades não podem ser condição para se ser respeitado. Mas os anos não são só números. Há números de anos que traduzem — é a sina de todos os seres vivos — uma decadência real. 


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