28/08/19

Notas avulsas sobre uma morte concreta e a morte em geral


Escrevi aqui uma vez, num dos meus textos preferidos desta Travessa, que «pesa mais o mau que o bom». Ou que pesa mais o negativo que o positivo, se preferirem, mais a dor que o prazer. De todos os males, o pior é a morte. Se calhar, os outros males, mesmo a dor, física ou psíquica, que nos pode levar a preferir a morte à sorte que temos, só existem como prenúncios da morte, como pedaços de morte espalhados pela vida.

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É importante enterrar os seus mortos. Os mortos não enterrados custam mais a morrer em nós, se se pode dizer assim. Para o dizer de uma forma mais prosaica, custa-nos mais aceitar que não voltaremos a vê-los, a falar com eles, a saber da sua vida.

Há muitas maneiras de enterrar os seus mortos e são todas válidas. Vejo muita gente insurgir-se contra quem ostenta (é assim que o veem os que se insurgem) os seus mortos nas redes sociais. Não me meto nisso. Como vou eu dizer a alguém como trabalhar o que lhe vai dentro? Não o faço eu, que sou uma pessoa reservada na expressão da dor e excluo quase todo o privado das redes sociais, mas não vejo mal nenhum em que se faça. E, embora sem nomear diretamente os mortos, faço-o aqui na Travessa, que é também sítio público, sempre que consigo dar forma aceitável ao que penso e sinto.

E depois, enterrar os seus mortos é, sempre foi, uma tarefa parcialmente social. Como tudo o que é humano, inclusive os sentimentos. Que seja o jornal local ou o Facebook, o anúncio público da morte e da dor parece ser sempre uma parte do esconjuro da morte ou da sua aceitação…

 Agora, as maneiras que fomos inventando de enterrar os mortos são todas tão sofisticadas como imperfeitas: velórios e funerais, e todo o tipo de cerimónias funerárias, religiosas ou laicas; as várias formas de obituários, e todos os tipos de elogios fúnebres, no jornal, no café ou em casa de amigos; os memoriais, as homenagens e a celebração de aniversários—tudo isso vale, e muito. Mas é às vezes muito pouco. É o que se pode, enfim.

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O que digo no último parágrafo foi o que me interrompeu, no funeral de K, o desfilar de recordações. Pensei no último jantar com K, dois meses antes, em que ele me lembrou uma compilação de canções que eu lhe oferecera há quase vinte anos.
 – Quando ouvi a primeira vez, não me disse nada aquela música. E depois fui ouvir outra vez o ano passado, por curiosidade, e gostei muito daquilo tudo. Tenho ouvido muitas vezes, desde então. Acho que precisava de amadurecer para apreciar aquilo.
Amadurecer… Mostrei-lhe um vídeo em que mestre Jacques Pépin explica como desossar uma galinha.
– Não é tão fácil como ele o faz parecer, mas também não é muito difícil.
– Muito fixe! – disse ele. – Hei de experimentar.
Não sei se chegou a experimentar. K era um excelente cozinheiro e adorava comer e beber bem, e comia e bebia talvez demais. «Que mais se leva desta vida?», não é a pergunta retórica que se costuma fazer? Eu costumo dizer que conta mais o que cá se deixa. K deixou feito muito bem.

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«E aquelles que por obras valerosas / Se vão da ley da Morte libertando»?

É justa a maiúscula na Morte, que merece a maior de todas as maiúsculas. Que persistimos na memória dos que cá ficam também é certo, mas não nos equivoquemos: quando desaparece a última pessoa que se lembra de nós, desaparecemos de vez da face da terra. Se nos definem como seres individuais a consciência e a memória que temos de nós — que mais temos que nos acompanhe toda a vida? —, admitamos que sobrevivemos na consciência e na memória de quem nos conheceu bem. Décadas no máximo. Mas mais que isso, nada. As obras que cá se deixam, valerosas ou não, não são os seus criadores. Os criadores de obras imortais, esses. morrem como toda a gente — ao fim de pouco tempo, ninguém se lembra de como falavam, riam, comiam ou se irritavam, já ninguém se lembra deles…





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