Como base para a reflexão que vos proponho sobre pensamento
e língua, trago aqui um caso real e muito concreto:
Da primeira vez que tive de lidar com uma ostomia, não tinha
praticamente conhecimentos do assunto. Uma senhora, ex-enfermeira, que há
quatro anos tratava sozinha da sua colostomia, deixou de o conseguir fazer, por causa de um prolapso do estoma e eu fui a casa dela ajudá-la.
Um dos problemas que se colocavam é que era difícil fazer
passar pelo estoma prolapsado um anel antivazamento que tinha de se colocar à
volta do estoma debaixo da placa de base na qual assentava o saco de estomia (a
senhora usava um sistema em que se fixa o saco sobre uma placa, clicando-o).
Como o prolapso se dilatava na sua parte central, sendo aí mais largo que este
anel, o anel provavelmente irritaria as paredes do prolapso durante esta
operação. Também a abertura do orifício da placa por onde o estoma tinha de
passar tinha de ser maior que o habitual, por causa desta dilatação de uma
parte do prolapso. Mas há um limite das aberturas disponíveis. Estas aberturas
ajustam-se manualmente, com uma tesoura, mas não se podia fazer uma abertura
muito larga, pelo menos nas placas que ela tinha em casa, de maneira que havia
o mesmo problema em relação ao orifício da placa que ao anel antivazamento que
lhe subjazia. Uma solução era usar um
saco de plástico, um pouco como um «preservativo», que ajudasse o prolapso a
deslizar pelo anel e pelo orifício da bolsa. Também havia a questão de que o
prolapso quase enchia o saco e deixava pouco espaço para as fezes, de maneira
que havia de o esvaziar ou mudar mais assiduamente que o normal.
Demorei muito tempo a escrever o parágrafo anterior, porque
desconhecia os termos relacionados com ostomia e tive de os procurar todos. E estou convencido de que, para quem
não tenha lidado com ostomias (e não tenha visto um prolapso grande, talvez...),
é muito difícil, se não mesmo impossível, compreender ao certo de que estou a
falar.
Agora, notem que, durante o trabalho de mudança da bolsa e
depois dele, tive de refletir sobre toda a situação. E não tive problema nenhum
em fazê-lo. Quando se tratou de documentar o sucedido no jornal do paciente,
porém, não fui capaz de fazer uma descrição adequada. Limitei-me a uma
descrição tão sucinta que era desinteressante, porque não tinha, em
dinamarquês, as palavras que agora me faltaram também em português para escrever este texto, antes de ir
à procura delas.
Como refleti sobre o que acima descrevo? Uma possibilidade é
que as imagens (um filme mental, vá) tenham tido um papel fundamental nessa reflexão.
Parece fazer sentido. Mas não sei. Acho que nunca sabemos como pensamos. A pura
observação, o filme mental sem mais, não é exatamente uma reflexão. Não tem apreciações,
revisão de possibilidades, hipóteses, nada dessas coisas. Não podem servir de
base a coisas como des/acordo e intenção. Diferentes pessoas dão conta de
formas diferentes de pensar: alguns dizem ter um permanente monólogo
interno, dizem que pensam com palavras; outros dizem não pensar dessa maneira,
mas antes de uma forma abstrata, sem palavras e sem imagens, e ter apenas
monólogo interno quando conscientemente o querem ter ou quando pensam em
conversas ou discursos. É o meu caso. Há
quem proponha a existência de uma língua para pensar, o «mentalês», que depois
é lexicalizado para a comunicação nas línguas que falamos— ou seja, pensamos
primeiro em abstrato e juntamos depois palavras ao que pensámos[1]. Talvez
pensemos com uma meia dúzia de operações ou conceitos simples, que se podem
juntar em proposições complexas que se encadeiam com outras proposições. Mas
talvez não seja nada disso. A verdade é que não temos acesso a essa parte da
nossa atividade mental. Se pensamos todos da mesma maneira, porém — e porque
não havíamos de o fazer, se temos todos as mesmas estruturas cerebrais? — não é
(só?) com palavras e imagens.
Não encontro nenhuma evidência convincente de que sejam
precisas palavras para pensar. Pessoas sem palavras pensam, e não só as
crianças que ainda não falam (já aqui falei disto uma vez): os surdos pensam antes de aprender uma língua por escrito ou gestualidade, se a
aprendem. O que me parece observável é antes que as palavras são precisas para
dizer coisas — seja para as exprimir apenas, seja para as comunicar a outras
pessoas. Neste último caso, é preciso que as pessoas com quem se comunica
conheçam também as palavras necessárias. Tudo isto é perfeitamente banal e, se aqui
o escrevo, é só para insistir em contrariar o repetido mantra de que são
precisas palavras para pensar.
(Podia ir mais longe. Há até casos (muito raros…) de coisas em
que ninguém tem palavras para pensar, nem provavelmente língua em geral, mas em
que muitas pessoas pensam, como é o caso da física quântica. Todos os
enunciados de todas as línguas incluem forçosamente categorias como tempo e
aspeto, e relações de causalidade, entre outras coisas, que são inadequadas
para pensar em certos fenómenos de física quântica. Só se os pode pensar com fórmulas matemáticas e modelos gráficos, mas não com uma língua natural[2])
_______________
[1] Uma boa introdução à hipótese da língua de pensamento (mentalês), de William of Ockham a Jerry Fodor — e muitos mais —, na Stanford Encyclopedia of Philosophy
[2] São um bocado irritantes, convenhamos, as muitas pseudodescrições que por aí circulam dos fenómenos quânticos e da sua pretensa aplicação «filosófica» a teorias do mundo e da vida em geral, se se pode dizer assim, por gente que efetivamente não compreende a matemática que os justifica. Mas isso é outra conversa…
Sem comentários:
Enviar um comentário