Lembro-me de alguém me contar — já não me lembro é quem foi… — que a sua mãe, quando estava grávida, tinha desejos de fígado cru — o que, segundo essa pessoa, nem devia espantar ninguém, porque o fígado era dos alimentos mais saudáveis que se podia comer. Mas cru? Porque não?
Ficou-me sempre na memória o louvor de um repasto de fígado cru de antílope que Rider Haggard faz em As Minas de Salomão, pela voz de Allan Quatermain, narrador e protagonista desse matricial romance de aventuras (deixo aqui a tradução de Eça de Queirós, com grafia original[1], para dar ainda mais exotismo a tão exótica passagem):Andada uma milha, que nos levou muito tempo, chegámos emfim á extremidade do planalto do monte sobre o qual assentava o «bico do peito». E foi uma grande emoção. Por baixo de nós, adiante de nós, estava (devia estar) emfim essa região mysteriosa para além das serras, que nós vinhamos demandando:—mas toda ella se occultava sob um denso nevoeiro. Alli ficámos pois repousando, esperando. Pouco a pouco, as camadas mais altas da nevoa foram-se desfazendo. Avistámos então um pendor da serra, muito dôce e todo coberto de neve. Depois outras camadas de nevoeiro mais abaixo clarearam; e appareceu aos nossos olhos famintos uma campina de herva verde, um regato correndo através, e á beira d’agua, deitados ou pastando, uns dez ou doze animaes que nos pareceram antilopes.
A nossa alegria foi como a d’uma resurreição. Caça! Alli estava caça para comer, e deliciosa! Era a salvação, era a vida! A difficuldade era caçar—essa caça!... Lembro-me que no nosso immenso alvoroço tivemos uma rapida e atarantada discussão, em voz baixa e tremula—se deviamos aproximar-nos da caça ou fazer fogo d’alli, se deviamos usar as carabinas Winchester ou a «Express»! Indecisão terrivel—porque de acertar ou falhar dependiam as nossas vidas. Fui eu por fim que me decidi. Se tentassemos atravessar o pendor de neve, podiamos espantar o rebanho. E a carabina «Express», apesar d’um alcance inferior, era preferivel—porque as balas explosivas mais facilmente apanhariam algum dos antilopes.Emfim fizemos fogo, todos a um tempo, com um estampido que rolou tremendamente nas quebradas dos montes. O fumo clareou. E eis que, alegria sem par! —vemos um dos animaes por terra esperneando furiosamente. Berrámos de puro gozo. Estavamos salvos! Salvos! De fome já não morriamos! Corremos aos trambulhões pela neve abaixo—e em poucos momentos tinhamos nas mãos os figados e o coração do animal, quentes e fumegando!
Mas surgia uma difficuldade. Sem lenha, sem lume, como assar a caça?— Gente faminta não tem exigencias! Gritou excitadamente o capitão John. A ella, e crúa!
Não restava outra solução—e não nos pareceu repugnante. Arrefecemos as visceras na neve, lavámol-as na agua corrente—e devorámol-as com voracidade! Parece horrivel—mas confesso que aquella carne crúa me soube divinamente! D’ahi a um quarto de hora, que mudança! Voltára-nos a vida, o vigor! O pulso batia outra vez, forte e regular. Eu por mim sentia positivamente o sangue degelar-se, correr-me dentro das veias!
Ao que parece, o consumo de fígado cru tornou-se uma moda nos últimos tempos, devido, sobretudo, à promoção que dele fazem alguns influencers, mas, se é verdade que o fígado é um alimento rico em vitaminas e minerais que não se encontram frequentemente em muitas dietas, também é verdade que o seu consumo regular pode resultar em perigos para a saúde — e não só os que advêm do consumo de qualquer carne crua (ver o que explica sobre o tema uma dietista [em inglês]). Em geral, os médicos aconselham moderação no consumo de fígado.
Fígado à berlinense. Wikimedia Commons, daqui. |
Tenho, aliás, a ideia — perfeitamente incomprovada, note-se — que, à medida que uma sociedade vai enriquecendo, as gorduras e as vísceras dos animais vão progressivamente sendo substituídas por carne limpa. Talvez seja só uma impressão minha, mas não me parece que seja só aqui na Dinamarca que as gerações mais jovens que a minha deixaram de comer vísceras e toucinhos. Creio que se passa o mesmo em todos os países mais ricos. Os pratos tradicionais com vísceras, que existem em todo o lado, comem-se cada vez menos. Em Portugal, quem — e onde — come hoje coiratos, rins e fressura? Quem é que come iscas hoje em dia, mesmo em Lisboa, onde podem ser consideradas um dos poucos pratos típicos da cidade?
E eis-nos chegados às iscas lisboetas, que foram a motivação primeira deste texto, antes de ele, por sua própria vontade, se ter alargado, e muito, a outros fígados. E a ideia de explorar o tema das iscas veio- me de um fado: o «Fado das Iscas», que conheço desde miúdo e que me veio no outro dia à memória:No tempo das patuscadas
Das guitarras e touradasDas hortas, do carrascão
Eram as iscas o pratoDe mais consumo e barato
Na vida dum cidadão
E ninguém se envergonhava
Toda a gente que passavaEntrava nessas vielas
Sentia-se a gente bemSendo simples, um vintém
Trinta réis se eram com elas
Se ao longe vinha um parceiro
E o cheirinho lhes sentiaAté mesmo apetecia
Comê-las só p'lo cheiroE a sua fama foi tal;
O povo então era vê-lo:Travessa do Cotovelo
E Rua do Arsenal
Hoje tudo isso mudou
A taberninha acabouDesapareceram os becos
Os cocheiros são choferesVigaristas suteneres
E os casqueiros papo-secos
Se os meninos odaliscas
Comessem um prato d'iscasDaquelas bem temperadas
Morriam de indigestãoNão bebendo um garrafão
D'água das Pedras Salgadas
É claro, não sabia a letra toda de cor. Ao procurá-la na internet, descobri, num blogue indispensável a quem se interesse pelo fado clássico, que este «Fado das Iscas» tem letra de José de Oliveira Cosme e música de Jaime Mendes e foi criação de Álvaro Pereira na revista Coração Português em 1928. Aqui fica uma gravação de Álvaro Pereira de 1962.
Ao pesquisar este fado, encontrei no mesmo blogue outro fado com o mesmo tema — e o mesmo título. Trata-se de um fado de Lourenço Rodrigues e Raúl Ferrão, cantado por Hermínia Silva, que o estreou na revista Iscas com Elas, precisamente, em 1938 (aqui, numa gravação de 1957).
Como veem, este fado faz também referência à Rua do Arsenal, referindo até o nome de um restaurante — ou do seu proprietário: o Alvarez. Mas, segundo este fado, as iscas não se comiam só no Cais do Sodré — também no Bairro Alto, na Rua da Atalaia — e na Travessa da Queimada, se o Alfaia daquela altura era o mesmo que há hoje. A informação sobre o preço das iscas coincide, no fado da Hermínia, com a do fado de Álvaro Pereira: um vintém só as iscas, 30 réis com batatas. Pelos vistos, os preços mantiveram-se estáveis nos dez anos que separam os dois fados.Noutros tempos da ramboia
Metia sempre tipoiaOs tascos tinham beleza
Davam gosto as berzundelasCom conserva à portuguesa
E as belas iscas com elasAs iscas sabiam bem
Sem elas era um vintém
Quando metia batatasTrinta reis era um pratinho;
E um tipo nessas frescatasEnchia sempre o papinho
Belas iscas do Alfaia
E da Rua da Atalaia
Era um petisco burguêsTinha um sabor sem igual
Comido no AlvarezDa Rua do Arsenal
Uma isquinha a preceito
Chega a fazer bem ao peito
Aquele cheirinho a iscaAté regala os mortais
A gente quando a petiscaAi, no fim chora por mais
Ouvi falar várias vezes de restaurantes de iscas do Bairro Alto, e, por curiosidade, resolvi investigar se era verdade o que me tinham contado: que os pratos estava pregados às mesas e os talheres também presos com correntes; e que o empregado vinha com um balde de água e um pano para os lavar e depois com uma panela de iscas para o encher para o cliente seguinte — uma história que me sempre me pareceu algo fantasiosa.
Descobri então na Internet um texto imprescindível para todos os iscófilos: As Iscas com Elas ou Iscas à Portuguesa, Património, Gastronomia e Turismo em Lisboa, de Pedro Manuel Pereira da Silva, uma tese de mestrado em Antropologia do Turismo e Património. E esta tese, inclui, entre muitas outras informações interessantes, um texto do jornalista e dramaturgo Eduardo Fernandes (1870-1949), que assinava Esculápio. Chama-se o texto «Petisquinhos de Lisboa» e é de 1941.Começarei pelas iscas, as saborosas iscas com elas e semelas. Semelas porque, em certas tascas, o letreiro que as anunciava juntava as palavras sem e elas numa só. Custavam um vintém sem elas, e trinta réis com elas, ou seja com batatas cozidas e cortadas às rodas, que lhes davam um sabor particular (…) O galego que confeccionava o fígado (…) de que se faziam as iscas, armado de uma faca enorme e espalmada como as que os judeus empregam para imolar as reses no matadouro, sabia cortá-lo em folhas de uma espessura transparente, com grande perícia e habilidade, espalmando a mão esquerda sobre o fígado sanguinolento e abrindo-o finamente com o facalhão. As iscas transitavam deste para um alguidarão onde tinham previamente feito o escabeche, ou salmoura de vinagre, raspas de baço, alho, louro, sal e pimenta e outros ingredientes e temperos, ficando ali a aboborar largo tempo, tapado o alguidar com uma tampa de madeira e movido o seu conteúdo, de quando em quando, com um enorme e comprido garfo de ferro, que servia para arremessar depois as iscas à frigideira sobre a banha de porco que fervia. A banha, tinha-a o galego perto, em grandes boiões de barro, de onde a extraía com uma monstruosa colher de pau, às vezes até só com os dedos, e a frigideira só lá de tempos a tempos se lavava, acumulando os resíduos das iscas de muitos meses, que vinham a dar o seu particular às iscas que começavam a ferver e eram, depois passadas no riquíssimo e apetitoso molho, estiradas com o citado garfo no pratinho, depois de reduzidas na frigideira, com o mesmo garfo, a exíguas dimensões. As batatas estavam cortadas à parte, no tacho onde haviam sido cozidas, e eram espalhadas à mão sobre o pratinho.
- Mais uma com elas! Bai um de conserva! - Gritava o criado, no meio dos fregueses, em mangas de camisa, grandes sapatorros, sem gravata e com um barretinho de cores enfiado no alto da cabeça.- Bai! Bai! - Respondia o cozinheiro retirando as iscas do alguidar para as levar à frigideira (…).
Ninguém as comia em família com mais gosto, e só os galegos lhes davam aquele precioso tique saboroso que apenas tinha como rival o cheiro particular do petisco, o qual atulhava as ventas do freguês e o atraía ao antro, lá de longe, visto que as vizinhanças da tasca se impregnavam do mágico odor a que ninguém resistia. A casa das iscas era manhosa e acanhada, com os seus bancos corridos e mesas de madeira, às vezes sem toalha, e os garfos pendiam, em algumas delas, de correntes que os ligavam às mesas, não fossem os fregueses safar-se com eles após o repasto.
Parece então que os pratos pregados à mesa lavados in loco surgem do exagero próprio dos mitos, mas os talheres presos com correntes são históricos. Pedro Manuel Pereira da Silva dá também informação mais detalhada sobre a localização dessas casas das iscas:
Na esmagadora maioria dos casos, as ditas Casas das Iscas estavam dispersas por toda a cidade (...). Algumas destas casas tornaram-se muito afamadas, como é o caso do Marreco das Iscas ao Salitre, junto ao Teatro Variedades, a Magina, às Portas de Santo Antão, ou a da Travessa do Cotovelo na esquina com a Rua do Arsenal, onde as Iscas (também designadas em calão de pelintras como «bifes de cabeça chata» ou «bifes sombrios») eram comidas de pé ao balcão e sem garfo, à maneira do moderno prego ou bifana, ou a da Travessa de S. Domingos e da Travessa da Queimada no Bairro Alto e eram geridas por trabalhadores da Galiza. Os galegos, com seu ar rústico, o seu estilo despachado e a sua pronúncia carregada, eram conhecidos por serem de entre as comunidades da capital aquela que se dedicava aos trabalhos mais pesados como moços de fretes, aguadeiros ou proprietários e empregados das denominadas Casas das Iscas. De acordo com o jornal Diário de Lisboa de 22 de Abril de 1944, a última Casa das Iscas a funcionar em Lisboa, na Travessa da Água em Flor nº 165, no Bairro Alto, fechou as portas em 1943, tendo o edifício sido posteriormente demolido.
Fiquei também a saber, à leitura do texto de Pedro Manuel Pereira da Silva, que as iscas vieram substituir a anterior chanfana, que não era o que hoje se conhece com esse nome na Beira, mas antes fressura preparada sensivelmente como as iscas vieram depois a ser preparadas e que era, no séc. XVIII, um prato muito consumido em Lisboa. Eis como Nicolau Tolentino descreve essa chanfana[2]:
«Perguntando o Príncipe do Brasil D. José — Que cousa era chanfana?»Mas deixemos esse sarapatel e voltemos aos fígados. A minha experiência é que não há maneira de tirar ao fígado o sabor a fígado, a não ser misturando-o com tanto toucinho ou carne de porco e outros ingredientes que o fígado se torne minoritário, como nos pâtés e terrinas. E mesmo assim… Cá em casa, ninguém, tirando eu, gosta de fígado; e têm sido bastante vãos os meus esforços de lhe disfarçar o sabor do fígado com caris e molhos... Pessoalmente, se o fígado é bom, nem é preparado à portuguesa que mais gosto dele: prefiro-o cortado em fatias de uns dois centímetros de largura, só temperadas com sal e pimenta e salteadas em manteiga — tendo o cuidado de deixar a carne rosada no meio! — e salpicadas no fim com alho picado muito fininho (espremido no espremedor de alho) e umas gotas de vinho da Madeira só um meio minutinho antes de as tirar do lume.Comprada em asqueroso matadoiro
Sanguinosa forçura, quente, e inteira,
E cortada por gorda taverneira,Cujo cachaço adorna um cordão d'oiro;
Cabeças de alho com vinagre e loiro,
E alguns carvões, que saltam da fogueira,
Fervendo tudo em vasta frigideira,C'os indigestos figados de touro;
Suavissimo cheiro, o qual augura
Grato manjar, mas que por causa justa
Dá um sabor, que nem o dêmo o atura;
Isto é chanfana, e sei quanto ella custa;
Deu-me o berço, dar-me-hia a sepultura,A não valer-me a vossa mão augusta.
E sobre fígado, por agora é tudo.
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[1] De facto, é uma tradução tão livre que talvez seja melhor chamar-lhe reescrita. Não sofre, pelo menos, de um mal comum das traduções, o excesso de «apego» ao original — e nem de deselegância. Um exemplo, só para verem onde quero chegar:Here again was a question. The Winchester repeaters—of which we had two, Umbopa carrying poor Ventvögel’s as well as his own—were sighted up to a thousand yards, whereas the expresses were only sighted to three hundred and fifty, beyond which distance shooting with them was more or less guess-work. On the other hand, if they did hit, the express bullets, being “expanding,” were much more likely to bring the game down. It was a knotty point, but I made up my mind that we must risk it and use the expresses.
Lembro-me que no nosso immenso alvoroço tivemos uma rapida e atarantada discussão, em voz baixa e tremula—se deviamos aproximar-nos da caça ou fazer fogo d’alli, se deviamos usar as carabinas Winchester ou a «Express»! Indecisão terrivel—porque de acertar ou falhar dependiam as nossas vidas. Fui eu por fim que me decidi. Se tentassemos atravessar o pendor de neve, podiamos espantar o rebanho. E a carabina «Express», apesar d’um alcance inferior, era preferivel—porque as balas explosivas mais facilmente apanhariam algum dos antilopes.
[2] Podem ler aqui outras descrições dessa mesma chanfana por Bocage e outros poetas da época.
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