Num interessante comentário que fez a um post meu, Igor Lobão afirmava o seguinte:
A ciência é, igualmente, uma estrutura simbólica que confere uma leitura sobre o real e uma leitura que é revisível. Aliás, é nesse sentido que Popper propôs a falsificabilidade. Direi mais. A ciência em si mesma é uma ficção, parte de construções (teóricas) que podem ou não funcionar. Podemos explicitar o carácter de ficção através dos números negativos ou dos números imaginários. Eles não existem no real, mas são necessários para tentar-se produzir uma interpretação ou uma intervenção no real. O pressuposto de Galileu, de que o real pode ser transcrito em linguagem matemática, ou de Max Plank, de que real é o que se pode medir, são apenas pressupostos de ordem metafísica e que por sinal radicam numa estrutura simbólica.
Como esta discussão saía um bocadinho fora da discussão sobre religião que tinha originado o referido post e a polémica que ele gerou e como esta é uma discussão em que me tenho empenhado muitas vezes, prometi dar continuação ao textozinho singelo que aqui comecei no outro dia sobre ciência e bom senso. Quero também deixar claro que não tenho, de modo algum, intenções de perpetuar a polémica com Igor Lobão em particular e que, se cito aqui o seu texto, é só porque ele é um de muitos exemplos de uma maneira relativamente divulgada de entender a ciência com que eu não concordo.
Posso imaginar muita gente já a bocejar e a pensar que não fez mal nenhum à divindade da sua eleição para estar a levar com mais um episódio desta infindável discussão. Eu compreendo quem assim reaja e prometo que hei-de voltar com posts mais interessantes sobre receitas de peixe cru ou falares regionais. Para já, no entanto, até porque o prometido é devido, quero defender mais uma vez a minha muito chã (talvez demasiado chã...) opinião sobre a questão:
Qualquer teoria, científica ou não, pode ter diversos graus de eficácia, mas não compreendo por que é que o facto de uma teoria científica poder não funcionar faz da ciência uma ficção. A ciência não é nenhuma ficção nem o contrário disso. A ciência é a designação comum de várias áreas de reflexão e actividade humana em que se procura descobrir qualquer coisa sobre o mundo. Não se distingue, provavelmente, em nenhum aspecto essencial, de qualquer investigação sobre o mundo, seja ela normalmente considerado “científica” ou não. Por exemplo, se eu perguntar como sai de uma mangueira enrolada um jacto de água (em curva ou a direito?), é uma pergunta de carácter científico que estou a fazer? O facto é que a resposta é só uma, e quem quer que alguma vez tenha regado um relvado com uma mangueira sabe bem qual é. Evidentemente, as leis que regem o fenómeno são passíveis de descrições científicas detalhadas, como tudo o que se passa no mundo, desde que haja conhecimentos para tal… Ficção? Estrutura simbólica? Talvez…
O que eu acho é que todo este discurso da ciência como quadro conceptual, como edifício simbólico, como uma “linguagem” criadora de uma realidade sua, este tipo de coisas, pura e simplesmente não se aplica ao trabalho que fazem os cientistas no seu dia-a-dia. É por isso que as pessoas que propõem estas elegantes definições do trabalho científico raramente – ou nunca… – fazem elas próprias trabalho científico e, para os cientistas, estas questões de facto não se põem.
“Meu amigo”, dirá a minha cara leitora, se for suficientemente paciente comigo para não me tratar de uma forma menos simpática, “mas isso já você disse aqui da outra vez, por favor não se repita…”
Repito, sim senhora, repito e repiso. E desenvolvo. O melhor que há neste caso são os exemplos. No post Ciência e bom-senso (1) dava meia dúzia de exemplos completamente ao acaso de questões passíveis de merecerem algum inquérito: Quais os efeitos do aumento ou da redução dos níveis de actividade dos receptores D2 de dopamina? Os dinossauros foram aniquilados por uma parte do asteróide Baptistina? Houve tribos célticas no Norte da Península Ibérica? As formas irregulares dos verbos são geradas através de regras computacionais? O Pedro entregou à Luísa o livro que ela diz que ele não lhe entregou? Existem fadas? Para puxar um bocado a brasa à minha sardinha (têm de compreender que não me sinto muito à vontade com receptores D2 de dopamina, dinossauros e asteróides, migrações da antiguidades e seres de fantasia…) desenvolvo aqui o inquérito à produção das formas irregulares dos verbos, sim?
Esclareço, antes de mais, que o que eu quero dizer com isto de produção das formas irregulares dos verbos – e se são ou não geradas por regras computacionais – é o seguinte: “O que é que se passa no meu cérebro quando digo fiz em vez de fazi?” Quero também esclarecer que, muito provavelmente, não há nenhuma boa razão para distinguir a maneira como são tratadas pelo nosso cérebro as formas irregulares dos verbos da maneira como são tratadas pelo cérebro outras formas irregulares (plurais irregulares, por exemplo), mas como eu formulei dessa maneira a questão na primeira parte desta conversa, por puro acaso e sem pensar na altura que havia de aqui voltar a pegar nela, é assim que fica a questão…
Então? Podemos começar por deixar de lado o que não faz grande sentido, aquilo que não há nenhuma razão para supor que possa ser verdade. Assim, não consideramos que é o nosso anjo-da-guarda ou a nossa fada-madrinha que nos segreda ao ouvido as formas irregulares. Também podemos assumir, com relativo à-vontade, que se deve passar o mesmo na cabeça de toda a gente, ou seja, que não é provável que o cérebro de uns funcione de maneira diferente, no que respeita à forma irregular dos verbos, do cérebro de outros…
Em seguida, vamos ver que possibilidades há. Em princípio, podemos ver o que foi pensado sobre o assunto. Tanto quanto eu sei, há três hipóteses de base: há quem diga que todas as formas, tanto regulares como irregulares, estão armazenadas na memória e nós vamos lá buscá-las quando as queremos utilizar; há quem diga que todas são geradas a partir de regras interiorizadas e que há “regras menores” interiorizadas para as formas irregulares; e há quem diga que as formas regulares são geradas por uma regra de acrescentar um elemento (um sufixo, nas línguas como o português ou o inglês), quando não há uma forma irregular armazenada na memória – e que estão, precisamente, armazenadas na memória de cada pessoa, as formas verbais irregulares que ela conhece.
Agora, ou aceitamos estas três possibilidades, ou propomos outra. Depende um bocado da nossa criatividade que, por sua vez, depende muito, em princípio, da quantidade de conhecimentos sobre o assunto e dos hábitos de reflexão sobre esta área… [Mas, quem sabe, talvez um olhar ingénuo sobre a questão possa gerar uma ideia genial… Às vezes, acontece.]
A partir daqui é necessário começar a investigar para ver qual das hipóteses (as três existentes ou a(s) que tivermos proposto) tem mais cabimento – ou se são todas de desprezar. [Em princípio, um resultado negativo, uma pura refutação da(s) hipótese(s) é um resultado tão válido como qualquer outro, por muito que nem todas as tradições académicas aceitem conclusões desse tipo nos trabalhos que exigem ou patrocinam…] Pode ir buscar-se evidência à maneira como estas formas são aprendidas pelas crianças, por exemplo, ao facto de que formas irregulares antes bem utilizadas (a criança dizia “eu fiz”) começam, a determinada altura, a ser substituídas por formas regulares erradas (a criança começa a dizer “eu fazi”), para depois voltarem a ser corrigidas (a criança volta a dizer “eu fiz” e vai dizer “eu fiz” o resto da vida); pode ir buscar-se evidência à comparação da história de duas línguas e à regularização dos neologismos, ou seja, ao facto de os verbos importados serem sempre regularizados; pode tentar-se observar directamente o cérebro e ver se há partes diferentes que “acendem” quando se usa uma forma regular e uma irregular; et cetera. De facto – eu não me quero agora alargar – pode ir buscar-se evidência a qualquer domínio, a qualquer lado e a qualquer tempo, desde que seja verdadeira evidência, isto é, que se possa discutir.
E podem entrar paixões, pode entrar a nossa ânsia de provar que queremos ter razão? Bom, se tivermos consciência delas e não fizermos os possíveis para sermos honestos na investigação, há aí uma imoralidade – uma imoralidade do mesmo tipo de conscientemente mentirmos em tribunal. Mas, se não tivermos consciência de que estamos a ser parciais? Não se pode fazer nada. Ou antes sim. Porque, como sempre em ciência ou em qualquer outra investigação séria e sensata, vale tudo desde que seja lógico e baseado em observáveis, para poder ser discutido. Se houver parcialidades e batotas, elas hão-de notar-se, a não ser que toda a gente que discuta connosco os nossos resultados sofra da mesma parcialidade que nós, o que é altamente improvável.
Poder-se-ia ir mais longe e em vez de afirmar «desde que seja verdadeira evidência, isto é, que se possa discutir», afirmar-se antes «desde que seja verdadeira evidência, isto é, que seja passível de ser refutada.» É a famosa teoria popperiana a que Igor Lobão faz referência, no excerto que dele citei, como “falsificabilidade”. Não gosto muito de falsificabilidade como tradução do conceito de Popper, porque leva facilmente os falantes do português que não conheçam a teoria de Popper, a pensar que, para ele, é científico o que se pode falsificar, quando de facto é de refutabilidade que se trata: segundo Popper, é científico o que há maneira de mostrar que é falso. O problema é que falsificar em português (tanto no uso que eu lhe conheço, como na definição que encontro no meu dicionário) não significa “mostrar que é falso”, ao contrário do falsify inglês, de que costuma ser uma (má) tradução. Neste sentido, e voltando à citação de Igor Lobão, o que é revisível não é exactamente a “leitura” que a “estrutura simbólica” faz do real (embora não me choque que se diga a coisa desta maneira), mas antes o valor de verdade de uma proposição. O que se passa mais concretamente é que se descobre que o que se pensava ser uma verdade antes, afinal não o é, porque se descobriu algo mais* sobre o assunto. A ciência, como toda a procura séria da verdade, está sempre disposta a reconhecer que errou…
Mas enfim, perdoem-me a excursão. Poder-se-ia ir mais longe, dizia eu, e afirmar que o critério de refutabilidade seria essencial. Pode, de facto, usar-se um truque assim, no geral, para avaliar da dose de bom senso de uma hipótese ou de uma proposta explicativa**. Mas não sei se vale a pena. Mesmo no uso desta regra geral é saudável ser comedido. Há tantas afirmações plausíveis e interessantes para a investigação do mundo que não são refutáveis em sentido estrito; e há tantas que, sendo refutáveis, nem vale a pena considerar, porque não há nenhuma razão para as crer interessantes…
Agora, digam-me: O procedimento descrito atrás para tentar saber alguma coisa de como são produzidas na cabeça da gente as formas irregulares dos verbos assenta numa estrutura simbólica específica? Como é que se podia pensar no assunto de outra maneira? Qual seria outra estrutura simbólica possível, “não-cientifica”? É claro que podia não se pensar no assunto – essa é sempre a alternativa à procura de conhecimento… E tirando isso?
Não me compreendam mal: a maior parte das questões que se discutem naquilo que se designa normalmente como trabalho científico são altamente especializadas e algumas são de uma grande complexidade. [Mesmo a que acabo de referir é suficientemente complexa para não haver acordo nenhum sobre a resposta a dar-lhe…]. Há, muitas vezes, questões metodológicas essenciais que podem influenciar resultados e que variam muito de área do saber para área do saber. Há muitas questões da prática de investigação que são levantadas por investigadores e que merecem discussão atenta e aprofundada. Ainda assim, as críticas à possibilidade de “objectividade” da ciência que a apresentam como “mais um quadro mental” que “produz as suas realidades”, tiveram uma enorme fortuna entre não cientistas, mas não vieram afectar, ao que eu sei, a maneira de fazer ciência. E é extremamente improvável que isso se deva a outra coisa que não seja às suas próprias características, isto é, ao facto de que as questões que levantam serem irrelevantes para o trabalho que os cientistas na realidade fazem. Dito de outra maneira, «“método científico” é uma expressão que nunca passa pelos lábios de um verdadeiro cientista»***. Porque quando são levantadas questões metodológicas directamente decorrentes do trabalho científico e com implicações sobre ele, há sempre quem as leve a sério e tenha em conta, no seu trabalho, essas mesmas implicações. Por exemplo, a questão da relação emotiva do cientista com a sua hipótese, de que eu falava atrás, é um problema real e constatado há muito tempo, para o qual também há já muito tempo que foram propostas soluções, como sejam a formulação à partida de várias hipóteses, se possível de maneira a que cada uma infirme as outras, e a análise das conclusões por um painel qualificado de advogados do diabo que não perfilhem a hipótese assumida pelo investigador. Mas não estamos aqui perante nada que seja verdade em ciência e não seja verdade fora dela. Os mesmos cuidados têm de se ter em qualquer inquérito para apurar a verdade, seja ele do domínio normalmente considerado científico ou não – embora, naturalmente, a própria natureza do que é investigado apele a problemas diferentes.
De uma forma talvez exageradamente poética, não sei, poder-se-ia até dizer que o facto de os problemas que se colocam ao investigador poderem variar em função do objecto de investigação é a prova mais concludente da dureza do real. Sim, porque o real é duro, para os cientistas e para as outras pessoas todas. Por isso é que não são só os cientistas a ter o cuidado de não ultrapassar em locais sem visibilidade…
Post Scriptum:
O real pode, em parte, ser transcrito em linguagem lógico-matemática. Mas é relativamente limitado o que se pode transcrever nessa linguagem – pelo menos enquanto não melhorarmos o método de transcrição… Também se calhar não vale a pena. A linguagem comum tem até agora chegado à investigação do mundo, se a acrescentarmos aqui e ali de termos novos, quando é necessário – como se faz, aliás, em todas as áreas de actividade humana – gastronomia, costura, serralharia…
O real também pode, em parte, ser medido. Mas há coisas do real que nós não sabemos medir e que não sabemos, por isso, se alguma vez haveremos de saber medir… Mas mesmo de medir coisas aparentemente tão imensuráveis como o sofrimento… já estivemos mais longe.
Não são só os números negativos e imaginários que não existem no real. Os números, como qualquer palavra (os números são palavras!), servem para dizer o real. Ou seja, na realidade o que há são seres contáveis e eu posso contá-los, positiva ou negativamente, da mesma forma que posso escolher uma lexicalização negativa ou positiva de uma proposição qualquer que descreva a realidade. Posso dizer “Não é verdade” ou “É falso”. Se tinha três maçãs e comi uma, posso transcrever “3-(+1)”, ou “3+(-1))”, quer dizer 3 menos uma maçã (que houve) ou 3 mais o desaparecimento de uma maçã… Evidentemente, pode ir-se muito longe na argumentação da exclusiva positividade do real. Nesse caso, não são só os números negativos que não existem, são todas as categorias negativas e afirmar que “ainda não comi” é uma descrição “desadequada” do real, porque não há ocorrências de “não-ingestão” de alimentos, apenas de ingestão de alimentos. Este facto simples tem às vezes implicações em discussões concretas (por exemplo, a impossibilidade de provar a não-existência de seres sobrenaturais) ou às vezes implicações metodológicas (por exemplo, na metodologia de identificação e resolução de problemas chamada Logical Framework Approach, exige-se a formulação positiva dos problemas, para não coincidir com a procura de soluções). Mas, na maior parte dos casos, este facto é sem interesse e determinado apenas pela escolha das palavras para dizer um estado de coisas – não há grande diferença entre dizer “o azul e o verde são cores diferentes” ou dizer “o azul e o verde não são a mesma cor”.
Dito isto, concordo que há uma grande ingenuidade nas definições de real de Galileu e Max Planck referidas. Mas é de perdoar-lhes essa ingenuidades. Afinal, Galileu e Max Planck, mesmo com as suas ingenuidades na definição do real, contribuíram muito mais, na minha modesta opinião, para o avanço do conhecimento humano do que muita gente com concepções talvez mais sofisticadas da realidade…
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* É difícil também aceitar a acusação que se faz à ciência de ser não-cumulativa – é óbvio que é cumulativa, porque quando as constatações anteriores relevantes para uma determinada investigação são suficientemente estáveis não se tenta verificá-las de novo, mas parte-se antes delas como pressupostos. Mais uma vez, a ciência não se distingue, nisto, de todo o conhecimento humano.
** Sim, porque é para avaliar o bom senso mais do que a cientificidade que serve a regra de Popper. Imaginem que, em vez da produção das formas irregulares dos verbos, o tema de investigação fosse outro: Foi a Siri que comeu o caju que estava em cima da casa de jantar? A minha “teoria”, por ter constatado que a Siri tinha sido a única pessoa a ir à sala depois de eu lá ter posto o caju e saber de antemão que a Siri é maluquinha por caju, era que sim. É refutável?? Claro que sim. Isso faz da minha teoria uma teoria científica? Talvez…
*** A frase é de Steven Pinker, na sua recensão do livro de divulgação científica The Canon, A Whirligig Tour of the Beautiful Basics of Science, de Natalie Angier (NYTimes, 27 de Maio de 2007). A frase completa de Pinker é: «Thankfully, [Natalie Angier] does not try to render something called “the scientific method” (a phrase that never passes the lips of a real scientist) but conveys the idea that science is just the attempt to understand the world with a special effort to ensuring that the things you say about it are true». [«Ainda bem que [Natalie Angier] não tenta expor uma coisa chamada “o método científico” (uma expressão que nunca passa pelos lábios de um verdadeiro cientista), mas transmite antes a ideia de que ciência é apenas a tentativa de compreender o mundo com um esforço especial para se certificar de que o que se diz sobre ele é verdade]. Ora aí está uma definição razoável do que fazem os cientistas.
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