02/02/24

Falsas etimologias, tascas e pancadarias


A expressão etimologia popular cobre dois fenómenos diferentes: um é uma reinterpretação de uma palavra, com base no que se intui ser a sua origem, devido à semelhança sonora com outras palavras; outro é a proposta de uma etimologia com base apenas na semelhança da forma atual de duas palavras. Um exemplo do primeiro fenómeno é praiamar: pre(i)a, que significava «cheia»*, caiu em desuso e essa parte da palavra foi reinterpretada como praia, que, ainda por cima tem uma relação semântica com mar. Um exemplo do segundo é propor que alçapão vem de alçar o pão (explicando, por exemplo, que o pão se guardava nas caves ou algo do estilo…), quando de facto vem de alça-põe, «sobe-desce», com o verbo pôr no sentido de «descer», como em «O sol põe-se hoje às 16:53». 

Há gente que, sem conhecimentos nenhuns de língua nem da sua história, se entretém a atribuir origens comuns a palavras sem nenhuma relação etimológica entre elas e dar grandes significados a essas relações. Há quem diga, por exemplo, que, com rigor, só se pode falar de indígenas quando se fala das pessoas ou coisas originárias da Índia, quando a origem de indígena não tem nada a ver com Índia. OU que diz que lei marcial vem do nome de um general, Marshall, que foi quem primeiro a instituiu. E eu pergunto sempre a esses pessoas porque é que, em vez de se porem a inventar, não vão antes ver o que dizem as pessoas que, ao contrário delas, passaram a vida a estudar estas coisas. 

Até porque, mesmo não tendo tendência para o delírio e sabendo alguma coisa de língua, é preciso ter sempre muito cuidado com as intuições sobre etimologia. Qualquer pessoa de bom senso pode supor, por exemplo, que os verbos derivados do verbo latino habere, como o haver português, o haber espanhol, o avoir francês e o avere italiano, entre muitos outros, teriam o mesmo étimo indo-europeu que os verbos germânicos como have em inglês e dinamarquês, hebben em neerlandês e haben em alemão, que significam basicamente o mesmo. Mas não: o verbo latino com a mesma origem destes verbos germânicos é capere, que deu o nosso caber; o habere latino tem outra origem.

Tudo isto para introduzir mais um caso curioso de etimologia, que acabo de descobrir, e, a reboque desse caso, a origem da palavra tasca.

Foto: Neil Palmer, Debulha, perto de Sangrur, no Punjab, Índia. Novembro de 2011
Wikimedia Commons, daqui.
Em dinamarquês, «tareia» diz-se tæsk ou tærsk e «dar uma tareia» é tæske ou tærske — com R ou sem R, mas a forma mais antiga parece ser a forma com R. A palavra também quer dizer «malhar, debulhar (os cereais)» e é obviamente esse o significado primeiro do qual decorre o de «dar uma tareia», porque os cereais debulham-se à pancada. No fundo, tærske é como malhar em português, que também tem os dois significados. O termo é cognato das palavras inglesas thresh e thrash. Em inglês moderno, thresh significa «debulhar» e thrash, embora também possa significar o mesmo, usa-se mais para «dar uma tareia». Houve ali uma vogal que se dividiu em duas para distinguir dois significados.  

Ora em português e castelhano existem também tascar para bater o linho ou o cânhamo e tasca/tasco, para referir a espadela que se usa para esse fim. Convenhamos que tanto as formas das palavras como o significado são muito próximos dos termos germânicos referidos no parágrafo anterior. Mas não será só uma coincidência? É bem capaz. A etimologia é discutida: Coromines propõe uma origem celta, taskós, «estaca, pau»**; a Real Academia propõe uma possível origem gótica, um hipotético taskōn. Evidentemente, uma eventual origem gótica poderia levar-nos a supor uma origem comum com os verbos germânicos para «malhar, debulhar». Mas, nunca destes, e por muitos que gastássemos que fosse verdadeira esta relação, o mais prudente é dar a origem por incerta  — ou obscura, como o fazem o Porto Editora e o ACL.

Não surpreende que o significado das palavras da família do tascar ibérico também tenha evoluído para «pancadaria»: Corominas refere tasquera, atestado em 1626,«alteração, disputa, rixa» e tasca, atestado ainda antes, em 1609, também com esse significado e que evoluiu para «taberna» de uma forma perfeitamente compreensível: primeiro significava o banzé, depois passou a significar o sítio onde se armava o banzé**



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* Prea/preia vem de plena-, tal como cheia. O antigo género feminino de mar pode surpreender, mas ainda assim pode ser em castelhano e é assim em francês. Esta divergência de uma palavra com pl- inicial é a mesma que encontramos em prato e chato, ambos de plattu-. 

**Para as referências a Coromines, ver a entrada tascar no Breve Diccionário Etimológico de la Lingua Castelhana, que se pode encontra aqui. (De nada!)


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