Quanto mais reflicto sobre a ideia de livre-arbítrio, mais ela me parece complicada. Se partirmos do princípio, como eu parto, que aquilo que concebemos como actividade mental não é senão o resultado de processos físico-químicos, temos de aceitar que qualquer estado dessa actividade mental tem forçosamente de ser determinado por esses processos. Se não acreditarmos, como eu não acredito, nalgum tipo de eu metafísico “essencial” que escape às leis da matéria – uma alma, um espírito, pouco importa que nome se lhe dê – não se vê bem o que possa estar de fora desses processos mentais determinados a decidir o que vamos pensar ou fazer a cada momento. O facto, porém, é que, com perfeita consciência de o estarmos a fazer, ponderamos escolhas, pesamos prós e contras, decidimos. Ou temos, pelo menos, a ilusão de o fazer…
Por outro lado, quanto mais reflicto sobre a relação entre livre-arbítrio e moral, mais me parece estranho o postulado (pelos vistos bastante na moda pelo menos entre advogados nos EUA) segundo o qual uma pessoa, como não tem de facto livre-arbítrio, não pode ser condenada pelos seus crimes. Uma coisa não tem nada a ver com a outra. Ou antes, de uma coisa não se pode inferir a outra. Creio que a base em que assenta esta (a meu ver…) confusão é a concepção do sistema penal como retaliação, de que eu discordo completamente. A meu ver, a lei prevê castigos para quem a não cumpra por duas razões essenciais, uma de ordem preventiva – o castigo tem uma enorme capacidade dissuasora – e outra de ordem, digamos, ontológica – não pode haver lei se não houver castigo para o seu incumprimento.
A primeira razão (sobre a qual já aqui escrevi uma vez, embora num con-texto muito diferente deste) continua a fazer sentido mesmo que não se acredite na possibilidade de livre-arbítrio, uma vez que a consciência do “perigo” que se corre ao quebrar a lei entra muito pavlovianamente na computação inconsciente e involuntária das acções de qualquer um. Quanto à segunda razão, ela é independente de se acreditar ou não no livre-arbítrio. Como diz a minha amiga Clara, em Portugal não há escolaridade obrigatória porque não há, na prática, punição para quem não manda os filhos à escola. “Isto é proibido, mas não te acontece nada, se o fizeres” é uma pretensa proibição. De facto, não é proibição nenhuma. Por isso, se achamos que se deve proibir, por hipótese, matar seres humanos, pouco importa se acreditamos ou não que quem o faz decide livremente o seu crime ou é compelido pela sua incontrolável mente a ser um assassino. O que a lei tem de punir, para poder existir, não é esse aglomerado de processos físico-químicos que uma pessoa é, mas as suas acções, independentemente de elas terem sido decididas por uma alma à imagem e semelhança de deus ou geradas por uma actividade biológica ingovernável. Só que, por impossibilidade de uma acção punitiva mais incisiva e mais justa, é a pessoa que tem de ser punida. Não há alternativa.
A questão é, obviamente, muito mais complexa do que este textinho parece que quer fazer crer. Este textinho não faz senão defender, de forma rudimentar, a ideia simples de que não se pune para retaliar, mas sim para tentar evitar a ocorrência do crime, e que sem punição não há lei. É óbvio que, mesmo que aceitemos estas premissas, ficam em aberto questões tão complexas como a quantidade e o tipo de castigo aplicável, as circunstâncias que devem ser consideradas atenuantes nas diferentes infracções, e os diferentes graus de responsabilidade num delito. Segundo uma personagem de um filme que eu vi ontem, um soldado tem de ter mais medo do seu comandante que do exército inimigo – para lhe obedecer em tudo e cegamente…; se não, de cada vez que dispara sobre um inimigo está a cometer um homicídio…
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