25/12/23

Um Natal amazónico


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O Beni. Dizem que a parte boliviana da Amazónia é das mais bem preservadas, mas não sei se é verdade.
[Do que me fui ontem lembrar!... Um texto de abril de 2001, agora revisto e aumentado, em que descrevo muito sucintamente uma pequena aventura passada quatro meses antes e que se prolongou dois meses (acho que se pode dizer assim...). Vivia nessa altura em Camargo, no sul da Bolívia.] 


Fomos passar as férias de Natal a uma vilazinha chamada Rurrenabaque, a cerca de uma hora de avião de La Paz. A vila tem uma situação privilegiada, à beira de um dos maiores rios da região, o Beni, e ali mesmo onde acabam os Andes e começa a mata amazónica. 

Como não podia deixar de ser, fomos fazer uma pequena excursão pela selva. É o chamado turismo de aventura: mochilas, catanas, latas de conserva e um guia, e seja o que Deus quiser. Uma lancha leva-nos até à entrada da selva, andamos por ali dois dias, depois fazemos uma jangada e descemos um rio mais dois dias, e, ao quinto dia, vem a lancha buscar-nos outra vez. Não vos vou contar agora aqui a história toda, mas apenas as curiosidades: 

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A mata amazónica: uma colagem de fotos
Passámos a noite de Natal no meio da selva. Árvores de Natal, ena!, eram às centenas, aos milhares, aos milhões, eu sei lá!... A ceia de Natal consistiu numa mistura de várias latas de conservas – uma mixórdia, mas ainda assim não no pior sentido do termo, valha-nos o menino Jesus! –, com arrozinho de tacho a acompanhar! Ah, mas tivemos direito a macedónia de fruta (de conserva...) para a sobremesa, por ser Natal! Foi pena que a consoada tivesse sido curta, mas o facto é que já não aguentávamos os insetos, que eram tantos como as árvores de Natal, e por essas oito e meia da noite já estávamos metidos debaixo dos mosquiteiros, a ver se conseguíamos dormir. 

Dizem que cada Natal é um milagre, seja na selva ou no aconchego do lar, e este não foi exceção – os macacos uivadores entoavam a várias vozes o Green Christmas do King Brosby, se não com a mesma sensualidade, pelo menos com a mesma devoção; e, lá ao longe, jaguares, tapires e porcos do mato tinham-se juntado para, num concerto único, nos oferecerem a sua versão do célebre hino natalício Jungle Bells! E nem um pinguinha de rum para beber... 

No meio da selva, tive uma revelação. Muitas vezes me tinha perguntado a mim próprio porque é que haveria, à chegada dos Europeus, muito mais gente nas terras altas do que nas zonas tropicais da América Latina, sobretudo quando a vida nas terras alta é tão difícil. Descobri nessa altura. É por causa dos malvados dos bichos! Não pensem que chamar à selva «o inferno verde» é alguma imagem literária. Nada, é tão literal que faz confusão. Confusão, comichão, dores, tudo! São milhares de insetos em cima de uma pessoa de manhã à noite – moscas, mosquitos, moscardos, abelhas, vespas abelhudas, formiguinhas, formigas encarnadas, formigas gigantes, ai!!! 

E o marigüí. O marigüí, pica aqui e pica ali, é uma espécie de vampiro em miniatura da família dos mosquitos. Quando o minúsculo safado morde, não se sente nada. Só se vê um ponto de sangue, mas não se sente nada. Nem passadas umas horas, nem passado um dia. Ao segundo dia, começa a comichão. As picadas são tantas dezenas que o veneno é mais do que o corpo aguenta sem refilar: as mãos incham, as pernas incham, começam a aparecer manchas vermelhas aqui e ali. Por curiosidade, a Karen contou, ao sairmos da selva, as picadas só da minha mão direita: 147!  

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À esquerda, a Karen e o nosso guia. Na imagem seguinte, eu e um pacu que pescámos e que nos soube muito bem. O pacu é um peixe estranho, porque tem dentes de pessoa. À direita, picadas e inchaços.
Trouxemos dois recuerdos da mata amazónica. Nem macacos, nem araras, nada disso: puchichis. Puchichi significa apenas «furúnculo», mas era assim que os colegas da Karen chamavam às larvas que trazíamos no corpo. Eram muito provavelmente larvas de Dermatobia hominis, um tipo de mosca que se entretém a pôr ovos nas pessoas. Dos ovos, é claro, saem párvulas lárvulas, a quem, de acordo com as kafkianas leis da metamorfose, não resta senão transformarem-se outra vez em moscas. As nossas alarves larvas não chegaram à última fase, mas ainda nos moeram bastante o juízo durante dois mesitos.
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A larva que estava nas costas da Karen
Eu tinha o meu bicho no dedo pequenino do pé direito, e a Karen o dela nas costas, do lado direito, à altura da omoplata. O meu saiu primeiro, a 11 de Fevereiro, morto e pequenino, depois de inúmeros banhos de pés com água muito quente e muito sabão. Teria um centímetro, se tanto, e parecia um bicho da fruta. 

O da Karen foi mais difícil. Todas as noites, antes de nos deitarmos, eu via-o vir espreitar cá fora, mas nunca o consegui agarrar. Tentava com uma pinça, mas nada, era mais rápido que eu. Era grande e forte, o velhaco. Fizemos então como nos aconselharam os colegas da Karen que tinham vivido na parte tropical da Bolívia e conheciam o parasita. Pusemos beatas de cigarros num bocadinho de água e, com um algodão, deitámos daquela água com nicotina para dentro do buraco do parasita. Deve ter ficado entorpecido, porque depois foi fácil apanhá-lo com a pinça. Tinha cerca de três centímetros de comprimento por meio centímetro de espessura – uma coisa bastante repulsiva!...  

O que é interessante é que as feridas fecham imediatamente depois de o bicho sair – no dia seguinte, já não estava lá nada. Pensámos que o parasita deve ter algum tipo de desinfetante que vai limpando a carne onde está alojado, porque não deve querer viver no meio de uma ferida infetada…

P.S.: As entradas Dermatobia hominis  da Wikipédia em espanhol e em português dizem também que, no estado larvar, o animal produz um antibiótico que previne infeções no hóspede enquanto se alimenta. Mas não citam fontes, de maneira que é capaz de ser alguém a
especular apenas como nós especulámos na altura, sem ter prova nenhuma do que está a dizer.  


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