27/06/24

No início era o movimento… e o espaço

 

Os sistemas nervosos não surgiram para que, um dia, uma das espécies que os possui concebesse o modelo padrão da física de partículas. É claro, não há nenhum consenso sobre a razão do surgimento dos sistemas nervosos ou do seu desenvolvimento, mas uma das hipóteses mais aceites é que surgiram para controlar movimento, com o que isso implica, claro está, de orientação espacial. Seja como for, e independentemente da razão por que tenham surgido, controlo de movimento e orientação espacial são, sem dúvida, duas das suas funções principais — mesmo em sistemas nervosos tão complexos como o nosso…

Agora, o surgimento e evolução dos sistemas nervosos não é área da minha especialidade e não é bem este tema que quero aqui discutir. A minha intenção é bem mais simples. É sublinhar que a criação de significado na língua — um produto complexíssimo do mais complexo nervoso que conhecemos — parece dar conta do papel primordial do movimento e do que mais diretamente com ele se relaciona, o espaço e a orientação espacial, na nossa atividade conceptual.

«O que é que anda a ler?»
Gravura de JT Smith, 1815. Creative Commons Attribution, daqui
Já alguma vez repararam na quantidade de palavras para designar conceitos abstratos que são de facto metáforas espaciais? Dizemos que a temperatura subiu muito, que o império romano caiu, que alguém anda um pouco em baixo, fazemos planos para as férias, falamos de pessoas retas… Muitas vezes, como nestes dois últimos exemplos, provavelmente nem nos apercebemos de que estamos a usar metáforas espaciais, porque a metáfora foi criada há muito tempo e aprendemos a aceitar o sentido «literal» e o sentido «figurado» como palavras essencialmente diferentes. Avançar, recuar, prosseguir, regredirevoluir, por exemplo, são também termos originalmente espaciais que produziram significados não espaciais, mas talvez não nos apercebamos disso. Há casos, até, em que a ideia de metáfora espacial não nos vem sequer à cabeça, como, por exemplo, supérfluo, que significa originalmente, em latim, «o que transborda, o que vem por fora», significado que nunca chegou até nós. Uma palavra como antes, que hoje tem tantos significados (de tempo, espaço, preferência) tem, no seu étimo indo-europeu, um significado espacial. O mesmo, muito provavelmente, palavras como com ou porém.  É claro, quando digo metáfora espacial, estou a pressupor que o significado primeiro é o espacial, que é dos conceitos espaciais que derivam os outros conceitos — ou, pelo menos a sua expressão. Mas será mesmo assim? Bom, as consultas etimológicas que tenho feito levam-me a crer que sim, que o significado original dos termos referidos é de facto espacial. 

Estas metáforas são especialmente fáceis de observar no domínio do tempo. Não é disparatado pensar que, antes de se «conceberem» a viajar pelo tempo, os sistemas nervosos se conceberam como viajando no espaço. E na língua — e talvez na organização conceptual da mente, se aceitarmos que, possivelmente, a linguagem a reflete — são também metáforas espaciais que se usam para a expressão (para a organização mental?) do tempo. Dizemos: «Vou fazer o jantar», «Ando a ler um livro muito interessante», «Ela tem um percurso de vida fora do vulgar», «Ele entrou nessa altura», «O jogo começa daqui a duas horas», «O tempo passa depressa» e «Passei a manhã a dormir», «Como vai a vida?», «O exame correu-me bem, «A festa prolonga-se pela noite fora (ou dentro)», etc., etc. Aliás, nem estou a ver muitos termos para a passagem do tempo que não tenham simultaneamente um significado espacial… Mesmo decorrer e transcorrer são originalmente verbos de movimento espacial, por muito que tenham perdido esse significado em português atual. Porque será? Bom, muitos conceitos abstratos são referidos com metáforas de coisas materiais: base, cerne, marco, coração, raízes…, a lista é muito extensa… Talvez se possa considerar que tempo, é, para a mente humana, mais abstrato que o espaço, porque não se vê e porque — voltamos ao princípio — a nossa mente não se desenvolveu para o navegarmos como navegamos o espaço: estamos nele, mas não podemos decidir se avançamos ou recuamos e se mais ou menos depressa*. Talvez seja por isso. 

P. S. Há também estudos que apontam para que metáforas espaciais não expressas linguisticamente funcionem também na nossa mente para conceptualizarmos não só o tempo (as linhas temporais são representadas orientadas da esquerda para a direita), mas também a quantidade, a semelhança, a frequência fundamental de um som e o valor afetivo. Alto é bom, por exemplo, e direita também é bom — para os destros…** É, em suma, um domínio fascinante de reflexão e investigação.

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* Dedre Gentner resume aqui esta questão, referindo também outros estudos sobre o assunto. O artigo faz também um bom resumo da questão das metáforas espaciais na conceção do tempo.

** Ver resumo da questão e referência bibliográficas por exemplo neste artigo de B. Pitt e D. Casasanto (2021) 


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