13/12/25

Duas aversões a… versões


Parece-me pacífico afirmar que as canções, como todas as obras de arte, têm sempre uma existência independente do que delas quis quem as criou. O mais que os seus autores podem é estabelecer algumas restrições a essa vida própria que as canções ganham. Um músico e/ou um letrista podem, por exemplo, proibir as suas músicas ou as canções de serem usadas numa campanha política ou publicitária. E acho muito bem. Mas ninguém pode proibir, também por exemplo, que a sua música seja utilizada como música de fundo em lugares públicos, por muito que ache que essa utilização constitua uma violação fundamental do seu projeto artístico. Quer dizer, não sei se tem a capacidade legal de o proibir, mas é uma proibição sem possibilidade de controlo e, por isso, sem possibilidade de penalidade, pelo que não chega a ser proibição nenhuma.

Pode também discutir-se, claro está, se um autor deve poder condicionar a forma como as suas obras hão de chegar a quem as recebe; ou se as adaptações da sua obra, de formas que ele não pode prever, não constituem um natural enriquecimento da sua obra. Etc. O facto é que a legislação em vigor nos vários países e a Convenção de Berna para a Protecção das Obras Literárias e Artísticas, com as suas posteriores adendas e especificações, prevê que carecem de autorização todas as reproduções, traduções e adaptações de uma obra, pelo que temos de concluir que todas as versões gravadas de uma canção são autorizadas, se não pelos autores, pelo menos pelos detentores dos direitos[1]. E uma pessoa não sabe, portanto, em certos casos, a quem se refere ao certo quando exclama «Oh, Deus meu, mas eles autorizaram mesmo estas versões?» É que há casos em que uma pessoa sente que alguém deixou ir longe demais o natural direito que uma obra tem a vida própria e se pergunta até que ponto é que as obras adaptadas são ainda versões das originais… E eu, por muito que não defenda um indefinível  respeito de uma também indefinível essência de uma canção, tenho algumas vezes aversão a certas versões. Duas das minhas maiores aversões: 

1

Patsy Gallant editou em 1975 uma versão já de si bastante inadmissível de “Mon Pays”, de Gilles Vigneault. Gilles Vigneault é um dos maiores cantautores quebequenses e “Mon Pays” é uma das canções históricas da identidade do Quebeque, uma canção que muitas vezes se refere como o hino informal da província. 

Gilles Vigneault: “Mon Pays”, 1966

Mon pays ce n’est pas un pays, c’est l’hiver
Mon jardin ce n’est pas un jardin, c’est la plaine
Mon chemin ce n’est pas un chemin, c’est la neige
Mon pays ce n’est pas un pays, c’est l’hiver

Dans la blanche cérémonie
Où la neige au vent se marie
Dans ce pays de poudrerie
Mon père a fait bâtir maison
Et je m’en vais être fidèle
À sa manière, à son modèle
La chambre d’amis sera telle
Qu’on viendra des autres saisons
Pour se bâtir à côté d’elle

[...]

De mon grand pays solitaire
Je crie avant que de me taire
À tous les hommes de la terre
Ma maison c’est votre maison
Entre mes quatre murs de glace
Je mets mon temps et mon espace
À préparer le feu, la place
Pour les humains de l’horizon
Et les humains sont de ma race

[...]

Mon pays ce n’est pas un pays, c’est l’envers
D’un pays qui n’était ni pays ni patrie
Ma chanson ce n’est pas une chanson, c’est ma vie
C’est pour toi que je veux posséder mes hivers

Independentemente da opinião que se tenha sobre Vigneault, “Mon Pays” e a identidade quebequense, esta versão disco é uma ofensa, senão ao Québec, pelo menos ao bom gosto. Pode agora discutir-se se a versão em língua inglesa que Gallant lançou em 1977, cuja letra não tem nenhuma relação com a letra original, é ainda de mais mau gosto ou não. A versão de Gallant tornou-se um hit internacional, mas não é de estranhar que, segundo li, tenha sido silenciada nas rádios do Québec. 

2

Outro caso é “Seasons in the sun”, a versão inglesa de Rod McKuen de “Le Moribond”, de Jacques Brel.

Jacques Brel: “Le Moribond”, 1961

Se a versão de McKuen e as várias interpretações que dela há são de qualidade muito variável[2], a versão que Terry Jacks lançou em 1973 e se tornou um êxito em todo o mundo é outro bom exemplo do que não se deveria poder fazer a uma canção.

Em ambos casos, é evidente que a esmagadora maioria do público desconhece as canções originais. E estou em crer (ou quero crer…) que quem as conhece sente pelas versões a mesma aversão que eu. Evidentemente, uma pessoa pode perguntar-se se as melodias dos refrães de ambas as canções (não sei se se pode falar mesmo de refrão em “Mon Pays”) não terão já na origem um caráter de popularismo imediato que não só permite como até talvez suscite estas versões. Talvez. Mas, mesmo assim…

___________

[1] A legislação dos EUA é diferente, para as versões de uma canção em que não haja nenhuma modificação do texto e da música originais, já que prevê, neste caso, licenciamento obrigatório, reservando-se o direito de aprovação pelos detentores dos direitos para adaptações da obra.

[2] Até à versão de Terry Jacks, as versões da canção são sobretudo por cantores folk da época: pelo Kingston Trio em 1963, pelo próprio Rod McKuen e por Alex Hassilev em 1964, por Nick Taylor em 1965 e por Bud Dashiell em 1968. A partir da versão dos Fortunes em 1968, a canção descamba quase exclusivamente para o formato pop de grande público e atinge o sucesso máximo na versão de Terry Jacks, que foi Top 1 em 20 países 


12/12/25

O que existe e o que não


Deparo-me com frequência, em conversas de amigos, conhecidos e desconhecidos, com a estranha asserção de que a realidade não existe, que o que tomamos por realidade não passa de uma leitura subjetiva do mundo, que há tantas realidades como mentes, etc. Às vezes, não é realidade no todo que é negada, mas antes categorias específicas que, pelo menos aos olhos de um realista como eu, constituem partes fundamentais duma realidade perfeitamente real. O tempo é, nomeadamente, uma dimensão da realidade que muitos gostam de pôr em causa: que é uma ilusão, algo sem matéria própria além do vivido de cada um. Etc. 

Neste descontraído solipsismo cabem também, muitas vezes, apressadas interpretações de versões vulgarizadas de física quântica: que duas coisas podem estar ao mesmo tempo em dois lugares ou em dois estados, duas coisas podem estar intima e inseparavelmente ligadas entre si independentemente da distância que as separe, que um acontecimento pode ser influenciado ou até determinado por outro acontecimento posterior, que o vazio é a componente essencial de toda a matéria, eu sei lá o que por aí se ouve e vê escrito…

É claro, a esmagadora maioria das pessoas conhece e compreende tanto como eu — ou seja, nada — os complicados cálculos matemáticos que estão na base das esotéricas leis quânticas e muitas pessoas que fazem os artigos de vulgarização também não os compreendem melhor que aquelas para quem os «traduzem» numa linguagem acessível. E depois, as pessoas esquecem-se de que — como os especialistas gostam sempre de nos fazer recordar — as propriedades das partículas subatómicas não se aplicam ao nível macroscópico, em que podemos continuar a guiar-nos pela física newtoniana sem problema absolutamente nenhum. E que, às vezes, quando chamam macroscópicos a certos fenómenos quânticos, como no caso do prémio Nobel da Física recentemente atribuído, trata-se de um macroscópico ainda muito, muito microscópico para os nossos sentidos…  

É claro, não quero com isto dizer que a realidade não seja extremamente complexa, que não haja nuances  individuais na perceção da realidade (apesar de comum a todos nos seus traços gerais) e que, para descrever adequadamente certos aspetos dessa realidade, não seja necessário ir além da mecânica clássica. Claro que é. E longe de mim considerar que as teorias quânticas e as suas estranhas implicações ao nível do extremamente pequeno não se devem levar a sério. Quero apenas sublinhar duas coisas: 

A primeira é que não se deve discutir aquilo que não se compreende e a única maneira que compreender as implicações das teorias quânticas é compreender as equações que lhe dão origem. Não é nada que se possa visualizar, imaginar, explicar de outra forma. Não é nada em que se possa pensar, simplesmente, sem a matemática que lhe subjaz. E isto porque a nossa mente evoluiu para navegar um mundo ao nosso tamanho, em que a matéria é impenetrável e os acontecimentos se sucedem no tempo. 

James Ensor, A queda dos anjos rebeldes
(Val van de opstandige engelen), 1889
Museu Real de Belas Artes de Antuérpia 
A segunda é um pormenor simples de que muitos despreocupados relativistas parecem esquecer-se: se o mundo não tivesse uma realidade dura fora de nós e os nossos sentidos não tivessem evoluído para percecionar adequadamente essa realidade, se mundo, tempo e espaço não fossem senão o resultado de perceções, como poderia constituir um perigo percebê-los de maneira diferente? Ora quem, como eu, lida amiúde com pessoas que vivem efetivamente o espaço e o tempo e realidade em geral apenas como imagens mentais impossíveis de relacionar com as medidas de um relógio ou de uma fita métrica, à margem de relações causais básicas, etc., sabe muito bem que essas pessoas simplesmente pereceriam sem a ajuda das outras pessoas cujas perceções individuais da realidade curiosamente convergem – como devem! Em última análise, afirmar que a realidade não existe fora de nós pode, em certa medida, considerar-se ofensivo para quem sofre (e sofrer aqui não significa apenas «passar por; ser objeto de», mas sim «estar doente de, sentir-se mal») de dissociação da realidade causada por psicoses, demências e outras perturbações mentais. Essas pessoas não vivem apenas numa realidade diferente da minha, padecem muito por terem perdido o contacto com a realidade. Ou que vos parece?




11/12/25

Língua de trapos

A minha avó usava a expressão língua de trapos para referir alguém que lhe custava a entender («ela/ele é uma/um língua de trapos, não se percebe nada do que ela/ele diz»), por algum defeito de pronúncia ou pela desorganização do discurso confuso, por ser um trapalhão, por se atrapalhar na elocução e lhe sair da boca uma trapalhada – para usar três palavras que vêm de trapo, precisamente.

Evidentemente, não era uma expressão exclusiva da minha avó, ouvi-a também a outras pessoas. E estou em crer que a expressão morreu na geração dos meus pais. Ou talvez na minha, não sei, mas não me lembro de a ter ouvido a pessoas mais novas. Procurando nos dicionários em linha, só encontro língua de trapos no Dicionário da Academia das Ciências de Lisboa com o significado de «pessoa maldizente», aceção com que nunca a ouvi (não será uma confusão com a expressão dizer trapos e farrapos?). Com o significado que lhe conheço, não a encontro. Já a expressão que diretamente lhe equivale em castelhano, lengua de estropajo, está dicionarizada como nome de dois géneros, com o significado esperado (traduzo eu): «Pessoa balbuciante, ou que fala e pronuncia mal, de maneira que mal se entende o que diz».

Sabemos que a língua, como organismo vivo que é, tem de estar em constante mudança – para se conservar viva, precisamente; mas custa-nos, em cada geração, ver desaparecer expressões que acarinhamos, às vezes por nos virem de pessoas que nos mereciam carinho. Neste caso concreto, esta associação dos trapos à dificuldade de expressão vem de longe: acabo de a encontrar numa famosa novela picaresca espanhola de 1528, Retrato de la Lozana Andaluza, de Francisco Delicado. Traduzo eu a passagem em questão (texto original completo aqui):

LOZANA – [...] E que mais? Dir-me-ás CELESTIAL sem gaguejar.
DOMÉSTICA.-  CE LES TI NAL.
LOZANA.-  Ai, pobre de ti, que tanto gaguejas! Diz ALCATARA.
DOMÉSTICA.-  AL CA GO TA RA.
LOZANA.-  Ai, desgraçada! Não é assim! E que fanhosa és! Tens uma língua de trapos! 



10/12/25

Entre as memórias e o sonho: vozes

É capaz de ser da idade, não sei: nos momentos de calma que antecedem o sono ou o dormitar, mas também se ouço música ou se me imobilizo em contemplação de alguma coisa, parece que ouço vozes na minha cabeça. Quer dizer, talvez não seja esta a melhor maneira de o dizer. Não creio que se trate propriamente de alucinações auditivas; não são vozes claras, é tudo mais vago, como num sonho. Não sei ao certo como soam as alucinações auditivas às pessoas que delas sofrem — e que terrível sofrimento! —, mas já vi e ouvi descrições dessas alucinações e não me parece que seja o que me acontece. 
[Uma coisa curiosa é a associação que parece haver entre subvocalizações e alucinações auditivas: «pessoas com esquizofrenia que apresentam alucinações auditivas podem demonstrar o resultado de uma hiperativação dos músculos da laringe», ou, dito de outra maneira, «as alucinações auditivas podem ser projeções dos pensamentos verbais de pacientes esquizofrênicos, subvocalizadas devido a uma deficiente inibição do córtex». Subvocalizações, deixem-me explicar, são movimentos minúsculos, só detetáveis com máquinas, que o nosso aparelho fonador faz quando lemos; e, muito provavelmente, também quando pensamos em frases completas, se preparamos interiormente o que vamos dizer a alguém, ou revemos mentalmente uma conversa, ou corrigimos na mente o que deveríamos ter dito e não dissemos, coisas assim — quando temos, enfim, frases de uma língua na mente, porque, é de crer, a língua é intrinsecamente sonora, mesmo quando não chega a transformar-se realmente em som...]
Albert Maignan: As vozes do rebate, 1888. 
Amiens, Musée de Picardie, daqui.
As vozes que me surgem na mente não dizem nada concreto, e muito menos dizem mal de mim, como nas alucinações auditivas das psicoses. São vozes de pessoas que conheço bem, com expressões e entoações típicas dessas pessoas, mas dizem só coisas vagas, às vezes porque as conversas parecem ir já a meio («e eu cheguei lá, ‘tás a ver?, não encontrei mala nenhuma») ou por faltarem referências na conversa («às vezes, encontro-a, conversamos ali um bocadinho e pronto, não passa disso») Se se queixam, não sei de quem se queixam («bem, também te digo, pá, aquele tipo, quem não o conhecer que o compre…» ou «eh pá, mas então aquela gente não se enxerga?»). 
[Fazem-me lembrar as conversas que ouvia ao jantar quando trabalhei num lar para pessoas com demência. Conseguiam conversar animadamente sem ninguém saber de que estavam a falar: uma pessoa podia começar, por exemplo, com um «de maneira que é assim» a propósito não se sabia de quê, ao que outra pessoa lhe respondia, «ah, pois é, mas isso já se sabe», e uma terceira pessoa comentava «é que não tenha dúvidas, amiga», para depois uma quarta pessoa concordar também, com algum dos anteriores ou todos eles, «olhe, nisso, dou-lhe toda a razão» e assim sucessivamente, e era uma conversa educada e sem conflitos.]
As vozes das minhas fantasias fazem-me lembrar outra voz que me surgia em criança quando tinha febre, também meio sonhada como elas, meio espetral. Naquele doce intermúndio de febre infantil pairava sobre mim a voz da minha mãe. Não era a voz real da minha mãe filtrada pela febre, mas sim uma voz da minha mãe inventada por essa febre. Não me lembro do que essa voz sonhada me dizia, mas recordo bem o seu efeito calmante, como a voz do hipnotizador que se ouve ao longe quando nos deixamos levar pelo sono que ela nos pede (já tentei deixar-me hipnotizar e, cético que sou, que se esperava?, não me aconteceu nada que não fosse quase adormecer...).
É capaz de ser da idade, tudo isto: perder-me assim, às vezes, entre as memórias e o sonho, como numa cantiga que há, numa parte de mim que até há pouco desconhecia. Custa-me não saber dizer isto melhor. Dito assim, quem me ler é capaz de não perceber muito bem do 


 

Vozes de alguma poesia

 

Um autor pode desejar contextos específicos para se entrar em contacto, ou simplesmente estar em contacto, com a sua poesia. Ninguém é obrigado a respeitá-los, claro está, e, na minha opinião, nada garante, aliás, que deles resulte uma versão de alguma forma mais essencial de uma determinada obra poética, porque não creio em tal essencialidade.

Uma questão interessante é a da voz da poesia. Se é certo que a poesia, em sentido lato, nasceu com voz — porque é, provavelmente, anterior à escrita —, também é certo que, ao cabo de tantos séculos de palavra escrita, ela deve ser já independente dessa voz. A chamada poesia gráfica ou poesia visual é uma expressão clara, se bem que não necessariamente a única, desta independência.

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Página de Vents, de Saint-John Perse.

«Após a revisão final, o texto é cuidadosamente paginado. 
A escolha deliberada do itálico, o uso do espaço em branco 
e os requisitos tipográficos fazem dele um objeto gráfico
imediatamente reconhecível. A qualidade visual do texto,
a aparência física do livro, mesmo para uma edição padrão,
é de tal importância para Saint-John Perse que ele
 assume sem hesitar o papel de paginador.”

Traduzo eu daqui. Foto daqui.     
Saint-John Perse, que foi prémio Nobel da Literatura em 1960, não gostava que os seus poemas fossem lidos em voz alta (traduzo eu daqui):
«Em princípio, sou contra qualquer recitação poética, que me parece, pelo menos em francês, limitar ou distorcer o alcance da escrita nas suas múltiplas vertentes, convergente e divergentes. [...] E, mais particularmente, no que me diz respeito, nunca consegui suportar a ideia de ler fosse o que fosse em voz alta, nem sequer para mim próprio, e ignoro completamente, como poeta, do som da minha própria voz. A poesia parece-me feita apenas para o ouvido interior.»
No extremo oposto de Saint-John Perse, Allen Ginsberg, por exemplo, dizia que não bastava que os seus poemas fossem bons nas páginas de um livro — tinham também «a dimensão sonora que Ezra Pound sublinhara». 

Não tenho, sobre isto, nenhuma posição definitiva. Parece-me que há poemas que ficam bem em voz alta e há outros que vivem bem do seu silêncio na página, mas não tenho para isso nenhuma justificação sólida… É só uma questão de gosto. E já que estamos em maré de gosto, o que muitas vezes me desagrada, devo confessar, é uma tradição que há de pompa e/ou dramática emotividade na declamação de poesia. 

***

É interessante ver como dizem os poetas os seus próprios poemas. Não que os digam melhor que os outros, ou que se deve seguir o seu estilo de declamação, mas talvez isso nos dê alguma pista sobre uma hipotética voz inicial dos poemas, se a há, quando a há.

Se Pound destacava a dimensão sonora da poesia, a sonoridade que gostava de dar aos seus poemas era sempre excessiva, teatral, e às vezes até algo alucinada, independentemente do tipo de poema que lia. De Ginsberg poder-se-ia esperar talvez uma declamação próxima do falar quotidiano, e às vezes aproxima-se de facto disso, mas não se afasta completamente de alguma teatralidade própria da tradição declamatória.

***

Uma declamação que sempre achei singular, eu que nada sei de declamação, é a de Alexandre O’Neill ao dizer os seus poemas. O’Neill dizia que, com a sua poesia, queria sobretudo desimportantizar ou aliviar: «aliviar os outros, e a mim primeiro, da importância que julgamos ter». Talvez a maneira de declamar a sua poesia reflita de alguma forma o seu projeto poético, desimportantizando a declamação, aliviando-a do peso e da imponência que ela muitas vezes gosta de conferir à poesia. 

Não sei. O que me parece certo é que, haja ou não desimportantização, a voz que dá aos poemas não se aproxima, como talvez se esperasse, do discurso oral quotidiano, mas martela antes algumas palavras, como que para sublinhar por que motivos — sons, ritmos, sentidos — as escolheu para o poema. Veja-se, por exemplo, como diz “Velhos de Lisboa”:

Mas o que eu pensava que era uma maneira única de dizer poesia é capaz, afinal, de não ser assim tão única: descobri recentemente que a declamação de Mário Cesariny, por exemplo, pode ser muito parecida com a de O’Neill. Eis como Cesariny diz o seu poema “Pastelaria”:

Algumas das muitas vozes, então, que os poemas podem ter...




04/11/25

Mais um aforismo sobre o envelhecimento


Há quem afirme que, apesar da idade (mais ou menos) avançada, se sente «jovem por dentro», querendo com isso significar que, embora reconheça a decadência do corpo, conserva inalteradas  as capacidades mentais. Mas não será antes que essa afirmação já é, por si, sinal de alguma decadência cognitiva?

16/10/25

Weblog: 15 de outubro de 2025 [Crónicas de Svendborg #53]

[Dizem-me várias definições de blogue que, no início, os weblogs, eram sobretudo diários online.  Este blogue, que já nasceu tarde, raramente o tem sido. Mas hoje é. Mais ou menos…]

E eis-nos no fim da primeira quinzena de Outubro. O frio ainda não chegou, mas de manhã, às vezes, já calço luvas quando vou de bicicleta para o trabalho. Já está escuro de manhã quando saio de casa às seis e meia, mas ainda é de dia quando a Karen chega a casa às cinco. Para ser mais concreto, o sol nasceu hoje às 7:48 e vai pôr-se às 18.17 e temos hoje 14 graus de máxima e 11 de mínima.

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As folhas começam a cair e caem das árvores as últimas maçãs. A horta já pouco ou nada mais dará este ano. Ainda não há perigo de temperaturas negativas, mas vamos apanhando batatas, cenouras, cebolas, alhos e beterrabas, para os guardar na oficina ou na despensa, que são as partes da casa que não aquecemos. Os tupinambos e as beterrabas ainda podem esperar mais um bocadinho. As acelgas, deixamo-las ficar e vamos só tirando as folhas de que vamos precisando, que nunca se cansam de fazer folhas novas, às vezes pelo inverno dentro.




Foto: A horta, ou o que resta dela nesta altura. A cerca de arame, que talvez estranhem, é por causa de corços e gamos, que comem tudo.

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Apanhámos há duas semanas 280 quilos de maçãs, que fomos levar à fábrica de sumo. O modelo de negócio da fábrica é um litro de sumo, já pasteurizado, por cada 10 quilos de maçãs. É claro, não é sumo das nossas maçãs que nos dão, é sumo de maçãs que foram entregues no dia anterior. Mas só aceitam maçãs como as nossas, de amadores que não utilizam pesticidas. É bom negócio para a fábrica, mas não para nós: se contarmos o preço do nosso trabalho, saem-nos muito mais caros estes 28 litros de sumo na fábrica do que comprá-los na loja, as umas 15 coroas (± 2 €) por litro. Mas é só para não se estragar tanta maçã.




Fotos: O ano passado, fiz uma poda bastante radical de algumas macieiras, a ver se lhes reduzia a produção, mas continuam a produzir muito. Foi difícil meter 280 quilos de maçãs no carro (houve anos em que tivemos de usar um atrelado), mas conseguimos. À volta, já havia muito espaço livre.

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Agora, mesmo apanhando 280 quilos de maçã, estraga-se sempre muito mais que isso. Começam as maçãs a cair para o chão em julho e só agora, em outubro, caem as últimas. Enquanto não arranjamos tempo para as apanhar e levar à fábrica, como fizemos agora, vão parar várias centenas de quilos ao monte de composto no fundo do quintal. Depois de apanharmos todas as maçãs que conseguíamos apanhar, continuaram a cair as das árvores altas, que já não eram podadas com certeza há muito tempo quando comprámos a casa e que, agora, não há maneira de podar. No fim de semana passado, apanhei e pus no composto, destas maçãs, mais umas centenas de quilos. Agora já poucas mais hão de cair.  
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É claro, nós fazemos tudo e mais alguma coisa com maçãs, compotas e doces vários, e fartamo-nos de comer maçãs na época delas, mas não damos vazão nem de um décimo. E nem sequer faz muito sentido convidar os vizinhos a virem-se servir das nossas maçãs — toda a gente aqui na terra tem maçãs e alguns têm o mesmo problema de excesso de produção que nós temos.




Foto: Maçã caramelizada no forno a baixa temperatura com açúcar mascavado e canela. Com um bocadinho crème fraîche por cima, dão uma deliciosa sobremesa.

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Na horta, temos feito todos os anos acelgas, batatas, curgetes, fava, feijão-catarino e morangos (muito poucos), mas o resto vai variando de ano para ano. Nos últimos anos, temos também tido sempre beterrabas, espargos, framboesas e uvas. Este ano, tivemos também alho, beterraba, cebola, cenoura, chicória italiana (radicchio) e feijão-branco. Fora da horta, tivemos tomate, pepino e piripiri, na estufa; e há também groselhas pretas, vermelhas e verdes, e amoras, espalhadas pelo quintal. E tivemos pela primeira vez muitos figos e muitas rainhas-cláudias, muito bons tanto aqueles como estas.

Foto: Uma sopa feita só com produtos na nossa horta, tirando, claro, o sal e o azeite: cozi primeiro o feijão-branco fresco, porque não sabia quanto tempo ia demorar a cozer e não o queria muito espapaçado. Noutro tacho refoguei cebola, alho, cenoura, um jalapeño não muito forte e os talos das acelgas, tudo em cubos pequenos, e juntei-lhe depois um bocadinho de tomate. Cozi as acelgas à parte, em água muito salgada, só durante dois minutos e passei depois por água fria. Juntei ao refogado o feijão e a água onde o tinha cozido, e batatas cortadas em cubos grandes. Deixei cozer um bocadinho e juntei curgete cortada em juliana grande. Deixei cozer mais um bocadinho e juntei as acelgas.

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Foto: Uma bonita (e saborosa salada) salada que a Karen fez, com flores comestíveis que eu não sei como se chamam. A couve-roxa não é do quintal, mas a beterraba e as flores são. Temos muita beterraba, mais do que conseguimos comer, e eu tento arranjar maneiras de a preparar (borche, assada no forno com molho de tahini e limão, seca no forno em tiras muito fininhas, sei lá que mais...), mas também não se pode comer beterraba todos os dias, não é verdade?
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Foto: Feijão-catarino e feijão-branco e secar. As nozes por baixo do feijão-branco também estão a secar, mas não são do nosso quintal. Comprei-as frescas aqui na aldeia.

Eis-nos então no fim da primeira quinzena de outubro. Até agora, tem sido um outono suave. A próxima tarefa no quintal é podar as macieiras.   


31/07/25

Foisted fast food: uma coincidência


Da primeira vez que fui à Geórgia, tentei aprender o alfabeto georgiano (já aqui falei uma vez disso) e consegui mais ou menos. Pelo menos, foi o que eu pensei. Quando lá voltei cerca de ano e meio mais tarde, já tinha esquecido uma grande parte do que tinha aprendido da primeira vez... Aprender um alfabeto novo é difícil. 

Os georgianos têm, em geral, mais contacto com o nosso alfabeto que nós temos com o deles (por exemplo, as matrículas dos carros deles são com o nosso alfabeto). Além disso, muitos deles aprenderam o alfabeto cirílico russo, que é, apesar de tudo, relativamente parecido com o nosso. Mas isso não quer dizer que todos os georgianos conheçam bem o alfabeto latino. O que se vê escrito em inglês nesta montra em Kutaisi resulta provavelmente de uma interpretação errada de uma letra do nosso alfabeto: alguém pensou que a perna do a fosse um i. Isto seria já curioso se foist não quisesse dizer nada. Mas quis o acaso que, do engano, surgisse uma palavra inglesa: to foist something on someone significa «impingir/impôr alguma coisa a alguém, obrigar/convencer/aliciar alguém a/para consumir ou aceitar alguma coisa». A ideia de fast food não anda muito longe, pois não? Curiosamente, aliás, a frase que o dicionário Cambridge dá como exemplo de utilização do termo foist é She charged that junk food is being foisted on children by TV commercials, «Ela denunciou que as crianças estão a ser aliciadas ao consumo da chamada comida de plástico, através de anúncios na televisão.»




26/07/25

O que hoje mal dito está, amanhã regra será

Hoje de manhã, topei por acaso com um provérbio que não conhecia,

Aurora ruiva, ou vento ou chuva, também com a variante Manhã ruiva ou vento ou chuva.

E pensei assim: é claro que há provérbios com rima toante, como, por exemplo, outro provérbio que eu conheço, que diz o mesmo que este:

Céu vermelho de madrugada, marinheiro põe-te em guarda. 

Mas também pode ser que o provérbio seja uma tradução do castelhano, em que teria rima perfeita (B e V pronunciam-se da mesma forma em castelhano): 

Manãna rubia, viento o lluvia.

Ou então, hipótese mais improvável, o provérbio é tão antigo que, quando ele surgiu, ruiva e chuva ainda tinham a mesma forma no romance do que é hoje Portugal — porque muito provavelmente a tiveram…

E uma busca na internet revelou que existe de facto um provérbio espanhol que coincide com a minha hipótese, apenas com uma palavra diferente da minha tradução: 

Alba rubia, viento o lluvia. 

Fiquei muito satisfeito com a minha perspicácia, é claro, mas continuei sem resposta: o provérbio português tanto pode ser uma importação do castelhano como podem ter ambos uma origem romance comum…

Metáteses em português e castelhano

Os pensamentos são como as cerejas e isto levou-me à questão das metáteses em português e castelhano. Fiz há coisa de 25 anos uma lista bastante longa e, creio eu, bastante completa também, de diferenças sistemáticas entre o castelhano e o português[1]. Um dos tópicos dessas diferenças são as palavras que sofreram metáteses numa das línguas, mas não na outra.

Metátese, então. Peço desculpa pelo palavrão e eis a sua definição: chama-se assim à permuta de dois sons de uma palavra, como quando se diz *dentrífico em vez dentífrico[2]. Se a metátese for entre dois sons consecutivos, como em *dromir por dormir, chama-se uma interversão.

Este processo é tão frequente que existe em todas as línguas que conheço — e, ao que tenho visto, também nas línguas que não conheço. Agora, é interessante constatar que uma metátese que em determinada altura é considerada erro, como o são agora *dromir ou *dentrífico, pode mais tarde passar a ser a forma correta, como veremos adiante; e que, em duas línguas tão próximas como o português e o castelhano, não coincidem as metáteses tornadas norma, o que, nalguns (raros) casos, faz com que os falantes de uma das línguas achem divertida a palavra na outra língua. Por exemplo:

*Preguntar, em vez de perguntar, é erro em português[3]; mas em castelhano é ao contrário, preguntar é a forma considerada correta — e nem sei se alguém diz *perguntar em castelhano, nunca tal ouvi. Como a forma etimológica é percontāri,  foi em castelhano que vingou a troca de sons, o português segue o étimo sem permutações.


O mesmo em cocodrilo, que vem do grego krokodilos pelo latim crocodilu-: em português, não houve metátese, em espanhol, sim. E cocodrilo faz-nos sorrir.

Morcego é uma terceira palavra que em português evoluiu direitinha, se se pode dizer assim, ao passo que em castelhano sofreu trocas de sons internas. O desgraçado do morcego não tem nome próprio em várias línguas, é só um rato careca em francês (chauve-souris), um rato esvoaçante em dinamarquês (flagermus), um rato cego em português e galego (mur(is) caecu(s) deu morcego), e um rato ceguinho em castelhano: mur(is) caecŭlu(s) deu murciégalo, que já foi a palavra normal e está hoje caída em desuso, tendo sido substituída pela forma com metátese, murciélago. Ganhou o erro de antigamente, que por isso deixou de ser erro…

Quem achar estranho que uma pronúncia errada se tenha tornando forma correta, não deve ficar a rir-se do castelhano, já que o português tem muito mais formas destas que aquela língua. Eis, por ordem alfabética, uma lista que não se pretende de forma alguma exaustiva, de palavras portuguesas que incluem metátese na sua evolução, comparando com o castelhano quando possível:

Aipo, do latim apiu-, «devia» ser *ápio, como é em castelhano (apio);

A palavra caranguejo vem do castelhano cangrejo, que por sua vez vem do latim cancricŭlu-[4], e, ao entrar no português, sofreu uma metátese (dizem alguns que por influência de carango, mas não sei…) que a deixou como a conhecemos...

Disfarçar, que vem do castelhano antigo desfrazar, seria, sem a interversão, *disfraçar, igual ao castelhano atual disfrazar, mas nós trocámos os sons à palavra.

Freguês vem de filĭus eclesiae, «filho da igreja» e, se não tivesse vingado a forma «mal pronunciada, seria *fegrês (ainda se vê feegrês em galego-português), depois de uma longa evolução que, em castelhano, não sofreu metátese: diz-se feligrés.

Gaiv%C3%A3o
Gaivão, esq. e gavião, dir. Wikimedia Commons, daqui e daqui.
Caso curioso é o de gaivota, que devia ser *gaviota, como é em castelhano, porque vem do latim gavia-, mas nós trocamos-lhe os sons, como trocámos também ao gaivão, aliás, mas não ao gavião. Evidentemente, a metátese permitiu-nos, neste caso, distinguir dois animais muitos diferentes a partir de um mesmo termo romance... 

O geolho antigo, derivado diretamente do latim genuculu-, transformou-se, por metátese, em joelho e a forma deformada[5] pegou. O castelhano hinojo, que corresponde diretamente a geolho (por estranho que isso possa parecer a quem não conheça a história do castelhano), evoluiu sem trocas do lugar dos sons dentro da palavra.

Também jogral devia, pela lógica etimológica, ser *joglar como em castelhano, já que vem do francês antigo jouglere, mas em português veio a metátese trocar-lhe os sons.

Por fim, não fossem as interversões, raiva e ruivo também seriam *rávia e *rúvio, como são em castelhano, porque é isso que decorre naturalmente dos étimos latinos rabia- e rubeu-. Mas não, trocámos-lhe a ordem dos sons.

E depois, há casos de metáteses comuns aos dois idiomas, como a palavra palavra[5] (palabra em castelhano), que vem de parabola- e seria pois, sem a troca de sons, *parabla ou *paraula ou algo assim, com um /r/ na sílaba central e um /l/ na última sílaba. O português (não o castelhano) tem outra palavra da mesma família, palrar (do latim parolare) também com /r/ e /l/ trocados relativamente ao étimo.

Quanto a formas de origem discutida, temos noiva, que é novia em castelhano, e carapaça, que é caparazón em castelhano — mas não me atrevo nestes casos a dizer onde houve metátese…

Conclusão: não acredito muito que *auga*metereologia*protanto tenham grandes possibilidades de algum dia vir a ser as formais normais em português, mas é bom lembrar-se que não são solecismos maiores do que já o foram disfarce ou joelho.

O meu pecado pessoal é o metoprolol. É um termo que uso na minha vida profissional e engano-me sempre a pronunciá-lo: a reboque de metrópole, acho eu, digo *metropolol. Os sons /l/ e /r/ parecem ser muitos suscetíveis de troca, e mais ainda se alguma parte da palavra nos remete para outra palavra com a sequência de sons trocada. Às vezes, é curioso é a abundância de uma determinada sequência de sons que provoca a metátese: acho que ninguém diz trigue por tigre a não ser na proximidade de outros tri-: três tristes trigues, não é verdade?

Reptile003dCrocodilo tornou-se cocodrilo em castelhano, mas não *corcodilo nem *cocordilo. Porquê? Deve haver algo nesta sequência concreta de sons, neste contexto fonético específico e/ou na estrutura fonética do castelhano em geral, que a torne de alguma forma preferível, ou «mais natural», ao ouvido dos falantes. Mas o quê?

Não tenho a certeza de ter ouvido alguma metátese de crocodilo em português. Talvez *corcodilo, que me parece a mais «natural» na nossa língua...



P. S.: Já agora, de bónus: metáteses em francês e inglês

O francês também tem algumas palavras cuja forma atual resulta de metáteses. Eis algumas delas:

Brebis, «ovelha», já foi berbis, o que é natural, dado que vem do latim berbex; mas depois o /r/ e o /e/ trocaram de lugar.

A forma atual espadrille, «alpercata de sola de corda», é uma metátese de espardille, que vem do occitano espardilhos, de espart, «esparto», porque se trata, precisamente, de sapatos com sola de esparto.

Farouche, «bravo, arisco», vem do latim forasticus, que deu primeiro fourache. Este termo sofreu depois uma surpreendente metátese: o /a/ e /u/, em sílabas diferentes, trocaram de lugar.

Fromage, «queijo», devia ser – e já foi – formage, porque vem de formaticu- (o queijo é feito em formas).

Gourmet, «gastrónomo, apreciador de boa comida», vem de gromet, termo antigo para designar o criado responsável pelo vinho, e a interversão de /r/ e da vogal contígua deve ter sido influenciada pela palavra gourmand, guloso, que também tem a ver com comes e bebes, mas não tem relação etimológica nenhuma com gromet.

Moelle, «tutano», vem duma metátese de meolle, que vem, por sua vez, do latim medulla- (parente muito chegada, portanto, do português miolo, que tem a mesma origem).

Moustique, «mosquito», vem do espanhol mosquito, mas com troca de lugar dos sons /k/ e /t/.

Tirando isso, são apontadas como metáteses correntes *aréoport por aéroport*astériks por astérisque (e que seria da escola franco-belga de banda desenhada sem esta interversão?); *génicologue por gynécologue, talvez com influência de génital e afins; *infractus por infarctus, talvez por influência de fracture; e *rénumeré por rémunéré, provavelmente por influência de numéro — entre muitas outras…


Em inglês, há também umas quantas palavras atuais que resultam de trocas de sons passados, que, de erro, passaram a norma. Por exemplo:

Bird vem do antigo bridd, de origem desconhecida, que significava um passarinho jovem.

Nostril, «narina, vem do inglês antigo nosþyrl ou nosðirl, composto de nos(u), «nariz», e þyrel «buraco», mas o /r/ e o /i/ trocaram depois de lugar.

Third, «terceiro», também tinha o /r/ e o /i/ em posições invertidas, que são as etimológicas e correspondem às das outras línguas próximas: dizia-se thrid e a transformação em third atesta-se desde o fim do séc. X. As duas formas coexistem até ao séc. XVI, mas a forma trocada acaba por vencer. Verifica-se o mesmo fenómeno em thirty, «trinta»: atesta-se, desde o fim do séc XIV, a transformação do thriti original em thirti.

Wasp, «vespa», era wæps em inglês antigo, mas depois os sons /p/ e /s/ trocaram de lugar, talvez por influência do latim vespa.

E fico por aqui, que já vai longo o post scriptum...

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[1] É um trabalho útil para quem aprenda uma das línguas, mas o formato de blogue presta-se mal à sua publicação, de maneira que nunca aqui o pus. Se alguém quiser esta lista, pode contactar-me e enviar-lha-ei por e-mail.   

[2] Assinalo com um asterisco grande e vermelho as formas produzidas por falantes nativos, mas consideradas incorretas pela norma culta. Os asteriscos negros e pequenos indicam formas que nunca vi nem ouvi.

[3] *Preguntar é considerado erro na escrita e no português falado no Brasil. Em Portugal, a diferença entre perguntar e *preguntar não se ouve em português moderno falado a velocidade normal, porque o /e/ desparece, venha antes ou depois do /r/.

[4] Se viesse diretamente do latim, a forma portuguesa seria em princípio *cancrelho ou *cangrelho.

[5] É mesmo para ser assim: «forma deformada», «palavra palavra», não é deslize, é estilo brincalhão, se bem que, como vocês com toda a razão pensam, de gosto bastante duvidoso...

19/07/25

Aqueles que por obras valerosas

 

Já uma vez aqui falei do assunto. Disse que criadores e obras são coisas diferentes e que, se as obras ficam, as pessoas reais que as criaram são tão facilmente esquecidas como quem nunca fez nenhuma obra memorável. 

Faltou-me sublinhar que, para que recordem as obras que cá deixamos, tanto faz que essas obras sejam boas ou más. Algumas das obras mais recordadas são as mais terríveis — e ainda bem que assim é, que o mal nunca se deve esquecer, para melhor contra ele nos precavermos.

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O resto, que merece também ser sublinhado, digo-o em redondilha maior:

Todos sabem que, ao morrer,
só como recordação
poderão sobreviver.
Mas que o recordem ou não,
quando já cá não andar,
p’lo bem que fez, ou o mal,
a um vivo pode importar,
— para um morto, é tudo igual.

Percy Spencer nasceu a 19 de julho de 1894, faz hoje 131 anos e inventou o forno de micro-ondas em 1945. A patente, uma das 150 registadas por Spencer, foi feita em nome da empresa onde trabalhava, de maneira que nunca ganhou com ela nada além do seu salário. Uma obra de valor, sem dúvida, usada por muita gente no seu dia a dia, mas quem se lembra de Percy Spencer? Imagem: O primeiro forno de micro-ondas produzido comercialmente, lançado em 1947.
Foto de
 Acroterion, Creative Commons, daqui.

18/07/25

Dizer localizações: atrás e à frente, a levante e a poente

Dois pequenos apontamentos sem relação entre si, a não ser que tratam ambos de palavras que dizem a localização no espaço. 

I

Em defesa da ideia de que a língua condiciona ou modela o pensamento, tenho visto várias vezes referido o exemplo das línguas de várias comunidades australianas em que se usam referências absolutas (pontos cardeais)[1] para descrever a localização, em vez de referências relativas como atrás, à frente, à esquerda e à direita, por exemplo; e sublinhar que as pessoas que usam estas línguas têm, em geral, uma maior capacidade de orientação que, por exemplo, os europeus, que usam sistemas relativos de descrição da localização. Mas…

Parece que, afinal, nas comunidades australianas, a localização espacial é muito mais complexa do que a descrevem os estudos em que se baseiam estas ideias, incluindo também sistemas de referência baseados na paisagem (a montante, a jusante) e também sistemas relativos de referência[2].

Não é isso, contudo, o que mais me importa: não há nada noutras línguas que impeça os seus falantes de usar sistemas absolutos de localização. Por exemplo, «A Maria está em sentada a oeste da Rita» é uma frase possível e bem construída em português. Portanto, a questão não é linguística, é cultural. Qualquer falante de qualquer língua, se for habituado desde pequeno a referir toda a localização ao percurso aparente do sol e se viver num ambiente físico que permita essa localização, também será capaz de o fazer, claro está. E parece-me natural que quem aprendeu a orientar-se a partir de pontos de referência absolutos tenha, em princípio, maior capacidade de orientação em geral. Não vejo bem como isto justifica que a língua determine o pensamento…

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[1] Assentemos que, sem uma bússola, a orientação natural pelos pontos cardeais se faz pelo percurso aparente do sol, pelo que não é de facto absoluta, variando com a latitude e a época do ano, mas é, sem dúvida, muito mais absoluta que a pura relatividade de atrás, à frente, à direita e à esquerda.

[2]Ver Bill Palmer, Dorothea Hoffmann, Joe Blythe, Alice Gaby, Bill Pascoe, Maïa Ponsonnet, “Frames of spatial reference in five Australian languages”, 2023

II

Observa-se, nalgumas variantes do português, a construção à minha trás (à tua/sua…., etc.): «O Tio Josseldo vem a correr à minha trás». Considera-se normalmente que é uma expressão construída por analogia com à minha frente, mas mal formada, porque trás não é um nome e frente é, não havendo, portanto, um paralelo entre as duas frases[1].

De facto, os dicionários apresentam trás apenas como preposição[2] (ver aqui ou aqui, por exemplo). Aliás, as pessoas da minha idade que, como eu, ainda se lembram da lista de preposições que aprenderam a recitar de cor na escola primária, encontram trás no fim da lista. A palavra tem origem numa preposição latina, trans, e é sensato pensar que não mudou de categoria nos últimos dois milénios. Mas trás porta-se sempre como uma preposição[3]?

A mim, surpreende-me que trás, numa frase como «Um palíndromo é uma frase se lê tanto de trás para a frente como da frente para trás» seja uma preposição. Três preposições seguidas? Uma preposição em final de frase? É possível? Verificam-se outros casos? Não creio. Da mesma forma, quando se diz, por exemplo, «O edifício tem uma escada de socorro na parte de trás», como explicar uma frase terminada com duas preposições — que só encontram paralelo em construções com preposição mais nome? Que se considere de trás uma locução prepositiva não resolve o problema, porque as locuções prepositivas são constituídas por elementos morfologicamente identificáveis: cima é sempre um nome, mesmo quando entra na locução por cima de, etc.[4] 

Não seria antes de considerar que trás pode ser uma preposição e um nome? Pode objetar-se a esta proposta que o hipotético nome trás não parece ter verdadeira existência autónoma, ao contrário do nome que mais diretamente parece corresponder-lhe, frente. «A frente da casa estava voltada a norte», mas não *«A trás da casa estava virada a norte», que não existe. No entanto, nomes como cima ou baixo também não têm, em português moderno, existência autónoma com o significado de «parte superior» ou «parte inferior», que é aquele com que são usados em locuções prepositivas: não se diz que o «O sopé da serra tinha uma vegetação luxuriante, que contrastava com a nudez da *cima», nem que «A aldeia ficava no *baixo da colina»…

Mas, enfim, isto é a gente a falar, como se costuma dizer…

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[1] Note-se que em galego, a nossa língua irmã, são relativamente comuns e aceites, também em registos formais, construções com tras seguido de possessivo: «Mais eu non vou tras túa coma un tigre de monte nin un león» (de uma tradução de Horácio por Aquilino Iglesia Alvariño). Não é claro, porém, que haja nominalização, até porque se verificam também construções como xunta miña para dizer «junto a mim». Não me atrevo a discutir este fenómeno numa língua que não conheço. Em português, também se verificam algumas anomalias deste tipo, como «Tiveste saudades minhas?» por «Tiveste saudades de mim», diferente de «Dá-lhe saudades minhas», que não corresponde a *«Dá-lhe saudades de mim», uma frase impossível. De notar também que trás tem, em galego como em castelhano, o significado de «após, depois de», que não tem em português.

[2] Há também outro trás, onomatopaico, que imita ruído de de queda ou pancada, e que os dicionários classificam como interjeição (?), mas esse é outra palavra...

[3] É mais fácil fazer listas de preposições que definir inequivocamente o que é uma preposição, a partir de propriedades observáveis. A definição clássica de palavra invariável que estabelece uma relação entre dois termos de uma oração é demasiado vaga, mesmo que se acrescente (Cunha e Cintra) que esta relação é tal que a primeira palavra (antecedente) é explicada ou completada pela segunda (consequente), o que não se aplica em muitos casos. À lista clássica (a, ante, após, até, com, contra, de, desde, em, entre, para, perante, por, sem, sob, sobre e trás), Cunha e Cintra acrescentam afora, conforme, consoante, durante, exceto, fora, mediante, menos, não obstante, salvo, segundo, tirante e visto, a que chamam preposições acidentais. A designação resulta, creio, de se conhecerem usos não preposicionais destes termos, mas todas as preposições são, na origem, derivadas de formas não preposicionais, na maioria formais verbais — como no caso das preposições acidentais consoante, durante, mediante, não obstante, salvo, tirante e visto. A esta lista há que acrescentar pelo menos dado (e talvez pese, que é um caso complicado.., pelo menos introduzindo um infinitivo, já que  dado – tal como visto, aliás – ainda aparece muitas vezes flexionado no seu sentido causal e função prepositiva. É também interessante notar que, nas preposições tradicionais, ante, perante e  trás são diferentes das outras, já que, ao contrário delas, não podem reger uma frase infinitiva. É de notar também que algumas das preposições acidentais têm as mesmas propriedades que as preposições tradicionais e outras não. Conforme e consoante, por exemplo, regem uma forma verbal finita sem ter de se lhes acrescentar que.

[3] Uma lista de locuções prepositivas, provavelmente incompleta: abaixo de; acerca de; acima de; a despeito de; adiante de; à direita de; à esquerda de; a fim de; além de; antes de; ao lado de; ao redor de; a par de; apesar de; a respeito de; atrás de; através de; de acordo com; debaixo de; de cima de; defronte de; dentro de; depois de; detrás de; diante de; em baixo de; em frente a; em frente de; em lugar de; em vez de; graças a; junto a; junto de; para baixo de; para cima de; para com; perto de; por baixo de; por causa de; por cima de; por detrás de; por diante de; por entre; para trás de; por trás de. Se deixarmos de lado as convenções ortográficas (note-se, por exemplo, que apesar de, em castelhano, se escreve a pesar de, que é o que de facto é), os elementos a negrito são nomes.


16/07/25

Direita e esquerda

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Ainda não uso aparelhos auditivos, mas lido diariamente com pessoas que os usam. E nunca deixo de achar estranho o código de cores que para eles escolheram: vermelho do lado direito e azul do lado esquerdo. 

Evidentemente, uma convenção é só uma convenção e não há, em princípio, cores que sejam melhores que outras para marcar a direita e a esquerda. Mas então, por que razão acho eu estranha a convenção dos aparelhos auditivos? 

Uma razão poderia ser a conotação política das cores: em princípio (os EUA são a única exceção que conheço), associa-se o azul à direita política e o vermelho à esquerda*. Mas não creio que seja por isso. Acho que o que me faz achar estranha a convenção dos aparelhos auditivos é outra convenção na área da saúde: a de representar, em esquemas simplificados, o sangue arterial a vermelho, do lado esquerdo do corpo, e o sangue venoso a azul, do lado direito do corpo.


Imagem: pág. 168 de Hatfield, Marcus, The physiology and hygiene of the house in which we live, Nova Iorque: Chautauqua Press, 1887, daqui, modificada por mim.


***

Esquerda e direita definem posições relativas, toda a gente sabe: se tenho alguém à minha frente, sei que tenho à minha direita o seu braço esquerdo e à minha esquerda o seu braço direito. E assim sucessivamente.
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Numa imagem, tomamos normalmente como referência quem a vê e não o que nela se vê («Da esquerda para a direita: Groucho, Chico, Harpo e Grummo»), mas compreendemos, naturalmente, que aquilo que se vê na imagem tem a sua direita e esquerda: Chico tem Groucho à sua direita e Harpo à sua esquerda. 

Quando se trata de letras, porém — e, muito provavelmente, de muitas outras coisas inanimadas em que não pensei —, compreendemos tão inflexivelmente o «da esquerda para a direita», que não aceitamos que elas próprias tenham a sua esquerda e direita, que um d minúsculo tenha o traço longo do seu lado esquerdo e o p minúsculo o traço longo do seu lado direito. 

Qualquer objeto orientado da minha esquerda para a minha direita terá a sua imagem no espelho orientada também da minha esquerda para a minha direita. Quando vemos uma imagem de uma palavra num espelho, ela continua a estar da nossa esquerda para a nossa direita – mas nós pensamos que está «ao contrário»: o d tem agora o seu traço longo do seu e nosso lado esquerdo. Mas isso é só porque virámos a palavra ao contrário para a refletir no espelho. Quando vemos uma palavra «ao contrário» no espelho, ela está também ao contrário, relativamente a nós, do que está quando a lemos: tem a «cara» virada para o espelho, como nós, em vez de ter a «cara» voltada para nós. Se a palavra estiver escrita numa superfície transparente, de maneira que possa ser refletida no espelho sem estar «virada para ele», a imagem que vemos no espelho é igual à que vemos diante de nós, não é «ao contrário». 

Imagem: «Quatro Irmãos Marx». Autor desconhecido, publicado no The New Orleans Times-Democrat, 11.5.1913, daqui.

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* Sobre direita e esquerda na política, escrevi fez por estes dias 17 anos um pequeno artigo de cerca de 4.350 palavras.

12/07/25

Um livro sem autor à vista [Crónicas de Svendborg #52]

 

Todos os anos temos aqui na aldeia uma grande feira da ladra: a maior parte dos habitantes de Troense faz bancas à porta de casa ou no quintal e tenta desfazer-se, às vezes por preços simbólicos, dos demasiados haveres que tem. E conversamos com os vizinhos com que raramente ou nunca temos ocasião de conversar nos outros dias todos do ano, e acabamos por comprar mais alguma coisa que não nos serve para nada e que, quem sabe?, poremos à venda passados uns anos na feira da ladra anual…

Este ano, só comprei um livro, por uma coroa (uns 13 cêntimos de euro). Chama-se Christiansø 1953. E comprei-o porque lhe notei um pormenor curioso: não tem em lugar nenhum a indicação do autor. Ou antes sim, tem uma dedicatória numa das guardas e, pelo que explico adiante, é muitíssimo provável seja do próprio autor. E ficamos a saber que se chama Christian, que é quase o mesmo que não sabermos nada. Pensei que talvez a identidade do escritor se pudesse descobrir à leitura da obra. Mas não. Apesar de incluir dois textos autobiográficos, as muitas referências a pessoas e lugares não dão pistas suficientes para pesquisar — e muito menos para deduzir — quem o escreveu.

Numa pesquisa na Internet, encontrei um livro semelhante com o título Christiansø 1952, apresentado como «jornal privado». Isto confirma o que depreendera já à leitura do livro: alguém editou anualmente (durante quantos anos?) um pequeno livro de crónicas e memórias, presume-se que para oferecer a amigos e conhecidos. Está escrito com letra de máquina e uma análise dos caracteres mostra que é mesmo um texto escrito à máquina que foi fotografado e impresso. O papel é de boa qualidade, com uma capa de cartão. Quem escrevia como o autor escrevia e mandava imprimir um livrinho assim só para distribuir aos amigos fazia, com certeza, parte da elite cultural e económica da ilha, mas também isso não me ajuda a encontrar a sua identidade.

Quando começou a trabalhar no Alto Molócuè (Alta Zambézia, Moçambique) em 1996, a minha mulher montou um circuito privado de informação: escrevia uma carta com as suas impressões e reflexões sobre a sua nova vida em África destinada a um grupo de amigos e familiares, enviava-a a uma amiga na Dinamarca (quando ia a Queliamane ou a Nampula, porque o Alto Molócuè não tinha serviço de correio) e esta amiga fotocopiava a carta e mandava-a a todas as pessoas de uma lista que a minha mulher tinha feito antes de partir. Quando eu fui ter com ela seis meses mais tarde, comecei a fazer o mesmo: ia escrevendo umas crónicas sobre a vida em Moçambique, intercaladas com algumas atualidades políticas e mais alguma coisa que ia aprendendo sobre a história e a cultura do país, mandava-as para Portugal, onde eram reenviadas por várias pessoas para várias outras pessoas. Chamavam-se as minhas cartas Crónicas do Alto Molócuè. Quando fomos viver para a Bolívia, passaram a Crónicas de Camargo, já por correio eletrónico, e transformaram-se depois em Crónicas de Chimoio quando voltámos a Moçambique em 2006. (As Crónicas de Svendborg nunca chegaram a ser nenhuma forma de carta coletiva, são só uma etiqueta deste blogue.) 

Estas circulares privadas, se se pode dizer assim, não eram invenção da minha mulher. Embora não conhecesse em Portugal ninguém que fizesse o mesmo, pelo menos entre dinamarqueses assessores de desenvolvimento em África, o sistema de cartas coletivas começava a ser comum. Talvez também noutros círculos, não sei. E depois, com o surgimento do e-mail, simplificou-se e alargou-se muito. Agora há já muitos anos que recebemos, sobretudo pelo fim do ano, muitos e-mails coletivos de muitas pessoas, a contar os acontecimentos mais importantes do ano que passou.

O livro que Christian X mandou fazer em Christiansø é uma versão precoce e mais sofisticada, por ter forma de livro, de tudo isto.  E isso é estranho.

Uma coisa muito curiosa: o livro inclui também uma diatribe contra o turismo (já em 1953!) e, no fim dessa diatribe, informa que inclui um recorte de um artigo de jornal mais ou menos sobre esse tema, escrito pelo médico da ilha, Tage Voss (ao que sei a única pessoa de Christiansø que se notabilizou como escritor e polemista). E tem mesmo: no livro que comprei há um recorte do jornal Politiken de 22.3.1953, com a crónica de Voss. Não uma reprodução, mas um recorte da página do jornal. Quer dizer: não faço ideia de qual a tiragem do «jornal privado», mas o autor teve de comprar muitos exemplares do jornal Politiken desse dia, para recortar e pôr dentro de cada livro que ofereceu.

Não tem interesse nenhum dar-vos mais pormenores. Os poucos que dei são, aliás, pormenores a mais — que vos pode interessar um livro que nunca lerão, ainda mais sem autor à vista? Enfim... 

Não sei se se passa o mesmo convosco, mas tudo o que é estranho, por desimportante que seja, faz-me sempre sonhar.

10/07/25

Histórias de ópera, borracha e Amazonas, umas mais fantásticas que outras

 

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As histórias deste texto passam-se nos locais marcados a vermelho.
Aviso: o texto tem spoilers: há resumos (a roxo) de um filme, uma novela, uma BD e uma ópera.

Em 1881, o deputado provincial Antônio José Fernandes Júnior apresentou à Assembleia Provincial da Amazónia (atualmente Assembleia Legislativa do Estado do Amazonas) um projeto da sua autoria: a construção do Teatro Amazonas em Manaus, um dos grandes portos fluviais do rio que o teatro celebrava e uma das cidades que floresceu durante o chamado ciclo da borracha. O projeto foi imediatamente aprovado e não tardou a ser licitado. Só em 1884, porém, se iniciou a construção do teatro. A obra foi a princípio lenta, acelerou um pouco na entrada na década de 90, chegou a estar interrompida e só a 31 de dezembro de 1896 se inaugurou finalmente o teatro: lustres de Murano, mármore de Carrara, uma cúpula de cerâmica esmaltada e telha vidrada alsaciana. «Paris dos Trópicos», o furor ostentatório dos barões da borracha. Um trio interessante: ópera, borracha e o rio Amazonas.

***

Fitzcarraldo, de Werner Herzog, é um filme sobre ópera, borracha e Amazonas. Começa, aliás, com uma atuação de Caruso em Manaus, onde Caruso nunca atuou, mas isso não interessa.

Em 1982, quando saiu, eu vivia em Genebra. Conhecia alguns exilados políticos sul-americanos que apelavam ao boicote do filme. Segundo eles, era inaceitável a maneira como Herzog tinha tratado as centenas de indígenas que contratara para o filme. Não sei se estas críticas eram bem fundadas, nem se o filme chegou a ser propriamente boicotado, mas lembro-me de ter havido muita polémica relativamente a ele. Se a memória me não falha, a revista francesa Actuel publicou, na altura, uma reportagem sobre a história da filmagem de Fitzcarraldo, em que se fazia uma equivalência entre a obsessão doentia da personagem central do filme de transportar um barco através da floresta amazónica e a obsessão doentia de Werner Herzog de fazer o filme, custasse o que custasse. Equiparar a história da feitura do filme à história que ele conta é hoje comum, ao que vejo por aí escrito na Internet. Olivier Bitoun diz, por exemplo, num excelente texto sobre o filme:

«O filme e a história da sua filmagem são uma e a mesma coisa: o sonho de Fitzcarraldo e o de Herzog estão completamente interligados, e ambos lutarão para levar a bom termo um empreendimento considerado delirante e insensato. O filme Fitzcarraldo não teria sido o mesmo se as filmagens não tivessem sido como foram. Herzog e a sua equipa tiveram de viver eles próprios a aventura de Fitzcarraldo para a contar; o sonho teve de se confrontar com a realidade para se materializar.»

Eis um resumo muito resumido do enredo do filme:

Brian Sweeney Fitzgerald, conhecido como Fitzcarraldo, é um irlandês que vive em Iquitos, no Peru, na época da «febre da borracha» e sonha construir uma ópera na selva e aí apresentar o seu ídolo Caruso. Os seus negócios têm-lhe corrido mal e está falido. Tem de arranjar um negócio que lhe permita arranjar o dinheiro de que precisa para o teatro. Compra então, por tuta e meia, uma concessão considerada inexplorável, porque se encontra num lugar tão inacessível que é impossível de lá transportar a borracha. Fitzcarraldo tem então uma ideia: se conseguir transportar um barco de um rio navegável da rota da borracha até um afluente que passa na concessão, poderá escoar o produto e ganhar muito dinheiro. Só que, para isso, há que transportar o barco por terra, através de uma zona montanhosa da selva. Fitzcarraldo compra um barco barato a precisar de conserto, repara-o e lança-se na aventura.

O filme e as suas personagens são inspirados em acontecimentos e pessoas reais. Houve de facto um Carlos Fitzcarrald na época da borracha, que descobriu, muito mais a sul, um istmo de pouco mais de uma dezena de quilómetros, que permitia ligar, através de vários afluentes, o rio Ucayali e o rio Beni, ambos tributários do Amazonas, e reduzir muito o preço do transporte de borracha do ocidente peruano. E é certo que, quando descobriu esse caminho, Carlos Fitzcarrald organizou o transporte de um barco através do istmo — mas desmontado.

A filmagem de Fitzcarraldo foi demorada e muito difícil. Foi feita inteiramente na selva amazónica e em condições para que técnicos e atores não estavam preparados. Foram também contratados para as filmagens muitos indígenas peruanos. Para referir alguns dos incidentes e contratempos mais conhecidos: foram postos a circular vários boatos sobre Herzog e a sua equipa, segundo os quais eles queriam eliminar as comunidades locais e o primeiro local de filmagem foi abandonado e queimado no dia seguinte por indígenas locais; a infeção de uma ferida na coluna cervical quase deixou Herzog paraplégico; o diretor de fotografia, para salvar uma máquina, fez um rasgão entre dois dedos até ao pulso e teve de ser operado durante duas horas, em plena selva e sem anestesia, porque as anestesias tinham sido levadas pela equipa médica para tratar dois (ou três, segundo algumas fontes) indígenas trabalhadores do filme que tinham sido atingidos com flechas, num ataque de uma tribo rival; um dos lenhadores que trabalhavam no filme, mordido por uma serpente venenosa, teve de serrar o seu próprio pé com a serra elétrica, para impedir que o veneno se espalhasse… Houve mortes, acidentes, conflitos com atores e trabalhadores indígenas. Mas o filme tinha de continuar, o barco tinha de ser transportado até ao outro lado da montanha, Caruso tinha de cantar na mata amazónica.

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Muito longe de Manaus e de Iquitos, Belém do Pará é outro centro fundamental do ciclo da borracha. Circula agora há mais de um ano, nas redes sociais e na internet em geral, uma história perfeitamente ficcional, mas apresentada como verdadeira, sobre uma cantora de ópera: Camille Monfort, a vampira de Belém. Pesquisando um pouco esta lenda urbana, que é como agora se chama muitas vezes também às patranhas internéticas, conclui-se que Camille Monfort é, afinal, personagem de uma novela fantástica, Após a Chuva da Tarde, de um autor brasileiro, Bosco Chancen (ou Bosco Silva), que assume (ver primeiro comentário aqui) ter divulgado a história no Facebook para publicitar o livro, mas insiste em que o livro «é todo baseado em fatos históricos, pois toda lenda tem sempre um quê de verdade» e «aborda um período importante da Amazônia, 1896, período da venda da borracha, em que capitais como Belém enriquecia [sic], com milhares de estrangeiros vindos para cá, muitos traziam novas crenças europeias ligadas ao ocultismo inglês e francês da época».

A personagem-de-novela-tornada-personagem-histórica-na-Internet é uma cantora de ópera francesa de finais do séc. XIX, de voz e figura deslumbrantes, que vive em Belém e atua no Theatro da Paz — um predecessor, se se pode dizer assim, do Teatro Amazonas em Manaus. A sua extraordinária beleza e um comportamento também algo invulgar granjeiam-lhe paixões doentias dos homens da elite local e a fama de ser sobrenatural: diz-se que, no seu camarim, bebe o sangue de jovens que seduz com a sua voz maravilhosa; que tem o poder de invocar o espírito dos mortos, que saem dela na forma de ectoplasma; que dança seminua sob a chuva tropical e dá longos passeios noturnos ao longo do Rio Guajará em direção ao igarapé das almas, onde aparecem espíritos dos mortos. Camille Monfort morre com a epidemia de cólera de 1896, mas gera-se a lenda de que o seu túmulo no Cemitério da Soledade está de facto vazio e ela continua viva algures na Europa, jovem como sempre foi e será.

A%20mulher%20do%20futuro
A foto de uma cantora de ópera que nunca existiu,
por fotógrafo desconhecido. Que tem ela na mão? 
A Inteligência Artificial  com que Google nos persegue agora em todas as pesquisas refere Camille Monfort como pessoa histórica e há referências a ela em comentários de visitantes do Cemitério da Soledade ou do Theatro da Paz em Belém. Creio que já nem com estacas no coração, nem balas de prata, se pode acabar com esta vampira. «Personagem histórica» é hoje uma expressão com um significado ainda menos histórico do que às vezes tinha antigamente. E criações desconhecidas de criadores desconhecidos transformam-se em histórias muito mais conhecidas do que os seus criadores alguma vez virão a ser…Não é que fique, com tanta propaganda à figura, com vontade de ler a novela. Gosto muito de literatura fantástica, mas, seguramente por preconceito, não me parece que seja este o meu género de literatura fantástica... A divulgação da «lenda» levanta, no entanto, uma questão interessante: porque ganhou esta história, em tão pouco tempo (foi publicada há cerca de dois anos, mas era já viral o ano passado), as dimensões que tem atualmente?

Deve haver vários fatores a contribuir para o seu sucesso e um dos mais importantes é muito provavelmente a fotografia que a acompanha desde que começou a circular na Internet: uma foto sépia de uma bonita jovem que empunha algo que muitos identificam como um telemóvel e que outros dizem que não pode ser senão um bloco de notas. Não é, vê-se bem, uma foto de finais do séc. XIX, mas antes produto de IA ou foto tratada de outra forma para parecer antiga. E curiosamente, não foi produzida para a história de Bosco Chance, mas para um conto de ficção científica, A mulher do futuro, de outro escritor brasileiro, Philipe Kling David, que se pode ler no site do autor


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Ópera, borracha e Amazonas em banda desenhada: o oitavo capítulo das aventuras de Dieter Lumpen (um conjunto de contos gráficos do argumentista Jorge Zentner e do desenhador Rubén Pellejero) também gira em torno de uma fictícia cantora de ópera francesa, de nome Magda e apelido desconhecido, que teria atuado em 1907 no Teatro Amazonas em Manaus. 

Magda apaixona-se por um homem local, Paulino, e ele por ela, e decidem que ele irá com ela quando ela voltar a França. Em Paris, Paulino é vítima de um ataque racista, por ousar andar com uma branca, e perde todos os dentes. Magda oferece-lhe uma dentadura de ouro. Paulino vive em permanente insegurança e, apesar do seu amor por Magda, decide voltar à Amazónia. Magda, que nunca o esquece, conta a sua história de amor à sua neta, Magda ela também, e, no leito de morte, fá-la prometer que irá a Manaus e procurará Paulino. Magda assim faz e, com a ajuda de um velho aventureiro local chamado Mauro, vai até ao local isolado no meio da mata amazónica onde Paulino mora. Não quis voltar à vida social. Quarenta anos depois de ter deixado Paris, Paulino continua igual. Magda tem fotos dele que a sua avó lhe dera. A dentadura de ouro, símbolo de um grande amor, mantém-no jovem. E Paulino não pode deixar de ver nela, que se parece muito com a avó, a sua amada de há quarenta anos. Quando Magda parte, Paulino deita fora a dentadura de ouro — pode agora envelhecer em paz.

Mauro vive num barco abandonando na selva. O barco chama-se, ao que consigo ler, «Guimarães» e é bem capaz de ter sido inspirado por um dos três barcos usados nas filmagens de Fitzcarraldo. Em baixo, à direita, a foto de outro deles, abandonado na mata (foto de Eugen Lehle, daqui).

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Em 1996, estreou-se a ópera Florencia en el Amazonas, do compositor Daniel Catán. A palavra cauchu não aparece uma única vez no libreto da ópera (de Marcela Fuentes-Beráin, que podem ler aqui – atenção, tem pequenas gralhas), mas nem por isso deixa de ser uma obra sobre ópera, borracha e Amazonas: a personagem principal é uma cantora de ópera a caminho do Teatro Amazonas, onde não se chega a saber se atua ou não. Eis um pequeno resumo da história da peça:

No início do séc. XX, Florencia Grimaldi, uma cantora de ópera, embarca na cidade colombiana de Leticia, na fronteira com o Peru e o Brasil, no vapor El Dorado que ruma a Manaus, onde irá cantar. Não é essa, porém, o mais importante motivo da sua viagem: Florencia está farta da vida de artista famosa na Europa e quer voltar às suas origens na Amazónia — e procurar Cristóbal, o famoso caçador de borboletas, o seu amor de juventude, de quem se separara para seguir a sua carreira de cantora de ópera. Porém, durante a viagem, cheia de perigos e fantásticas peripécias, é-lhe revelado que ninguém sabe de Cristóbal há muitos anos — está desaparecido na mata amazónica. Quando chegam a Manaus, não lhes é dada licença para desembarcar, por causa de um surto de cólera que assola a cidade. Na ária final, Florencia invoca Cristóbal, que teme nunca voltar a ver. E vê-se (em sonho?; na realidade?) transformada numa Musa Esmeralda, a borboleta «única no mundo» que Cristóbal sempre quis encontrar.

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Não consigo encontrar nenhuma borboleta chamada Musa Esmeralda. Encontro, porém, uma borboleta conhecida como borboleta-esmeralda, que se encontra desde o leste da Colômbia até à parte central do Brasil – e, portanto, no estado do Amazonas. A borboleta foi descrita pela primeira vez em 1912, pelo que podemos divertir-nos a imaginar que Cristóbal tinha ouvido falar dela e a procurava, mas que alguém a descobriu antes dele... (Foto de Didier Descouens, daqui


No vídeo abaixo, a ária final («Escúchame, Cristóbal»). Pode ver-se aqui a ópera completa pela Orquesta Sinfónica Mexiquense (mais informação aqui), com legendas com o libreto em castelhano.

Ailyn Pérez com a orquestra da Metropolitan Opera, dirigida por Yannick Nézet-Séguin (ensaio, temporada 2023–24).


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Breve nota sobre cólera: Este texto quase podia ser sobre ópera, borracha, Amazonas... e cólera. Em duas das quatro histórias aqui reunidas, a cólera é um elemento importante – como o foi de facto no Brasil, e em todo o mundo, na época da borracha. Na terceira pandemia (1846–1860), a doença entrou no Brasil por Belém, vinda de Portugal, em 1855. A quarta e quinta pandemias (1863–1875 e 1881–1896, respetivamente) também assolaram o Brasil. A sexta pandemia (1899–1923) não chegou à América, pelo que o surto da história de Florencia há de ser... local.